Andreia Reis[1]Instituto de Educação da Universidade de Lisboa; Unidade de Investigação e Desenvolvimento em Educação e Formação (UIDEF). & Sara Monteiro[2]Instituto Politécnico Jean Piaget do Sul; Insight – Piaget Research Center for Ecological Human Development.
Volvidas mais de sete décadas desde a sua adoção, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (Organização das Nações Unidas, 1948), permanece não só como um marco incontornável da História contemporânea, mas continua a revelar-se um documento de inegável atualidade, face às exigências e complexidades que atravessam a sociedade dos dias de hoje. Deparamo-nos com uma realidade global marcada por profundas assimetrias, em que a pobreza e a privação coexistem com formas ostensivas de riqueza e privilégio e em que crises humanitárias provocam sofrimento na vida de milhões de pessoas. Também, a discriminação, o racismo estrutural e várias expressões de preconceito assumem-se, não raras vezes, instrumentos recorrentes de mobilização política (Watts & Hodgson, 2019). Neste cenário, a urgência de concretizar os princípios consagrados na Declaração parece emergir com renovada intensidade e acuidade, na medida em que os Direitos Humanos implicam um compromisso contínuo com a sua defesa e salvaguarda, reconhecendo-se a educação como um espaço privilegiado para a materialização do mesmo.
Neste enquadramento, o Referencial de Direitos Humanos, Educação Pré-Escolar, Ensino Básico e Ensino Secundário[3]https://www.dge.mec.pt/noticias/referencial-de-direitos-humanos., lançado em março de 2024, que se inscreve entre os documentos estruturantes concebidos no âmbito da Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania (ENEC), sob a égide do Ministério da Educação, afigura-se como um documento relevante, sobre o qual importa debruçarmo-nos, quer enquanto investigadores, educadores, docentes, formadores, quer enquanto cidadãos locais e globais. Cumpre referir que o domínio de cidadania dos Direitos Humanos é parte integrante da ENEC (Ministério da Educação, 2017) e das Aprendizagens Essenciais (nomeadamente, ao nível do currículo de Cidadania e Desenvolvimento), em conformidade com o Decreto-Lei n.º 55/2018 de 6 de julho.
Ao revisitarmos os conteúdos e finalidades da Educação para a Cidadania, explicitados na ENEC (Ministério da Educação, 2017), compreende-se a pertinência deste Referencial, que nos incentiva a refletir e a debater de que modo este poderá constituir-se como um instrumento ao serviço do desenvolvimento e da formação cidadã das crianças e jovens do nosso país, com vista a que, no presente e no futuro, apresentem uma conduta cívica norteada pela igualdade nas relações interpessoais, a integração da diferença, o respeito pelos direitos humanos e a valorização de conceitos e valores de cidadania democrática, no quadro do sistema educativo. Ainda mais, tendo em mente que o ano de 2024 foi marcado pelo cinquentenário do 25 de Abril de 1974 – data que representa o fim de uma ditadura e o início de uma democracia em Portugal -, torna-se premente sublinhar o papel da educação na afirmação dos valores da liberdade, da democracia, da justiça social e dos direitos humanos.
O Referencial de Direitos Humanos, à semelhança dos restantes referenciais neste âmbito, apresenta uma estrutura composta por uma introdução, temas, subtemas, objetivos e descritores organizados por níveis de educação e por ciclos de ensino: educação pré-escolar, 1.º, 2.º e 3.º Ciclos do ensino básico e ensino secundário.
Por conseguinte, o presente documento está elaborado em torno de quatro eixos globais, que foram definidos não só tendo em conta a pertinência das temáticas a abordar e a experiência adquirida em contextos da ação coletiva voluntária em defesa dos direitos humanos, com destaque para o trabalho desenvolvido no âmbito das organizações não governamentais (ONG), mas também as prioridades de ação política e o conhecimento das especificidades dos públicos escolares, com especial atenção ao trabalho desenvolvido na formação inicial de professores, no campo da educação para os direitos humanos na educação pré-escolar e no ensino básico.
Para cada tema, o referencial delineia um conjunto de aprendizagens a alcançar no decorrer do percurso educativo formal, incorporando os conhecimentos, capacidades, atitudes, valores e comportamentos envolvidos. Os temas estruturantes desdobram-se, por sua vez, em subtemas, que são acompanhados por um objetivo geral e pela respetiva correspondência ao nível de educação e ciclos de ensino adequados para a sua abordagem.
Sistematizados estes aspetos, passamos a apresentar os temas globais e os resultados de aprendizagem pretendidos que nos permitem traçar um panorama das orientações curriculares neste campo. O primeiro tema “Perspetiva histórica, filosófica e jurídica dos direitos humanos”, orienta-se para a compreensão da origem, natureza, objetivos dos direitos humanos, no reconhecimento da dignidade da pessoa humana enquanto seu alicerce, bem como dos princípios e valores intrínsecos aos mesmos. Convida ainda a uma leitura sobre a evolução histórica, o que requer que os alunos e as alunas adquiram conhecimentos e reflitam sobre factos da História vinculados à luta dos direitos humanos.
O segundo, designado de “Direitos Humanos reconhecidos”, partindo do reconhecimento do caracter inalienável, indivisível, interdependente e universal de todos os direitos humanos, visa a abordagem sobre a defesa quotidiana dos direitos civis e políticos, dos direitos económicos, sociais e culturais, direitos coletivos e direitos das crianças, o que demonstra como a concretização plena dos direitos tem de ser perspetivada através de diferentes esferas.
Segue-se o tema “Proteção de direitos humanos: do Estado ao indivíduo”, que tem como intuito contribuir para a compreensão do funcionamento dos sistemas de proteção dos direitos humanos, envolvendo a tomada de consciência dos grupos em situação de maior vulnerabilidade e a promoção da ação individual e coletiva enquanto via para a sua garantia.
O último tema “Direitos humanos e a Cidadania global” centra-se na identificação e análise dos desafios que condicionam os direitos humanos nas nossas sociedades, destacando a necessidade de valorizar a cooperação internacional e a interdependência entre democracia, paz, desenvolvimento sustentável e direitos humanos como pilares estruturantes para a sua concretização a nível global.
Repare-se que no quadro dos desafios globais emergentes, estes objetivos vêm aliar-se a abordagens pedagógicas que incitam a uma compreensão e resposta aos mesmos, com base num sentimento de pertença a uma humanidade em comum (Fricke et al., 2015; Gaudelli, 2009; Tawil, 2013; UNESCO, 2018), enquadrando-se numa perspetiva de Educação para o Desenvolvimento, a qual tem como fundamento os direitos humanos, assim como valores de igualdade, democracia, paz e justiça social.
No que concerne ao domínio conceptual, logo nos apontamentos introdutórios deste Referencial, damo-nos conta de que a primazia concedida à educação para os direitos humanos advém do “facto indiscutível de que toda a educação para a uma cidadania democrática é, indissociavelmente, uma educação para os direitos humanos” (Ministério da Educação, 2024, p.5). Esta premissa conduz-nos à reflexão proposta por Spiel e Schwartzman (2018), para quem a educação é uma componente central do progresso social através de quatro dimensões inter-relacionadas: i) humanística pelo desenvolvimento das virtudes pessoais e coletivas; ii) cívica, pela participação ativa numa sociedade democrática; iii) económica, proporcionando competências e habilidades intelectuais e práticas para potenciar a melhoria das condições de vida de cada um e de cada uma, bem como o desenvolvimento da sociedade; e iv) promoção da equidade social e da justiça, baseada no intento de quebrar barreiras de exclusão e fragmentação social, étnica e cultural.
Tendo como bússola, uma vez mais, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (Organização das Nações Unidas, 1948), e ao relembrarmos que a própria educação é consagrada como um direito humano fundamental, contemplamos a sua natureza intrinsecamente dual. Por outras palavras, a educação é afirmada como um direito de todos os seres humanos, devido à posição estratégica que detém quer para a realização pessoal, quer para a transformação e o bem-estar social. Com efeito, para além de um direito humano básico, a educação é, em simultâneo, medular para a concretização de outros direitos humanos e de objetivos nacionais e internacionais de desenvolvimento, estando no âmago da inclusão social e da transformação social (UNESCO, 2014).
Aliás, como temos sempre em mira, a Estratégia Nacional de Educação para o Desenvolvimento (ENED) é um documento de referência incontornável e enquadrador da intervenção nesta área, traçando como objetivo geral a promoção da cidadania global, através da articulação de processos de aprendizagem e de sensibilização social, os quais, focados na transformação social, contribuem para a criação de cidadãos e cidadãs que atuem e intervenham de forma ativa, respeitosa, solidária e responsável.
Por conseguinte, estes objetivos alinham-se com a visão de uma educação de base humanista, como preconizado no Perfil de Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória (Ministério da Educação, 2017b). Postula-se uma educação pautada por valores de Cidadania e Participação, os quais estão intrinsecamente conectados ao respeito pela diversidade humana e cultural, aos direitos humanos, à equidade e à negociação de soluções de conflitos, em prol do bem comum, solidariedade e sustentabilidade ecológica. A Liberdade é outro dos valores que sustentam esta visão de uma educação dinâmica e holística, que almeja concorrer para o desenvolvimento de um cidadão que rejeite qualquer forma de discriminação e exclusão social, conheça e respeite os princípios fundamentais de uma sociedade democrática e os direitos, deveres e garantias em que esta se ancora.
O Referencial em questão, elaborado sob o espírito de um “cuidar ético”, tal como se pode identificar nas orientações curriculares para a Educação Pré-Escolar, vem reforçar e enriquecer o corpus de documentos-chave que consubstanciam uma linha de continuidade conceptual e uma intencionalidade política direcionada para a formação de cidadãos conscientes, críticos e ativamente implicados na defesa dos valores democráticos.
Contudo, a leitura analítica deste Referencial despoleta algumas reflexões e considerações que gostaríamos de partilhar. De facto, embora, no Referencial, seja notória a preocupação em ajustar os descritores de desempenho às faixas etárias a que se destinam (atendendo à complexidade dos processos cognitivos que alguns exigem, à profundidade de determinados conceitos, assim como à exigência pedagógica subjacente a este trabalho), surgem desafios significativos à sua concretização.
Ora, parte-se do pressuposto de que as crianças e jovens podem e devem, desde tenra idade, contactar com a generalidade dos temas e subtemas estabelecidos. Nesta linha de pensamento, através do envolvimento progressivo em tarefas com graus progressivos de exigência, espera-se que desenvolvam hábitos de pensamento crítico e disposições sociomocionais que traduzam a valorização da dignidade humana e das vivências que a corporizam. Não obstante, apesar de o documento incluir, na sua parte final, um glossário, uma bibliografia e um conjunto de ligações úteis, entendemos que a sua mobilização ganharia maior vitalidade e dinamismo, caso fossem integradas (após cada tema e por nível de ciclo), propostas concretas de atividades, estratégias metodológicas, exemplos práticos e/ou indicação de recursos pedagógicos, (dado que a sua operacionalização é deixada em aberto). Ademais, há que ter presente que o Referencial é um instrumento de carácter facultativo, destinado a apoiar a atividade dos docentes, cuja utilização e efeitos dependerão, em larga medida, da forma como for concebida a ENEC no contexto de cada Escola ou Agrupamento de Escolas.
Embora a organização do Referencial por temas e níveis de ensino, quer a explicitação dos descritores, seja clara, preocupa-nos a possibilidade de que o documento não ultrapasse um plano retórico, discursivo ou meramente ideológico, podendo ser interpretado como distanciado das realidades e contextos escolares, sinalizando o desfasamento entre teoria e prática, o que tantas vezes é alvo de críticas. Esta possibilidade torna-se particularmente inquietante, sobretudo porque é nossa convicção, tal como defendido na ENEC e tendo em conta a nossa experiência profissional, que a vivência da cidadania deve estar enraizada na própria cultura da escola, potenciada por lógicas de participação, de corresponsabilização e por processos vivenciais – o que constitui, claramente a antítese de um ensino academicista e conteudista, que Freire (1975) designou por educação bancária, demarcada pela verticalidade da relação pedagógica, pela passividade e opressão do aluno, enquanto sujeito crítico, livre e autónomo.
Um desafio que deixamos para futuras conceções deste tipo de documentos prende-se com a partilha de práticas pedagógicas, projetos e experiências participativas e democráticas, em contextos de educação formal ou não formal. Referimo-nos a propostas que dialoguem com a noção de alfabetização crítica desenvolvida por Andreotti (2006), que tenham por finalidade empoderar indivíduos e comunidades para refletir, questionar e desafiar – de forma ética, informada e responsável – estruturas de poder e de governança que perpetuam o status quo e que, tantas vezes, constituem terreno fértil para diversas formas de injustiça, desigualdade e assimetrias persistentes, as quais recolocam os direitos humanos como uma (re)construção urgente, permanente e inacabada.
Referências
- Andreotti, V. (2006). Soft versus critical global citizenship education. Policy & Practice: A Development Education Review, 3, 40-51.
- Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho. Estabelece o currículo dos ensinos básico e secundário e os princípios orientadores da avaliação das aprendizagens. Diário da República, 1.ª série, n.º 129. https://dre.pt/dre/detalhe/decreto-lei/55-2018-115652962.
- Freire, P. (1975). Pedagogia do oprimido (3.ª ed.). Porto: Afrontamento.
- Fricke, H.-J., Gathercole C. & Skinner, A. (2015). Monitoring Education for Global Citizenship: A Contribution to Debate. Brussels: DEEEP.
- Gaudelli, W. (2009). Heuristics of Global Citizenship Discourses towards Curriculum Enhancement. Journal of Curriculum Theorizing, 25 (1), 68–85.
- Ministério da Educação. (2017). Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania. Direção-Geral da Educação. https://www.dge.mec.pt/sites/default/files/ECidadania/Docs_referencia/
estrategia_cidadania_original.pdf. - Ministério da Educação. (2017). Perfil dos alunos à saída da escolaridade obrigatória. Direção-Geral da Educação. https://www.dge.mec.pt/sites/default/files/Curriculo/Projeto_Autonomia_e_Flexibilidade/
perfil_dos_alunos.pdf. - Ministério dos Negócios Estrangeiros. (2018). Estratégia Nacional de Educação para o Desenvolvimento 2018–2022. Camões – Instituto da Cooperação e da Língua, I.P. https://www.instituto-camoes.pt/images/cooperacao2/resolened1822.pdf.
- Ministério da Educação. (2024). Referencial de educação para os direitos humanos. Direção-Geral da Educação. https://www.dge.mec.pt/sites/default/files/ECidadania/educacao_Direitos_Humanos/
documentos/referencial_direitos_humanos_2024.pdf. - Organização das Nações Unidas. (1948). Declaração Universal dos Direitos Humanos. https://www.un.org/en/about-us/universal-declaration-of-human-rights.
- Spiel, C. & Schwartzman, S. (2018). A contribuição da educação para o progresso social. Ciência & Trópico, 42(1), 22-86. Retrived from: https://periodicos.fundaj.gov.br/CIC/article/view/1721.
- Tawil, S. (2013). Education for ‘global citizenship’: A framework for discussion (ERF Working Papers Series, No. 7). UNESCO Education Research and Foresight. https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000226986.
- Watts, L., & Hodgson, D. (2019). Social justice theory and practice for social work: Critical and philosophical perspectives. Springer. https://doi.org/10.1007/978-981-13-3621-8.
1 | Instituto de Educação da Universidade de Lisboa; Unidade de Investigação e Desenvolvimento em Educação e Formação (UIDEF). |
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2 | Instituto Politécnico Jean Piaget do Sul; Insight – Piaget Research Center for Ecological Human Development. |
3 | https://www.dge.mec.pt/noticias/referencial-de-direitos-humanos. |