Antónia Barreto [1] Instituto Politécnico de Leiria e Centro de Estudos Internacionais (CEI-IUL). & Clara Carvalho [2]ISCTE-IUL e CEI-IUL.

Resumo:

Para Paulo Freire, a luta pela independência da Guiné-Bissau e os anos que se lhe seguiram constituíram a concretização de princípios ideológicos que orientaram a sua proposta pedagógica. Admirador convicto de Amílcar Cabral e conhecedor da ideologia do PAIGC, abraçou o convite que lhe foi dirigido em 1975 para apoiar a alfabetização no país. Neste contexto, realizou várias deslocações ao país e contactou com o centro de superação e formação de professores Máximo Gorki. Paulo Freire encarava-o como o embrião de uma universidade do povo e a implementação da educação enquanto ato político gerador de Desenvolvimento.

Palavras-chave: Paulo Freire; Formação de Professores na Guiné-Bissau; Centro Máximo Gorki; Princípios Pedagógicos PAIGC.

Abstract:

Paulo Freire envisaged the struggle for independence in Guinea-Bissau and the years that followed as the materialization of the ideological principles that guided his pedagogical proposal. A convinced admirer of Amilcar Cabral and connoisseur of the PAIGC ideology, he immediately embraced the invitation addressed to him in 1975 to support literacy in the country. In this context, he made several visits to the country and contacted the teacher training and improvement center Máximo Gorki. Paulo Freire saw it as the embryo of a university of the people and the implementation of education as a political act that generated Development.

Keywords: Paulo Freire; Teacher Training in Guinea-Bissau; Máximo Gorki Center; PAIGC Pedagogical Principles.

Resumen:

Para Paulo Freire, la lucha por la independencia en Guinea-Bissau y los años que siguieron constituyeron la materialización de los principios ideológicos que guiaron su propuesta pedagógica. Admirador convencido de Amílcar Cabral y conocedor de la ideología del PAIGC, aceptó la invitación que se le dirigió en 1975 para apoyar la alfabetización en el país. En este contexto, realizó varias visitas al país y se comunicó con el centro de formación y perfeccionamiento docente Máximo Gorki. Paulo Freire lo vio como el embrión de una universidad del pueblo y la implementación de la educación como un acto político que generaba desarrollo.

Palabras clave: Paulo Freire; Formación de Profesores en Guinea-Bissau; Centro Máximo Gorki; Princípios Pedagógicos PAIGC.

Introdução

A obra de Paulo Freire na Guiné-Bissau, onde esteve 6 vezes entre 1975 e 1976, tem sido alvo de diversas publicações que versam sobre a sua metodologia pedagógica, a relação com o PAIGC e, em particular, o pensamento de Amílcar Cabral, e sobre a influência desta experiência nas suas ações futuras. Neste artigo pretendemos abordar um tema menos conhecido devido à escassez das fontes: a influência do pensamento de Freire nas atividades desenvolvidas pela escola de formação de professores combatentes da liberdade da pátria, o Centro de Capacitação e de Recuperação de Professores Maximo Gorki. Situado em Có, na região de Cacheu, norte da Guiné-Bissau, este centro esteve ativo de 1975 a 1982. O seu objetivo foi formar os antigos combatentes com experiência como professores das escolas das zonas libertadas, como os novos educadores da população. Era uma escola de formação de professores dedicada a um grupo particular onde foram experimentadas e aplicadas novas metodologias, influenciadas pela “educação militante” empreendida pelo PAIGC nas zonas libertadas durante a guerra nacionalista, e pelos princípios da pedagogia da libertação de Freire.

Apesar de se tratar de um projeto inovador pelos seus objetivos e pela metodologia seguida no ensino, que incluía não só a formação como a integração na sociedade envolvente a partir da prestação de serviços à comunidade, esta experiência tem sido pouco reportada na literatura. A falta de dados e de fontes sobre este período e esta escola em particular deixaram uma lacuna no conhecimento tanto da aplicação do pensamento de Freire como da história da educação na Guiné-Bissau. Este artigo visa o reconhecimento do papel desempenhado por esta escola no pensamento de Freire e da sua visão sobre o ensino na Guiné-Bissau, onde reconhecia na visão de Amílcar Cabral sobre a educação uma simbiose com os seus próprios princípios. É seguida uma metodologia qualitativa baseada em recolha de informação documental e relatos orais, abordamos este tema a partir de três tipos de fontes: em primeiro lugar, a experiência vivida de uma das cooperantes portuguesas que lecionaram nesse centro. Depois, a recolha de fontes primárias constituídas por publicações da época, nomeadamente relatórios ministeriais e publicações na imprensa, em particular no jornal oficial do PAIGC, Nô Pintcha. Esta documentação, de difícil acesso, encontra-se atualmente num acervo particular. Finalmente, baseamo-nos na bibliografia existente e, em primeiro lugar, na obra Cartas à Guiné-Bissau de Paulo Freire (1978), onde são relatadas as suas experiências na Guiné-Bissau.

O Centro de Capacitação e de Recuperação de Professores Máximo Gorki em Có, região de Cacheu, inseria-se na política de educação de adultos empreendida pelo PAIGC e possuía a característica de ser dedicado à reconversão em professores dos antigos combatentes e, em particular, dos que ensinavam nas áreas libertadas (Borges, 2019, p. 165). O Centro empregava uma metodologia particular que incluía a recolha e transição da história e relatos orais da população das comunidades vizinhas. Estes testemunhos deveriam ser trabalhados pelos estudantes e o resultado discutido com a população com o objetivo de criar uma coleção de relatos orais que formassem a história contada da Guiné-Bissau (PAIGC, Educação, tarefa de toda a sociedade, p. 21). Neste quadro, os princípios pedagógicos de Paulo Freire serviram, a um tempo, de inspiração e foram inspiradores das políticas educativas freirianas. Paulo Freire considerou o Centro de Có um caso exemplar da aplicação dos princípios de educação propostos por Amílcar Cabral (Freire, 1978), que incluíam: “criar uma alternativa face à educação colonial; descolonizar os espíritos submetidos à propaganda colonial e à consequente alienação; promover a mobilização contra a opressão colonial; emancipar os espíritos face às forças obscurantistas locais; e criar as condições para o afastamento da Guiné-Bissau dos modelos estrangeiros de um desenvolvimento alienador” (Koudawo, 1996, p. 75). Inseria-se no modelo do que a historiadora Sónia Vaz Borges designa de “educação militante” seguida pelo PAIGC, segundo a visão pedagógica de Amílcar Cabral. Este conceito, que só surge de forma explícita em 1978, descreve o sistema de ensino do PAIGC que visava a educação dos futuros quadros e profissionais envolvida não apenas nos conhecimentos académicos, como no conhecimento ideológico e na articulação com o povo e o conhecimento tradicional (Borges, 2019, p. 106). Para o PAIGC, a educação devia-se aplicar a três grupos distintos: o professor militante, o militante armado (militar) e o estudante militante. Como Sónia Borges nota, este é um conceito mais vasto que foi seguido pelos movimentos anticoloniais e é influenciado pela ideologia socialista, o pan-africanismo, e todo o contexto histórico em que se desenvolve a luta nacionalista na Guiné-Bissau. Trata-se de um conceito complexo, que implica uma praxis de libertação:

The concept and praxis of militant education aimed that pupils, civilian population and military militants in a combination of political teaching, technical training and the shaping of individual and collective behaviors, were supposed to be guided toward the development of the Self as a liberated African citizen whose work was to give their conscious contribution to the sustainable development of the newly independent liberated country, integrated into the international system of states (Borges, 2019, p. 107).

A aproximação da definição de “educação militante” à visão de Paulo Freire da pedagogia da libertação é evidente. Ambas proclamam a necessidade da educação universal, a alfabetização e educação pela proximidade cultural, a valorização da cultural popular e, sobretudo, o papel fundador da educação na libertação das consciências. A relação de simbiose conduziu Freire a enaltecer a atividade do Centro Máximo Gorki, um encontro apenas aflorado na literatura (Borges, 2019).

Procurando enquadrar este encontro entre Paulo Freire e o Centro de Có, este artigo aborda o lugar de Paulo Freire enquanto o pedagogo convidado pelo governo da jovem república para inspirar a educação de adultos no país; o contexto nacional em que as suas visitas se desenrolam e o historial pedagógico do ensino, contrastando o ensino colonial e o projeto educativo do PAIGC. Descreve o Centro Máximo Gorki, a visão de Freire sobre a formação de professores e as limitações que conduziram ao encerramento do centro.

Paulo Freire: o pedagogo

Pequeno país situado na costa ocidental africana, a Guiné-Bissau tem merecido a atenção de muitos pensadores tanto no período de pré-independência como de pós-independência. Entre eles sobressai Paulo Freire (1921-1997), pedagogo e pensador brasileiro de influência mundial, com um pensamento pedagógico profundamente enraizado numa orientação política em que a Educação é a forma de se alcançar o Desenvolvimento. A metodologia de alfabetização segundo o método de Paulo Freire tem sido implementada em múltiplos países.

Perseguido politicamente pela ditadura brasileira pelas suas ideias marxistas, viveu alguns anos em Genebra, Suíça, enquadrado no Instituto de Ação Cultural (IDAC). Em 1975 foi convidado pelo governo guineense para apoiar a tarefa de alfabetização de adultos. Entre 1975 e 1976 foi 6 vezes à Guiné-Bissau, a convite do PAIGC. Numa das suas visitas, em 1976, permaneceu no Centro Máximo Gorki 3 dias onde conviveu alegremente com 60 professores estagiários e a equipa de professores do Centro (Freire, 1978).

Profundamente atento à política do seu tempo, Freire acompanhou as lutas de libertação das antigas colónias portuguesas e seguia a evolução das repúblicas recém-independentes, como é o caso da República da Guiné-Bissau. Manifestou verdadeira admiração pelos seus líderes, entre eles Amílcar Cabral (1924-1973), fundador e presidente do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC):

Tal qual Guevara, tal qual Fidel, Amílcar esteve constantemente em comunhão com seu povo, cujo passado conhecia tão bem e em cujo presente se encontrava tão radicalmente inserido – o presente da luta a que se deu sem restrições. Cabral podia, assim, prever e antever. Por isso é que, em todo hoje que ele intensamente vivia, havia sempre um sonho possível, um viável histórico, a começar a ser forjado no hoje mesmo (Freire, 1978, p. 19).

A presença de Freire em África teve início com a sua deslocação à Tanzânia que o marcou profundamente:

… quão importante foi, para mim, pisar pela primeira vez o chão africano e sentir-me nele como quem voltava e não como quem chegava. Na verdade, na medida em que, deixando o aeroporto de Dar es Salaam, há cinco anos passados, em direção ao “campus” da universidade, atravessava a cidade, ela ia se desdobrando ante mim como algo que eu revia e em que me reencontrava. Daquele momento em diante, as mais mínimas coisas – velhas conhecidas – começaram a falar a mim, de mim (Freire, 1978, p. 9).

Visita a Guiné-Bissau pela primeira vez em setembro de 1975 com a equipa do IDAC também apoiado pelo Departamento de Educação do Conselho Mundial de Igrejas. Sobre essa deslocação escreveu:

Poderia dizer: quando “voltei” à Guiné-Bissau… gostaria de sublinhar a satisfação com que recebemos, os que fazemos o Departamento de Educação do Conselho Mundial de Igrejas e a equipe do IDAC, na primavera do ano passado, o convite oficial do governo daquele país através do Comissariado de Educação para, em uma primeira visita, discutir as bases de nossa colaboração, no campo da alfabetização de adultos (Freire, 1978, p. 9).

À medida que acompanhava as atividades de alfabetização, escreveu o livro Cartas à Guiné- Bissau: registros de uma experiência em processo, dedicado a Amílcar Cabral, educador-educando de seu povo, livro-relatório como lhe chama, no qual apresenta a sua visão sobre o processo de alfabetização guineense e sobre outras dinâmicas implementadas no âmbito da educação, propostas sobre o que se deveria fazer no setor da educação e ainda considerações político-filosóficas que enquadram os pontos anteriores. São seis cartas, escritas ao longo de 1975 e 1976 à Comissão Coordenadora dos trabalhos de alfabetização em Bissau, complementadas com outras missivas endereçadas ao Comissário de Estado da Educação, na altura Mário Cabral. A primeira carta data de janeiro de 1975 e a última de março de 1976. Na introdução e no post-scriptum dessa obra, Paulo Freire apresenta a sua visão sobre as atividades do centro Máximo Gorki, escola de superação de professores antigos combatentes da luta de libertação, e sobre o paradigma ideológico que o enquadrava.

Para compreendermos a visão de Freire sobre a importância do Centro, o seu funcionamento e as suas expectativas, fazemos uma apresentação sumária do ensino na Guiné-Bissau na época colonial e sobre o ensino implementado pelo PAIGC nas zonas libertadas.

Guiné-Bissau: o país

O PAIGC proclamou unilateralmente a independência da Guiné-Bissau em Madina de Boé, em 24 de setembro de 1973, após 11 anos de luta armada, iniciada a 23 de janeiro de 1963. O novo país independente só foi reconhecido por Portugal no ano seguinte, após a revolução portuguesa de 25 de Abril de 1974.

Para a administração colonial, a Guiné foi um posto militar e um entreposto comercial, com exploração de matérias-primas e recurso à mão de obra local enquadrada no regime do indigenato. Este estatuto, apenas abolido em 1962 [3]Adriano Moreira, ministro do Ultramar (1961-1963) promoveu a abolição do Regime do Indigenato em 1962. Em 1955 participara na Conferência de Bandung onde se discutiu a obrigatoriedade do fim do … Continue a ler , caracterizava-se por distinguir os deveres e direitos da população considerada “civilizada” e “assimilada” dos “indígenas”, supostamente regidos pelo direito costumeiro, com a obrigação de participarem nas obras públicas e nas explorações agrícolas e sem direitos civis. Trata-se de um regime jurídico de “dupla legislação” em que se basearam as várias práticas coloniais (Mamdani, 1996) e uma das formas mais contestadas do exercício dessa dominação. No caso português foi aplicado nas colónias continentais africanas (Angola, Guiné e Moçambique) [4]O regime de diferenciação do ensino para colonos e colonizados inseria-se numa política mais vasta de dupla legislação consagrada no Estatuto do Indigenato, criado em 1917 e reiterado por … Continue a ler . Contudo, a fraqueza da implantação económica colonial permitiu a manutenção das comunidades tradicionais, particularmente na Guiné, a colónia de menor investimento no setor produtivo.

Nos anos seguintes à independência a Guiné-Bissau atravessou uma situação económica e social particularmente difícil. A população era de 777.2145 habitantes (censo de 1979) com uma densidade populacional de 21.512 habitantes/k2, concentrando-se 15% da população em Bissau. Constituída por várias etnias e com fracos laços de identidade nacional, a economia era essencialmente agrícola e rural (87,8% do PIB), sendo que o sector secundário correspondia a apenas 3,2% e o terciário 9,0% do PIB nacional (CECP, 1980, p. 76). Uma parte dominante das atividades económicas desenrolava-se no quadro de uma economia não monetária e com poucas infraestruturas, com uma taxa de crescimento médio anual de 1,4% (Comissariado de Estado da Coordenação Económica e Plano,1980, p. 76). Praticava-se uma agricultura tradicional, de subsistência, assente em práticas comunitárias, com um conhecimento limitado e pouca utilização de técnicas não estritamente manuais. Entre os múltiplos problemas a ultrapassar estava a falta de quadros, o elevado nível de analfabetismo que ultrapassava os 90% e a necessidade de criar e implementar um sistema educativo distinto das práticas de escolaridade colonial, profundamente elitista, reprodutora das relações políticas vigentes e maioritariamente da responsabilidade das missões católicas.

O ensino no período colonial

Um dos sectores mais carentes no novo país independente era o da educação, uma consequência direta da política colonial portuguesa. Em 1950, 504.928 habitantes da Guiné eram analfabetos, correspondendo a 98,85% de uma população total de 510.777 habitantes (Ferreira, 1977, p. 79). Em todo o território havia apenas 11 escolas oficiais que ministravam o ensino primário, onde só se podiam matricular os estudantes oriundos de famílias classificada como “civilizadas”. O ensino das populações rurais estava confiado às missões católicas que mantinham, em 1950, 45 escolas com 1.044 alunos no “nível rudimentar”, correspondendo a 2 anos e escolaridade (Macedo, 1976). Em 1963-1964 havia apenas 123 escolas primárias com 188 professores e um total de 11.514 alunos, e 33 postos escolares, com 53 professores e 1.376 alunos (Cá, 2007, p. 60 e 61) [5]Pela reforma de 1964 acabou a distinção entre ensino primário oficial e ensino de adaptação ou rural missionário, sendo todo o ensino primário considerado oficial.. O ensino liceal teve início em 1953, a partir de um colégio privado subsidiado pelo estado, que se transformou no liceu Honório Barreto em 1957. A escola técnica foi criada em 1959. Ambos estes tipos de ensino secundário acolhiam um número reduzido de alunos: em 1962 o liceu era frequentado por 259 alunos e a escola técnica por 308 alunos (Soares, 1960, p. 5). A frequência do ensino secundário por alunos africanos era muito reduzida. A formação de quadros originários da Guiné durante o período colonial foi também muito limitada. Segundo Luísa Teotónio Pereira e Luís Moita, desde 1471 até 1961, apenas se formaram 14 guineenses com curso superior e 11 ao nível do ensino técnico (Pereira & Moita, 1976, p. 106-107). A formação de professores na Guiné teve início em 1966, com a criação da escola de habilitação de professores de posto que formava docentes para o meio rural em Bolama. Inicialmente denominada Arnaldo Schultz em homenagem ao governador da época, foi renomeada escola Amílcar Cabral em 1975. Apenas em 1973/74 foi criada, em Bissau, a escola do Magistério Primário, vocacionada para a formação de professores do ensino primário, que se transformou na Escola Normal 17 de Fevereiro em 1980.

Durante o período colonial, apesar do aumento do número de escolas e alunos, os conteúdos ensinados continuavam a desvalorizar a história e as culturas africanas, e a reproduzir o que se ensinava na metrópole. Praticava-se uma:

pedagogia autoritária que reforçava a submissão ao colonizador e incitava a sua imitação como único critério de sucesso, que só poderia ser individual, porque o conteúdo do ensino era a realidade da metrópole pois a Africa não tinha história. Ela não existia até que o colonizador a tivesse descoberto e habitado. Até mesmo nos anos 70 no liceu de Bissau as mulheres dos oficiais que serviam no exército português continuavam a ensinar aos jovens guineenses a epopeia dos navegadores portugueses que haviam levado Deus e a civilização aos povos selvagens de três continentes (Cá, 2007, p. 63).

A escola nas zonas libertadas

A escolarização das populações constituiu um objetivo do PAIGC durante o período da luta armada de libertação que decorreu ao longo de 11 anos. Estava organizada em torno do lema “unidade, luta e progresso” e a sua concretização passava, no entender do líder e ideólogo Amílcar Cabral, pela educação e formação das populações. Pretendia-se consciencializar e valorizar as culturas nacionais identitárias, analisadas à luz da evolução histórica do país e do mundo, e assumidas como património cultural nacional, capaz de demarcar o país em relação a Portugal. Para Cabral,

criar escolas é desenvolver a instrução em todas as regiões libertadas; é reforçar cada dia mais a formação política dos professores, a sua dedicação ao Partido e ao Povo (…) Eduquemo-nos, eduquemos as outras pessoas, eduquemos a população em geral, para combater o medo e a ignorância, para eliminar pouco a pouco a sujeição natureza e às forças naturais que a nossa economia ainda não conseguiu controlar (Davidson, 1975, p. 155).

Tratava-se de um processo de libertação da cultura colonial e de uma ação de conscientização cultural que passou pela criação de escolas nas zonas libertadas, indo ao encontro das populações que estiveram sempre profundamente implicadas na luta armada. A educação estava integrada no conjunto das atividades do partido e era politicamente assumida como uma forma de luta contra o colonizador que mantinha a opressão pelo obscurantismo e pela ignorância. A escola que dá acesso ao conhecimento é considerada um instrumento para a transformação do país. Graças à escola, constrói-se o Homem Novo, “produtor consciente das suas responsabilidades históricas e conhecedor da sua participação como protagonista das transformações socioeconómicas” (CEEN/DGE, 1979a).

A educação era considerada um elemento da luta de libertação, e o professor um combatente, por isso a tarefa educativa implicava a aprendizagem, a produção agrícola e a defesa do inimigo. O lema era: “aqueles que sabem devem ensinar aos que não sabem”. Esta palavra de ordem foi compreendida e cumprida militantemente no calor da luta. Amílcar Cabral, ao falar da instrução e das qualidades do professor, disse: “criar escolas é desenvolver instrução em todas as regiões libertadas; é reforçar cada dia mais a formação política dos professores, a sua dedicação ao Partido e ao Povo” (1º encontro de ministros e educadores dos países emergentes da luta de libertação nacional contra o colonialismo português, citado em CEEN/DGE, 1979b). Por seu turno Aristides Pereira, Secretário-Geral do PAIGC e mais tarde primeiro presidente da República de Cabo Verde, declarou no discurso oficial de comemoração de 20 anos da Luta de Libertação:

A elevação do nível escolar nas regiões libertadas é outra manifestação do caráter exemplar da nossa Luta de Libertação Nacional que sempre perseguiu o objetivo de destruir as bases da presença colonial no nosso país e construir sobre os seus escombros uma nova sociedade: um Homem Novo, capaz de aprender e dominar a natureza, consciente da sua dignidade, do valor da sua cultura e da sua capacidade, ao lado dos outros homens, no enriquecimento do património Universal (Nô Pintcha, 1976).

A partir de 1964 multiplicaram-se as escolas nos arredores das tabancas situadas nas zonas libertadas, mas suficientemente afastadas para salvaguardar a segurança das populações em caso de ataque às escolas. Estas eram barracas e as carteiras eram de tara ou tronco de palmeira. Por vezes as escolas consistiam apenas de alguns troncos colocados debaixo de grandes árvores. A frequência era limitada a crianças com idade superior a 10 anos para garantir condições de fuga. Um primeiro livro de leitura foi feito em 1964 e, graças à ajuda sueca, passou a dispor-se de manuais. Ensinava-se a ler, escrever e contar, inserindo essa aprendizagem nos princípios ideológicos do partido: “sentir que cada dia aumentam na cabeça do aluno os conhecimentos do meio, sem ele avançar no plano cultural, tudo aquilo que faz-produzir, fazer boa política, combater-não dá resultado nenhum” (Cabral, 1979, p. 71).

Os docentes eram pessoas das tabancas, a maior parte apenas habilitadas com o ensino primário ou habilitações menores, a quem era atribuída essa função pelo PAIGC. Recebiam o convite e

um professor avisado de que tinha que abrir uma escola imediatamente carregava a sua mochila, chegava à região escolhida, matriculava os alunos e deslocava uma missão à fronteira a fim de ir buscar livros e outros materiais escolares. Dessa missão faziam parte crianças e adultos. O professor passava a comer juntamente com os combatentes e fazia o seu trabalho com toda a dedicação (Pereira, 1977, p. 104-105).

Em 1965 pela decisão tomada no 1º congresso do PAIGC em Cassacá foi criada, em regime de internato, a Escola Piloto de Conacri, República da Guiné, que atendia órfãos da guerra e outros alunos, vindos das escolas das zonas libertadas que se distinguiam pelas suas competências. Esta escola foi inaugurada em 23 de janeiro de 1965 em Rontoma, nos arredores de Conackri, por Luís Cabral (Namone, 2014, p. 66). No mesmo ano foi inaugurado o Instituto de Amizade, que desempenhava funções de gestão e coordenação à semelhança de um ministério da educação. Era uma estrutura vocacionada para criar jardins de infância, escolas de ensino primário e secundário, internatos e escolas agrícolas com recurso à solidariedade internacional. Os internatos e semi-internatos entretanto criados ensinavam a ler, escrever e contar, davam formação militante e noções de política. Tinham ainda que assegurar a sua própria subsistência recorrendo ao trabalho de professores e alunos. O trabalho produtivo era fulcral e, segundo Amílcar Cabral, “(…) a escola cuidava do ensino e preparava para o trabalho de forma que os alunos não pensem que ir à escola é não trabalhar a terra” (CEEN/DGE, 1979b).

A evolução numérica de escolas, professores e alunos é notória nas áreas libertadas, como demonstrado pelos dados em baixo.

Ano escolar Nº de escolas Nº de professores Nº de alunos
1965/66 127 191 13.361
1966/67 159 220 14.386
1967/68 158 284 9.384
1968/69 134 243 8.130
1969/70 149 248 8.559
1970/71 157 251 8.574
1971/72 164 258 14.531
1972/73 156 251 15.000

Tabela 1 – Educação nas zonas libertadas de 1965/1966 a 1972/73. Fonte: Cá, 2007, p. 79.

São definidas as políticas educativas para a criação do “Homem Novo” que deveria ter espírito critico e criativo, participar ativamente na reconstrução nacional, identificar-se com as aspirações do Povo, cometer o “suicídio de classe” e assumir a “reafricanização das mentalidades”. Este espírito militante e voluntarioso é retratado num relatório do departamento de formação e superação de professores onde se lê: “o que alimentou os nossos professores naquela época foi a capacidade militante, a sua vontade patriótica e o seu elevado espírito de solidariedade. A sua formação pedagógica era praticamente nula” (CEEN/DGE, 1979b).

O processo de escolarização foi também acompanhado pela formação de quadros necessários para o trabalho político e para a administração das zonas libertadas. Fortemente apoiado por bolsas internacionais, o número de formados contrastava pela positiva com a situação colonial, onde até 1961 se tinham graduado um total de 14 pessoas. Nas áreas libertadas e graças aos apoios externos, em 10 anos, de 1963 a 1973, foram formados 36 quadros com o curso superior, 46 com o curso técnico médio, 241 com cursos profissionais e de especialização e 174 quadros políticos e sindicais (Commissariat d’état à l’economie et aux finances, citado por Cá, 2007, p. 81).

O centro de superação de professores combatentes da liberdade da pátria Máximo Gorki

A paz provoca um aumento exponencial da escolarização, colocando em evidência as carências do sistema que se manifestava sobretudo em recursos humanos. A escola do magistério primário de Bissau e a escola de monitores escolares Amílcar Cabral de Bolama não asseguravam a formação de docentes em número suficiente para as necessidades do país. Em 1976 a situação docente era assim descrita:

A Guiné-Bissau conta com uma população escolar de cerca de 94.513 alunos (Bissau 28.303 e o interior 66.210). O corpo docente que cobre essa densidade de população escolar é aproximadamente 1,5% professores primários diplomados, 32% professores de posto, 66,50% monitores escolares. Portanto a maioria, como se vê, é constituída por monitores escolares que, como formação de base, apenas têm a 4ª classe acrescida de algumas semanas de informações pedagógicas e participação em alguns estágios. Por isso os seus conhecimentos gerais são fracos como são rudimentares as suas técnicas didáticas e pedagógicas, constituindo assim um sério obstáculo a qualquer transformação ou reforma a introduzir no ensino (Macedo, 1976, p. 7).

Por outro lado, o Estado considerava ter a responsabilização moral junto dos antigos combatentes, que tinham a expectativa de entrar para o funcionalismo público, mas não possuíam habilitações académicas ou do ensino profissional, de lhes assegurar a aquisição de competências profissionais. A sua formação como futuros docentes permitiria assim suprir as carências do país e responder às expectativas criadas. Neste contexto foram criados o Comissariado de Estado de Educação Nacional e Cultura e, no âmbito deste, o Departamento de Formação de Professores que também supervisionava o ensino primário no país. Uma das primeiras medidas deste Departamento, tomada em 1975, foi a criação da Escola de Superação dos Combatentes da Liberdade da Pátria destinada aos que haviam lecionado nas escolas criadas pelo partido nas regiões libertadas. Denomina-se Centro Máximo Gorki e, para o seu funcionamento, foram aproveitadas as instalações de um antigo quartel português no sector de Bula, região de Cacheu, tabanca de Có, habitada predominantemente por população mancanha. Para criar as condições mínimas num espaço muito deteriorado foi primeiro apresentado o projeto localmente através dos comités de tabancas e, uma vez aceite, a população foi mobilizava para a limpeza do velho quartel e para a capinagem do terreno. Os objetivos definidos para o Centro Máximo Gorki eram os seguintes:

formar e superar os professores do ensino primário que participaram na luta armada de libertação nacional preparando-os para atingir cada vez mais conhecimentos pedagógico-didáticos tendo em vista a sua transformação em verdadeiros agentes dinamizadores. O seu trabalho devera ir ao encontro dos problemas, interesses, desejos e necessidades da população (…) Deve reforçar a formação politica da população; preparar professores capazes de contribuir ativamente na formação de novas gerações de acordo com os princípios definidos pelo PAIGC nesta etapa de Reconstrução Nacional; contribuir para formar nos nossos professores uma grande vontade de superação, um espírito autodidático que lhes permita estar sempre informados dos progressos da técnica e da ciência (CEEN/DGE, 1979b, p. 9).

Estes objetivos já se enquadram no que veio a ser definido posteriormente pelo III congresso do PAIGC, em 1977, como princípios que deveriam nortear a formação de professores, tal como é relatado no relatório do Conselho Superior da Luta:

a educação deverá ter um conteúdo e uma forma inteiramente de acordo com as opções e princípios traçados pelo PAIGC e orientar-se no sentido da prossecução dos seus objetivos; a educação visando a formação integral do homem deve ser simultaneamente política, ideológica, moral, técnica, intelectual e física (…) Deve haver uma ligação orgânica entre o trabalho manual e intelectual, entre a teoria e a prática, o pensamento e a ação, do Homem Novo gestor da sociedade nova (CEEN/DGE, 1979c, p. 2).

No mesmo congresso foi aprovada a seguinte resolução no que respeita à formação de professores, de acordo com o citado relatório:

Levar a democratização da cultura até às suas últimas consequências é um dos objetivos primordiais do PAIGC. Cabe, portanto, aos organismos especializados a tarefa de:

  • Criar as bases para a superação intelectual das massas, através da extensão da rede de alfabetização;
  • Estabelecer as condições para incorporar os diversos sectores sociais em todos os níveis de ensino;
  • Promover as condições para que as massas tenham acesso à cultura e participem ativamente na criação cultural (CEEN/DGE, 1979c, p. 2).

Os alunos eram, na sua totalidade, ex-combatentes e professores das zonas libertadas, alguns com 8 anos de lecionação. Viviam em regime de internato e recebiam formação durante 3 anos: 2 anos de formação académica correspondente ao ciclo preparatório (6ª classe) e 1 ano de formação pedagógica intensiva, alterada em 1979/80 para 2 anos com atividades letivas nas escolas primárias e atividades produtivas em estreita colaboração com a população, ao mesmo tempo que desenvolviam atividades de pesquisa. Diplomaram-se 7 professores em Có que não tinham sequer a 4ª classe. Começaram por ser 30 alunos, no ano seguinte 60, alargando-se o número nos anos posteriores. Mais tarde, com a elevada afluência de formandos ao Centro, decidiu-se repartir a formação criando secções em diversas regiões: os alunos faziam a superação intensiva das 3º e 4º classes em Djabada na região de Quinara durante 1 ano; em Bula, na escola 23 de Fevereiro, faziam a superação intensiva da 5ª e 6ª classes e, após este nivelamento, faziam em Có a formação profissional que foi oscilando entre 1 e 2 anos de formação. Formaram-se em média 30 alunos por ano até 1982.

O currículo de formação dos professores assentava nas seguintes disciplinas: Português; Aritmética e Metodologia da Matemática, Psico-Pedagogia, Desenho e Trabalhos Manuais, Formação Militante, Educação Sanitária, Educação Musical, Educação Física. Como área central existia o trabalho produtivo assente na agricultura, horticultura e criação de gado. Este currículo reproduzia o modelo escolar desenvolvido nas áreas libertadas, assente na unidade entre o trabalho manual e o intelectual, e incluía uma prática intensa e real de trabalho produtivo.

Segundo Mário Cabral, então Comissário de Estado da Educação, declarou na Revista Educação nº1:

Foi, porém, na escola de Có, onde se alcançou o máximo de ligação entre escola e trabalho produtivo, entre escola e população local, com a integração destas atividades culturais promovidas por aquela. Podemos considerar a escola de Có, realmente, como a primeira escola do país, durante este ano que termina (Freire, 1978, p. 45).

Foi implementada uma relação dinâmica com a comunidade pela intervenção em três níveis fundamentais: na área da saúde o centro assumiu a realização de consultas diárias, a formação de socorristas locais e a educação sanitária, “realizando, sempre em colaboração com os comités de tabancas, reuniões de estudo em que se discutem certos aspetos “mágicos” ligados à saúde”. Também foram criados ciclos de cultura onde se realizava a alfabetização de adultos, seguindo o método Paulo Freire, que implicava uma reflexão sobre a cultura, a política, o ensino e o projeto social a construir:

(…) Jamais tomamos a educação de adultos em si mesma, reduzindo-a a um puro aprendizado mecânico da leitura e da escrita, mas como um ato político, diretamente associado à produção, à saúde, ao sistema regular de ensino, ao projeto global de sociedade a ser concretizado, ver e ouvir, indagar e discutir (Freire, 1978, p. 14).

Eram realizadas pesquisas sobre os aspetos da realidade económica, político-social e cultural da etnia local, a mancanha. O perfil de saída do docente habilitava-o para trabalhar também como agente dinamizador do desenvolvimento comunitário. A formação incidia sobre a melhoria dos níveis político, didático e pedagógico dos formandos e funcionava também como um polo de dinamização sociopolítica da comunidade. Pensava-se depositar o resultado da pesquisa histórica de recolha da tradição oral brame-mancanha no Centro Nacional de Cultura.

A direção do centro foi inicialmente atribuída a um quadro nacional formado em Cuba, dentro dos ideais politico-pedagógicos cubanos. Os professores repartiam-se entre jovens nacionais habilitados com o ensino secundário e que durante dois anos praticavam a “imersão nacional” para terem acesso a bolsas de estudo no estrangeiro, refugiados políticos da Nicarágua, funcionários do Comissariado de Educação e cooperantes internacionais, incluindo-se aqui duas portuguesas e uma holandesa. A gestão assentava numa direção, com representação de alunos, e em assembleias gerais. Os alunos habilitados com o diploma da Escola de Superação de Professores Máximo Gorki eram colocados como professores de ensino primário pelo serviço competente do Comissariado de Educação. Alguns assumiram funções de âmbito cultural e de intervenção social pela formação adquirida na área da animação comunitária.

O Centro de Có rapidamente competiu, em número de formandos, com as duas outras escolas nacionais: em 1978/79 o centro Máximo Gorki tinha 100 alunos, enquanto a escola de Bolama contava com 145 formandos e a escola de Bissau, aberta nesse ano, contava com 150 alunos (CEEN/DGE, 1979b, p. 2). Contudo, o Centro rapidamente entrou em decadência e encerrou em 1982. Segundo o relatório do departamento de formação de professores,

esta escola de características vincadamente inovadoras teve o seu auge em 1976 e 77. Depois, por falta de uma definição clara do seu conteúdo, viu-se obrigada a mudar tomando um caráter mais tradicionalista dentro dos métodos de ensino. Foi-se perdendo a dinâmica inicial e de centro de pesquisa e de estudo da ligação escola/comunidade, escola/vida, catalisador da vontade de aprender por parte dos estagiários e indivíduos da comunidade, passou a uma escola sem vida que não consegue ultrapassar os seus próprios problemas (…) os professores atuais, sem o entusiasmo de 75, mostram-se irresponsáveis sem sentido do dever não sendo em nada ajudados pelo diretor que habituado a agir autónoma e isoladamente no centro não recebeu com objetividade a necessidade de controle por parte do departamento de formação e superação de professores (…) entre alguns erros de funcionamento do centro estão os programas demasiado fechados em si mesmo (…) De notar que esta escola/centro de superação de professores combatentes apresenta casos de indisciplina sobretudo por ingerência de bebidas alcoólicas em excesso (CEEN/DGE, 1979b, p. 28).

O mesmo relatório acrescenta: “dada a inexistência das condições mínimas indispensáveis ao funcionamento como escolas-internato, os centros de Có e Djabada devem ser encerrados e adaptados a escolas do ensino básico elementar” (CEEN/DGE, 1979b, p. 42).

Visão de Paulo Freire sobre o Centro de formação e superação de professores Máximo Gorki

O centro Máximo Gorki concretizou, em várias dimensões, os ideais de Paulo Freire sobre os objetivos, níveis e âmbito do caráter político e ideológico da educação. Para Freire, a educação é um ato político cujo objetivo é a conscientização das pessoas e a resolução dos problemas quotidianos. Segundo ele próprio afirma, a sua pedagogia coincide com os princípios básicos do PAIGC (Freire, 1978, p. 60). Em 1977, depois de uma visita ao centro, escreve o seguinte:

Sentimo-nos, particularmente Elza e eu, fortemente presos a este Centro, o qual jamais deixamos de visitar em nossas idas à Guiné-Bissau. Visitas em que sempre nos impressionam a dedicação de seus professores e o otimismo critico de que se acham infundidos no desempenho de suas tarefas (Freire, 1978, p. 47).

Para Freire, o centro realizava a relação dinâmica entre a teoria e a prática, o ensino, a pesquisa, a intervenção na saúde, a educação e formação política e a alfabetização de adultos. Em relação a esta, os Círculos de Cultura eram a aplicação dos princípios que defendia:

(…) Jamais tomamos a educação de adultos em si mesma, reduzindo-a a um puro aprendizado mecânico da leitura e da escrita, mas como um ato político, diretamente associado à produção, à saúde, ao sistema regular de ensino, ao projeto global de sociedade a ser concretizado, ver e ouvir, indagar e discutir (Freire, 1978, p. 14).

O Centro implementava o trabalho produtivo, o que para Freire constituía a plena metodologia de aprendizagem e produção do conhecimento:

Em certo momento já não se estuda para trabalhar nem se trabalha para estudar; estuda-se ao trabalhar. Instala-se aí, verdadeiramente, a unidade entre a prática e teoria. Mas, insista-se, o que a unidade entre prática e teoria elimina não é o estudo enquanto reflexão crítica (teórica) sobre a prática realizada ou realizando-se, mas a separação entre ambas. A unidade entre a prática e a teoria coloca, assim, a unidade entre a escola, qualquer que seja o seu nível, enquanto contexto teórico, e a atividade produtiva, enquanto dimensão do contexto concreto (Freire, 1978, p. 21).

Freire assume uma visão não neutral da educação guineense e o Centro é perspetivado pela sua atividade, pelas pessoas implicadas e pelos seus objetivos como um campo de inovação e de concretização de princípios, tal como era sentido por participantes ativos na vida quotidiana do centro. Os alunos, todos antigos combatentes, vêm de uma escola ampla que é a vida. Realizam com os professores pesquisas sobre a cultura local que são uma forma de enraizamento do Centro. Freire sensibiliza-se com o espírito de militância que diz orientar tudo o que é feito, o sentido de equipa que cria a vida igualitária no Centro e “a responsabilidade social e política de todos, com relação ao Centro; do Centro, como um todo, com relação ao Povo, com relação à luta de reconstrução nacional” (Freire, 1978, p. 81).

Valoriza a intervenção do Centro nas comunidades e considera-a a aplicação dos princípios do PAIGC e um ato de cultura com implicação nas relações sociais de produção. A este propósito diz o seguinte:

Estas reuniões, poderia dizer, estes seminários em que se discutem problemas sanitários com o povo, às vezes no terreiro limpo, uma espécie de pequena praça no centro de uma tabanca, ou à sombra de uma árvore ou ainda em “palhotas”, palhoças, construídas pela população (…) se centram constantemente na análise da prática social da comunidade. É com respeito à compreensão do mundo que se vem desenvolvendo esta prática – o que sempre caracterizou o comportamento do PAIGC – que o Centro trabalha com as populações. Em última análise, a superação das “debilidades da cultura”, que se constituem na prática social, requer a transformação desta, através das alterações que se vão dando nas relações sociais de produção. Mas, como esta superação não é mecânica e sim dialética, a ação político-pedagógica a ela endereçada é importante e mesmo fundamental (Freire,1978, p. 51).

Sugere o aprofundamento da relação entre a formação, a produção, a cultura, a educação e a sua interpretação no quadro da filosofia política, propondo para os seminários também a temática da alienação cultural, provocada pela presença colonialista, na linha do que fora defendido por Amílcar Cabral. O conhecimento a aprender deveria ser integrado, inter-relacionado e contextualizado num âmbito mais profundo de análise das forças produtivas e da utilização social dessas forças:

Creio, porém, que problemas como o das relações entre saúde, educação e o “modo de produção que representa, em cada fase da história, o resultado da busca incessante de um equilíbrio dinâmico entre o nível das forças produtivas e o regime de utilização social destas forças” (…) ao lado da formação em torno de conhecimentos específicos nos campos da saúde, da agricultura, deveriam constituir objetos de seminários a serem realizados com a equipe de professores efetivos do Centro, com vista a seu trabalho formador junto aos professores estagiários (Freire, 1978, p. 52).

Para Freire, tal como para Amílcar Cabral, a intervenção na comunidade constitui um ato político-pedagógico em que recomenda a análise da prática, a sistematização do conhecimento, a compreensão crítica dos factos locais, embora perspetivados numa visão global. Desta forma, a intervenção político-pedagógica local faz parte da gestão dinâmica do conhecimento a ser construído e da tarefa de reconstrução nacional que visa a criação de “uma nova sociedade que se forja na unidade entre o trabalho manual e o trabalho intelectual; entre prática e teoria” (Freire, 1978, p. 59).

Neste processo de intervenção nas comunidades, e até no desenvolvimento do Centro, os comités de tabanca tem um papel fundamental para Paulo Freire. Estes comités de tabanca são constituídos na maioria por homens, têm a responsabilidade de velar pela aplicação dos princípios do PAIGC e são “uma porta de entrada” na comunidade valorizada por Paulo Freire. A administração do centro assente na figura do diretor, representantes dos professores e dos alunos, na sistemática discussão das medidas a tomar, na avaliação do que se fez e na participação dos alunos em assembleias gerais, que em conjunto garantem o bom funcionamento da instituição. Defende a autonomia da gestão face ao comissariado de educação, condição necessária para que haja uma relação aberta e democrática. Segundo Freire, o comissariado:

Em lugar de asfixiar iniciativas, com um sem-número de exigências burocratizantes, o Comissariado estimula e até exige a iniciativa, a criatividade, sem permitir que sua ação se perca nesse mundo de papéis que vão e que vêm e cuja função principal parece ser a de que um “tome conta” do outro, enchendo o vazio da inoperância “burocratista”. Não há́ vazios inoperantes, “cheios” de gente, nem no Comissariado de Educação nem na Escola de Có. Esta, marcada pela excelente experiência levada a efeito nas zonas libertadas pelo PAIGC e de que é, como disse antes, indiscutivelmente, um prolongamento, vem sendo um exemplo de criatividade e de militância (Freire, 1978, p. 54).

Na perspetiva de Freire o centro irá crescer e tornar-se uma universidade do povo, na qual o conhecimento se vai construindo e conduzirá à formação de um novo intelectual ao serviço do povo e orientado pelos princípios de Amílcar Cabral. Para Freire, o centro era a continuação da experiência educativa desenvolvida nas zonas libertadas. Pretendia que a escola alargasse a sua dimensão de formação a outras áreas profissionais, sempre orientada pelos princípios fundamentais: a compreensão crítica das práticas sociais, a formação política numa dialética constante entre a cultura, o conhecimento e a formação técnico-profissional. O Centro foi considerado em 1976 a escola modelo do país (Freire, 1978).

Conclusão: o que Paulo Freire não viu em Có

O Centro Máximo Gorki foi extinto em 1982 pelo Comissariado de Estado da Educação, sendo a parte escolar, já sem a carga simbólica do Centro, sido transferida para a cidade de Bula, onde se reconstruiu numa instalação da igreja católica. O Centro estava vocacionado para a superação e formação de antigos combatentes e estes constituíam um número finito. Contudo, este não foi o único motivo, e diversos constrangimentos internos e externos contribuíram para a sua extinção. Em primeiro lugar, razões de ordem logística: embora a carga simbólica do aproveitamento do quartel colonial numa escola fosse importante, as condições físicas do edifício eram precárias e insuficientes. Eram espaços em estado de grande degradação, sem recursos higiénicos, nem acesso a água potável ou eletricidade. Depois, o orçamento reduzido do Comissariado para a Formação de Professores, na altura de 1,7% do orçamento do governo, causava uma grande imprevisibilidade sobre os pagamentos (CEEN/DGE, 1979b). A alimentação de docentes e alunos, todos em regime de internato, deveria ser assegurada pelo Comissariado de Estado da Educação com recurso ao Programa Alimentar Mundial (PAM). Este tinha várias insuficiências, desde logo por as quantidades estarem calculadas com base na dieta europeia e por isso serem manifestamente insuficientes; o abastecimento fazia-se com muita dificuldade pelo reduzido orçamento disponível; finalmente, havia dificuldade de acesso a produtos da dieta alimentar guineense tais como arroz, ovos e peixe. Era atribuída uma bolsa a cada formando de 1.000 pesos para uso pessoal, que estes distribuíam pelas suas famílias nas comunidades de origem: em 1978/79, 53 entre 72 alunos tinham famílias com vários filhos, ficando sem qualquer capacidade financeira (CEEN/DGE, 1979b). A solução adotada, com vista à otimização de recursos, foi mudar a escola para Bula.

A estes fatores vieram-se juntar problemas de expetativa e organização interna. O quadro docente da escola era muito instável, a maioria não possuía formação pedagógica e reproduzia o que aprendera ao longo da sua escolaridade. Por parte dos professores cooperantes, apesar da forte motivação para a docência, predominava a transferência de informação. A mudança de direção do Centro, em 1979, veio causar instabilidade no internato e teve reflexos no funcionamento pedagógico. Nem sempre os programas eram cumpridos por múltiplas razões: falta de materiais pedagógicos, dificuldade nas relações com o Comissariado de Educação por falta de transportes [6]A travessia do rio Geba, em Safim, exigia muitas horas de espera pela jangada. , grande discrepância no perfil dos alunos. A inexistência de escolas anexas fazia o Centro depender do calendário escolar definido pelo Comissariado para a realização dos estágios nas escolas das tabancas vizinhas de Có e obrigava a deslocações por parte dos estagiários, realizadas a custos próprios, o que agravava o orçamento pessoal. Neste quadro, instalou-se no centro algum descontrole no comportamento de alguns docentes e alunos. As baixas expectativas em relação à profissão docente, hoje muitíssimo desvalorizada na Guiné-Bissau, começaram a ganhar terreno. Entretanto reabriram as outras escolas de formação docente (magistério primário de Bissau e a escola Amílcar Cabral em Bolama), aumentando a concorrência. Por outro lado, o programa de alfabetização não atingiu os objetivos pretendidos.

Mas outros fatores, de natureza política e ideológica foram determinantes para o fecho do Centro. Em 1980 deu-se o golpe de Estado liderado por Nino Vieira que desestruturou o projeto político vigente entre 1974 e 1980. Sucedeu-se uma época marcada pela grande instabilidade a nível dos Comissariados, que se traduziram em falta de diretrizes claras e consistentes, foi abolida a Constituição de 1974, e o país entrou numa profunda crise económica. Começou a instalar-se o liberalismo económico a que se seguirá a intervenção do FMI e a implementação do Programa de Ajustamento Estrutural em 1986. Neste contexto, a militância, a emulação nacional, a valorização da escola da vida, a aprendizagem integrada e contextualizada, a educação como ato político defendida por Paulo Freire e que, segundo ele, estava plasmada no Centro Máximo Gorki, deixaram de presidir aos destinos da Guiné-Bissau.

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References
1 Instituto Politécnico de Leiria e Centro de Estudos Internacionais (CEI-IUL).
2 ISCTE-IUL e CEI-IUL.
3 Adriano Moreira, ministro do Ultramar (1961-1963) promoveu a abolição do Regime do Indigenato em 1962. Em 1955 participara na Conferência de Bandung onde se discutiu a obrigatoriedade do fim do colonialismo.
4 O regime de diferenciação do ensino para colonos e colonizados inseria-se numa política mais vasta de dupla legislação consagrada no Estatuto do Indigenato, criado em 1917 e reiterado por regulamentação de 1926, 1942 e 1954, apenas revogado em 1962. O indigenato não foi aplicado a todos os territórios ultramarinos, tendo sido introduzido nas colónias de Angola, Moçambique e Guiné como resultado do fim da escravatura. Na política do Estado Novo os indígenas não eram sujeitos de direitos, mas objetos de uma política em que não participavam e que consistia na criação de mão de obra rural, gratuita, submissa, evangelizada na religião católica. À luz desta política, a cidadania plena era um estatuto individual, não transmissível de pais para filhos. Para requerer a cidadania portuguesa os indígenas deveriam ir a um tribunal local, declarar que desejavam tornar-se assimilados e abandonar os costumes nativos. Um dos principais requisitos, o uso correto da língua portuguesa, estava dependente da acessibilidade à escola e da avaliação feita pelas autoridades locais. Apenas a evangelização podia ser feita nas línguas locais. O Estado intervinha com a indicação dos planos, programas e certificados de exame.
5 Pela reforma de 1964 acabou a distinção entre ensino primário oficial e ensino de adaptação ou rural missionário, sendo todo o ensino primário considerado oficial.
6 A travessia do rio Geba, em Safim, exigia muitas horas de espera pela jangada.
[1] Instituto Politécnico de Leiria e Centro de Estudos Internacionais (CEI-IUL). & Clara Carvalho [2]ISCTE-IUL e CEI-IUL. Resumo: Para Paulo Freire, a luta pela independência da Guiné-Bissau e os anos que se lhe seguiram constituíram a concretização de princípios ideológicos que orientaram a sua proposta pedagógica. Admirador convicto de" data-link="https://sinergiased.org/paulo-freire-na-guine-bissau-um-olhar-sobre-a-escola-de-formacao-de-professores-combatentes-da-liberdade-da-patria-centro-maximo-gorki/">

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References
1 Instituto Politécnico de Leiria e Centro de Estudos Internacionais (CEI-IUL).
2 ISCTE-IUL e CEI-IUL.