Danielle do Nascimento Rezera[1]Profa. Dra. em Educação pela Unifesp. & Eliano Macedo Souza[2]Prof. Me. em Educação pela Unifesp.

Resumo:

No contexto do crescimento das ações e ideais autoritários e neoconservadores na política brasileira, desde a ascensão de governos de extrema-direita que emergiram nas jornadas de julho de 2013, observamos a intensificação de uma agenda pública organizada por uma série de atores políticos e coletivos que disputam as consciências em variados campos educativos. Na esfera escolar, essa relação se expressa em conjunto com as determinações neoliberais de mercadificação da educação. Considerando esses processos, e a ascensão de governos de extrema-direita no Estado e na cidade de São Paulo, analisamos o Projeto de Lei n. 573/2021 e o Decreto n. 68.597, de 10/06/2024, sob a perspectiva metodológica de revisão bibliográfica acerca da privatização e estudo analítico dos referidos projetos. Os resultados demonstram que tais proposições podem ter implicações negativas para o processo democrático no espaço escolar e na socialização dos sujeitos, ampliando os aspectos subalternizantes e alienantes na sociedade.

Palavras-chave: Privatização da Educação; Gestão Escolar; Extrema-direita; Projetos de Leis.

Abstract:

In the context of the growth of authoritarian and neoconservative actions and ideals in Brazilian politics, since the rise of far-right governments that emerged in the July 2013 journeys, we have observed the intensification of a public agenda organized by a series of political and collective actors who dispute consciences in various educational fields. In the school sphere, this relationship is expressed in conjunction with neoliberal determinations to marketize education. Considering these processes, and the rise of far-right governments in the state and city of São Paulo, we analyzed Proposed Law no. 573/2021 and Decree no. 68.597, of 10/06/2024, from the methodological perspective of a literature review on privatization and an analytical study of these projects. The results show that these proposals can have negative implications for the democratic process in the school space and in the socialization of subjects, expanding the subalternizing and alienating aspects of society.

Keywords: Privatization of Education; School Management; Extreme Right; Law Projects.

Resumen:

En el contexto del crecimiento de acciones e ideales autoritarios y neoconservadores en la política brasileña, a partir del ascenso de gobiernos de extrema derecha surgidos en las protestas de julio de 2013, asistimos a la intensificación de una agenda pública organizada por una serie de actores políticos y colectivos que disputan conciencias en diversos ámbitos educativos. En el ámbito escolar, esta relación se expresa en conjunto con las determinaciones neoliberales de mercantilizar la educación. Considerando estos procesos, y la ascensión de gobiernos de extrema derecha en el Estado y en la ciudad de São Paulo, analizamos el Proyecto de Ley 573/2021 y el Decreto 68.597 de 10/06/2024, desde la perspectiva metodológica de revisión bibliográfica sobre privatización y el estudio analítico de los proyectos mencionados. Los resultados demuestran que estas propuestas pueden tener implicaciones negativas para el proceso democrático en el ambiente escolar y en la socialización de los sujetos, ampliando los aspectos subalternizantes y alienantes de la sociedad.

Palabras clave: Privatización de la Educación; Gestión Escolar; Extrema derecha; Proyectos de Leyes.

Introdução

Se tomarmos as concepções de Cox (1987) sobre o neoliberalismo como um amplo programa que dinamiza a revisão ideológica no campo das determinações do mercado, da reconfiguração e ajustamento das forças produtivas e da economia do trabalho — sob a lógica de intensificação da flexibilização de leis trabalhistas e de formas de trabalho, gerando não apenas a fragmentação das classes trabalhadoras, mas sobretudo sua vulnerabilidade vital, política e social —, verificamos que, à medida que as crises do capital se adensam, mais incisiva é a ação do sistema imperialista na disputa pelas consciências em prol da racionalidade que mercadifica, não apenas as relações políticas e econômicas, mas sobretudo as subjetividades. Nesse sentido, Bauman (2008) compreende essa questão como elemento estruturante na ascensão e conservação do neoliberalismo. Essa racionalidade visa formar a sociedade de sujeitos-mercadoria e sociedade de consumidores, em que cada vez mais são formados sujeito-mercadoria-consumidores, que têm seu fator humano “comodificado”.

A intensificação do neoliberalismo no Brasil tem impactado negativamente na cidadania e na democracia participativa, especialmente na educação. Dessa forma, os aparelhos privados de hegemonia (APHs) acabam também por direcionar as bases para o domínio e direção dos grupos que buscam subalternizar a sociedade. O que vemos com processos privatizantes muitas vezes configura-se como o espelho da dominação de classe e seus aparelhos hegemônicos (Gramsci, 1975).

Por esse ângulo, confirma-se que os processos privatistas são essenciais como estratégia de domínio do capital e a manutenção do desenvolvimento do capitalismo (Rikowski, 2017). Para o autor, a privatização na educação não é essencialmente sobre educação, mas se trata do desenvolvimento do capitalismo e do aprofundamento do domínio do capital em instituições específicas (escolas, faculdades, universidades etc.) na sociedade contemporânea. Ademais, para Robertson (2022, p. 16), o impacto dos processos privatistas é explicitado na oferta de serviço desigual, na diferenciação do atendimento, e, portanto, resulta em “sociedades altamente divididas e desiguais que não só sofrem de problemas de coesão social, mas também carecem de um compromisso com a justiça educacional”. A partir dos estudos de Bonnie Honig (2017), Robertson (2022) corrobora que, no processo de privatização, há uma constante erosão da coisa pública, e essa dinâmica enfraquece a disputa por melhores espaços coletivos e do coletivismo, dando lugar aos discursos e estímulos de cunho meritocrático e antidemocrático.

O bloco hegemônico que sustenta tais processos atua, conforme Rummert (2004), sob o princípio de direção cultural e ideológica, e exerce uma ação primordialmente educativa, no sentido de controle ideológico, político e social que molda a ação das classes subalternas, a qual é expressa por organizações que, sob a aparência de defesa do bem comum, na verdade priorizam interesses privados. Isso gera uma tensão na construção e defesa da democracia e suas formas, na medida em que as demandas por participação são utilizadas para criar uma lógica de representação em vez de verdadeira participação política. Dagnino (2004) conceitua essa questão sob a denominação de confluência perversa. Esse processo acaba por estimular um cenário de intensificação do autoritarismo. Robertson (2022) argumenta que a privatização da educação é um processo que envolve a reversão do estado de bem-estar social e a retirada do contrato Estado-cidadão.

Sabemos que os movimentos de extrema-direita que emergiram no Sul e Norte Global são marcados por particularidades e nuances, e sobretudo por aproximações — tais como a forte articulação entre seus grupos, a tomada dos novos meios de comunicação de massas, a adesão ao anticientificismo, à ideologia da dominação (de caráter religioso), além do apelo nacionalista, pautado ora em questões culturais, ora em questões econômicas, de caráter neoliberal, no qual reinam as vantagens privadas em detrimento do ethos público ou coletivo —, observamos, nesses cenários, a intensificação da conformação dos sujeitos organizada no campo das relações pedagógicas da fase atual do neoliberalismo. Cas Mudde apud Sponholz e Özvatan (2024) entende que a extrema-direita carrega traços antidemocráticos, exclusivismo, tradicionalismo e valorização do “livre mercado”, e essencialmente articula um ideário antissistema (Casimiro, 2020). Destaca também que os nativismos e racismos são características da liturgia desse grupo e, no Brasil, por mais que pautas sejam marcadamente contra “a esquerda” e “o comunismo”, há também um discurso que estimula a racialização e um tipo ideal de sujeitos sociais, que pode ser entendida como uma forma de atacar a questão wokeness, além de reforçar certas identidades e explorar as afinidades entre diferentes segmentos sociais.

A partir do Movimento Não vai ter copa, em 2013, e o golpe de Estado em 2016 no Brasil, temos uma orquestrada rede que busca ampliar a hegemonia dos projetos de direita e ultradireita no Brasil, legando-nos através de lawfare a faceta da junção entre o capitalismo neoliberal imperialista e o conservadorismo retrógrado e avesso as instituições democráticas e aspectos constitucionais do Direito. Tal questão avança com a ascensão de Jair Bolsonaro no poder, nas eleições de 2018. A formação da base de apoio do governo Bolsonaro historicamente se organiza para um momento auspicioso em que pudessem atuar de modo hegemônico as Bancadas denominadas BBB (Boi, Bíblia e Bala). Hoje elas são o centro dinâmico do processo político, e nelas um único dissenso ocorre: uma parte é olavista, outra “apenas” ultraconservadora, como indica Colombo (2018).  É nesta linha de maniqueísmo e estrutura em que se alicerçou Jair Bolsonaro, que tem sua ascensão e aprofundamento de suas ações amparadas por uma ultradireita interna e externa (Alt- Right). Ao assumir, uma série de ataques à educação se ampliam, a saber: uma pelo Manifesto à Nação, uma carta que demonstra as intenções em prol dos interesses das bancadas BBB e outra pelo ataque in loco, com grupos de jovens políticos, de linha olavista, um autodenominado filósofo que organizou uma militância antiesquerda por meio da guerra cultural. O mote de atuação vai desde perseguição à professores, currículo escolar, uma intensa pauta sobre a Escola Sem Partido, contra a educação plural e complexa, também uma rede de ataques diretos e de contrainformação à grevistas, feministas e figuras de esquerda e funcionários públicos. Entre outros elementos, conforme um ex-seguidor do movimento (Araújo, 2021), as redes sociais e mídias diversas são “armadas” com conteúdo contravalores e figuras da esquerda, assumindo Fake News em temas como Esperança, Medo, Guerra Moral, Desmascaramento e Ridicularização.

Essa estrutura financiada com recursos públicos e uma guerra cultural instalada no cenário de extrema desigualdades, ressentimentos sociais e políticos no contexto brasileiro, fez com que quase todo o país fosse tomado por candidaturas de extrema-direita, fanatismo religioso neopentecostal e figuras militares e religiosas no poder legislativo, executivo e judiciário. Isto é, exatamente a representação das bancadas BBB, em junção ao milicianismo digital de jovens políticos que se alçaram por meio das táticas olavistas, guerra moral e cultural contra políticas de igualdade e equidade, sempre apoiados no discurso do Estado Mínimo e eficientismo do privado.

No Estado de São Paulo, hoje o governador é exatamente a conjunção da bancada BBB, expressa em sua figura a essência expropriadora desses movimentos. Assim como o prefeito da cidade, que figura como parte interessada no apoio de tais grupos, soma-se à questão denúncias de que o crime organizado atua nos serviços e parcerias/convênios na cidade.

Com a ascensão no estado e no município de São Paulo de governos de extrema-direita, vemos que a escola pública passa a ser alvo de intensos ataques antidemocratizantes através, por exemplo, do crescimento de escolas cívico-militares, da precarização intensificada do trabalho docente, da falta de estrutura adequada à aprendizagem e permanência do aluno e do controle da gestão escolar via parcerias público-privadas. Questão, que a vistas das teorias de Gramsci (1975), exponencia a organização técnico-burocrática para as instituições sociais, adequando a educação ao projeto capitalista, descaracterizando-a como atividade humana específica.

Por conseguinte, este artigo analisa o Projeto de Lei n. 573/2021, que trata da implementação do sistema de gestão compartilhada em escolas de ensino fundamental e médio da rede pública municipal de ensino de São Paulo, e o Decreto n. 68.597, de 10 de junho de 2024, que versa sobre a abertura de licitação para privatizar a gestão administrativa de escolas do estado. Ambos os projetos advêm de uma política de racionalização das demandas de grupos privados, ligados ao ideário da extrema-direita e de suas ofensivas contra a escola pública e as normativas que versam sobre a participação democrática nas decisões do espaço escolar. Ferem ainda valores ligados à colaboração, que visa ao bem comum, limitando as vozes e ações em prol de uma escola mais complexa e integrada a valores de desenvolvimento, cidadania e pluralidade. Dessa forma, tais projetos demonstram um ataque frontal aos eixos de educação para a equidade e práticas democráticas de participação social cidadã.

Metodologia

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, do tipo bibliográfica e documental, através de análise do Projeto de Lei 573/2021 (Municipal) e Decreto n. 68.597, 10/06/2024 (Estadual), também os recursos legais sobre o tema na Alesp, bem como de discursos sobre a defesa ou rechaço aos mesmos, realizados por  movimentos da sociedade civil, sindicatos, associação dos estudantes e de parlamentares, que foram analisados sob a perspectiva de análise de conteúdo (Bardin, 2009). Buscamos inicialmente a leitura flutuante para localizar as percepções contidas nos documentos. Como nosso caso de estudo revela-se sob uma multiplicidade de atores, e fatos recentes que estão se delineando, assim, primamos pela regra da representatividade. Não recorremos a uma amostragem, mas sim a uma análise da totalidade de materiais que estavam no escopo da compreensão das disputas sobre a privatização, ou seja, priorizamos este tema. Com os dados buscamos mais do que uma sistematização de uma leitura crítica sobre os documentos e discursos, mas também, nos empenhamos em codificar e caracterizar os aspectos em comum, delineando como elemento estruturante a questão da privatização e a agenda da extrema-direita atrelada ao capital, transformado a educação em mercadoria.

A privatização da gestão escolar em São Paulo

A privatização da educação, conforme Adrião (2018), tem em sua gênese três dimensões estruturantes: a gestão da educação; a oferta educacional e o currículo. Esta tríade pode ser lida em conjunto, mas os esforços para dinamizá-la é feito separadamente e em contínuo processo de reformulação. A autora argumenta que, no que concerne à privatização da gestão, há a gestão escolar e a gestão educacional, e “em ambos os contextos se trata de delegação ou subordinação dos processos decisórios e de responsabilidades a ‘instituições privadas lucrativas ou a estas associadas’” (Adrião, 2018, p. 12).

Garcia (2023), por sua vez, indica que, no âmbito da privatização da gestão na educação pública, há um deslocamento de sentidos da função social da escola. Desse modo, os processos gerencialistas implicam em uma transferência de ações técnicas, que não dialogam ou têm sentido com a lógica escolar e suas complexidades. A escola é totalmente um lugar de relações humanas em construção e em conflito, é o reflexo também da sociedade externa ao ambiente escolar; assim, a gestão deveria ser uma ferramenta própria ao universo escolar. Isto obviamente não encontra espaço de ser, haja vista a intensificação do projeto expropriador implementado pela racionalidade neoliberal e suas formas de controle social e poder político.

Garcia (2023, p. 76) afirma que,

Com o avanço de forças políticas de ultradireita no Brasil a partir de 2016, e o chamado neoconservadorismo impregnando todas as pautas sociais, a disputa pela democratização da gestão se mostra ainda mais complexa, em um quadro político no qual conquistas históricas são seriamente ameaçadas.

A partir da conjuntura apresentada, exploramos, a partir dessas análises, as postulações da privatização da gestão escolar educacional através da compreensão crítica do Projeto de Lei (PL) n. 573/2021, como um dos resultados do processo de autoritarismo brasileiro pós-golpe de 2016 e da nova hegemonia do capital, e do Decreto n. 68.597, de 10 de junho de 2024, que expressa um novo processo patentemente autoritário.

O PL 573/2021

Entendemos que no “mercado” da educação se articulam redes que atuam no sentido de garantir maior autonomia e fortalecer suas redes decisórias, claramente organizadas para a manutenção da pobreza, da concentração de poder e do controle social. Verificamos que o PL 573/2021 representa o resultado de um amplo processo de desmonte e de intransigências no campo democrático de direito, intensificado pelo golpe de 2016 no Brasil. Nesse contexto, uma complexa teia organizacional buscava a ampliação hegemônica dos projetos de direita e ultradireita no país, atuando em conjunto com aparelhos privados de hegemonia (APHs) que fomentam os avanços do neoliberalismo. Como resultado, o lawfare tornou-se uma ferramenta que ilustra a junção entre o capitalismo neoliberal imperialista e o conservadorismo retrógrado, avesso às instituições democráticas e aos aspectos constitucionais do Direito. Esse vínculo é claramente percebido no campo da educação (Pankhle & Milan, 2020).

Conforme o Sindicato dos Especialistas de Educação do Ensino Público Municipal de São Paulo (SINESP), tal PL “impõe a privatização da educação pública municipal por meio da concessão da gestão das unidades educacionais para organizações sociais”. O projeto, de autoria de vereadores ligados à onda conservadora e de extrema-direita, visa impor o controle dos processos pedagógicos das escolas, com uma gestão verticalizada inspirada pela lógica empresarial. Esses novos atores políticos emergem, amparados pelos setores financeiro, industrial e religioso, principalmente de matriz neopentecostal, que também atuam por meio de fundações, OSs e institutos voltados para o mercado de filantropia educacional. Eles buscam reformular currículos e teorias pedagógicas, rebaixando as possibilidades de uma educação mais complexa.

O PL foi apresentado à Câmara Municipal de São Paulo em 2021. No entanto, devido à intensa mobilização social, não teve sucesso inicial. Foi, então, reapresentado em 2022 (quando também foi derrotado e, provavelmente, será reapresentado nos anos posteriores). A autoria principal é da vereadora Cris Monteiro, do partido NOVO. Lembramos que o ideário desse partido defende um programa liberal e a aplicação de princípios do setor privado na gestão pública.

Em nossa concepção, o PL n. 573/2021 é fruto de um projeto ideológico efetivamente constituído a partir do pós-golpe de 2016, mas que tem raízes anteriores. O PL fere o Estado Democrático de Direito e surge precisamente no momento em que o partido NOVO ganhou força, especialmente com a eleição do governador de Minas Gerais, Romeu Zema, em 2018. Vale lembrar que Zema (de linha Bolsonarista) implementou um projeto no mesmo escopo do PL 573/2021. O projeto SOMAR foi implementado sem discussão com a comunidade escolar, tanto que as escolas souberam que estavam sujeitas ao projeto piloto por meio da imprensa. Tal projeto além de não apresentar resultados, foi alvo de investigação do Ministério Público por irregularidades e pela inconstitucionalidade do projeto.

Conforme Freitas (2022), a ideologia capitaneada pelo partido NOVO (e partidos semelhantes) visa à retirada do Estado da organização dessas atividades educacionais, com o objetivo de transformar direitos sociais em serviços disponíveis no mercado, ou seja, promover a privatização da vida. Pelo exposto, o PL 573/2021 marca a ascensão de um projeto neoliberal de cunho ultraconservador e de extrema-direita, com traços de autoritarismo, afetando a constitucionalidade que rege o ordenamento jurídico e destruindo a carreira docente.

O PL vai contra o art. 206 da Constituição Federal de 1988, especialmente os incisos: “I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”; “II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber”; e “VI – gestão democrática do ensino público, conforme a lei”. O PL passou pelas comissões de ética e foi aprovado na Câmara, mas não obteve êxito na votação dos pares.

Nossa concepção sobre o PL é que nada de novo apresenta. Pelo contrário, trata-se de mais do “menos” [do rebaixamento] promovido pelo mercado educacional, sem materialidade científica ou ética. O projeto traz em seu escopo um maniqueísmo exacerbado sobre temas presentes na Constituição Federal (CF/88) e na própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB/96), como, por exemplo, no art. 2º, que menciona o “pluralismo de ideias e concepções pedagógicas”, o qual já está contemplado na LDB. Ademais, o PL ataca o direito à igualdade de condições e a gestão democrática previstas nas legislações, afetando diretamente a condição plural que exige a articulação entre escola, sociedade e conhecimento.

Na contramão dessa pluralidade, o PL estabelece que a gestão assumirá o controle total das escolas, conforme vemos nos artigos 10 e 11.

Art. 10. As organizações sociais terão liberdade para estruturar a matriz curricular, o projeto político pedagógico, as metodologias de ensino e organização escolar, assim como os materiais pedagógicos da escola assistida […]

Art. 11. As organizações sociais terão autonomia para montar e gerir o time de professores, diretores, vice-diretores e secretário escolar da instituição assistida. […]

Os autores do PL 573/2021 demonstram um claro cerceamento das prerrogativas da escola, pois o discurso do projeto evidencia a desconstrução total do sistema municipal de ensino, de sua organização e diretrizes, bem como da luta histórica para sua garantia. Os artigos mencionados ferem a gestão democrática e, na prática, explicitam que, nessa relação, não há espaço para outras vozes. Além disso, violam o art. 14 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Brasil, 1996), o mesmo determina que “o projeto político-pedagógico deve ser construído com a participação da comunidade escolar e dos conselhos de escola”. Consideramos ainda que o PL fere o princípio constitucional previsto no art. 206 da Constituição Federal (CF/88), que trata da valorização dos profissionais da educação escolar, planos de carreira e ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos.

O PL estabelece que “os funcionários efetivos que não queiram se submeter ao novo regime de contratação poderão solicitar remoção para outra instituição pública”. No entanto, refletindo que o ingresso na carreira docente se dá por concurso público de provas e títulos, conforme o Estatuto do Magistério Público Municipal de São Paulo (Lei n. 14.660/2007), isso representa uma garantia ao professorado de condições iguais e formas de atividade profissional assentadas em parâmetros institucionalizados. Entretanto, vemos que o referido PL busca desconstruir esse direito. Segundo Freitas (2022), os autores do projeto desconsideram totalmente a carreira do Magistério Público Municipal, afirmando que “toda a memória e história da escola, assim como a vivência dos profissionais, são simplesmente descartadas. Trata-se de fechar a escola e reabri-la sob direção privada” (Freitas, 2022).

Entendemos que há um movimento orquestrado nas esferas federal, estadual e municipal para a destruição e desmonte das políticas públicas, principalmente as relacionadas à educação. No caso do munícipio de São Paulo, esse PL representa um ataque à carreira do Magistério Público Municipal de São Paulo, que completou 30 anos em junho de 2022, cujo estatuto foi construído durante a gestão da então prefeita Luiza Erundina (PT, 1989-1992). Essa gestão foi democrática, comprometida com a educação pública e com a qualidade de ensino, além de ter uma forte preocupação com a valorização dos servidores. Durante esse período, a Secretaria Municipal de Educação esteve sob a liderança de Paulo Freire, que atuou como Secretário Municipal de Educação (Souza, 2023).

Fases do autoritarismo ampliado, o Decreto n. 68.597/24

Nas eleições de outubro de 2022, foi eleito no segundo turno o bolsonarista Tarcísio de Freitas (Republicanos), com 55,27% dos votos, totalizando 13.480.643 eleitores. Com o resultado dessas eleições, já se previam vários ataques à lógica democrática, que já é frágil e instável no Brasil. Um exemplo foi a nomeação do Secretário de Educação, Renato Feder, empresário do setor tecnológico e ex-Secretário de Educação do Estado do Paraná, que implementou um amplo programa de expropriação cultural, educacional e nas relações de trabalho. Além disso, Feder tem se empenhado em plataformizar a educação, por meio de suas empresas. Esse governo também tem se esforçado na militarização das escolas, direcionando recursos públicos para o exército e promovendo o controle ideológico da extrema-direita no âmbito objetivo e subjetivo das práticas escolares.

O Decreto n. 68.597/24, publicado em 10 de junho de 2024, advém do Programa Estadual de Parcerias da Gestão do governo Doria (2019-2022), no entanto, na versão de Tarcísio, se efetiva a abertura de licitação (leilão) para a privatização da administração de 33 escolas estaduais de São Paulo, de níveis Fundamental II e Médio, com prazo de concessão de 25 anos, (cf.Capítulo II, Artigo1º e 2º) a um custo de 12 milhões de reais anuais, fomentando uma concessão que implica bilhões aos cofres públicos para um serviço que o Estado poderia realizar a um custo infinitamente menor, investindo diretamente na escola. O decreto, no entanto, revela-se claramente inconstitucional, ferindo princípios constitucionais, como a igualdade de condições e a gestão democrática.

Diante disto, o Deputado Estadual Carlos Giannazi (PSOL) entrou com um pedido para sustar os efeitos do decreto, justificando que este tem “o propósito de desmonte e privatização da rede pública de ensino” (Projeto de Decreto Legislativo n. 28/2024). “É um decreto que privatiza a educação estadual e abre precedente para a privatização da rede estadual de ensino” (DOE, 20-06-2024). De acordo com o projeto, o decreto “autoriza a abertura de licitação para a concessão administrativa destinada à construção, manutenção, conservação, gestão e operação dos serviços não pedagógicos organizados nos lotes leste e oeste e aprova o respectivo regulamento” (Cap.III, art.5º).

Isto significa que o estado construirá, por meio de parcerias público-privadas, 33 escolas estaduais, que serão entregues à iniciativa privada para que sejam administradas em todas as áreas mencionadas no cabeçalho — o caput do decreto —, além da construção, manutenção, conservação, gestão e operação dos serviços. De acordo com o Deputado Carlos Giannazi, isso abrange desde a merenda escolar e a gestão financeira até a participação de fundos de investimento internacionais. Os interesses dos setores edubusiness, organizações filantrópicas e demais organizações do campo das demandas do neoliberalismo, se organizam no sentido de materializar seu escopo ideológico e mercadológico e ganham fôlego com a Novo Fundeb – Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (2020). Neste, a participação da União subiria dos atuais 10% para 23% para o financiamento do fundo de modo progressivo e que, ao fim, é repassado para as entidades parceiras.

Atualmente com a abertura do leilão de Tarcísio, que visa entregar as escolas por meio de Parcerias Público-Privadas (PPPs), vemos um amplo subsídio financeiro público, estruturado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Isto é, um arranjo de privatização com investimentos robustos do Estado. Obviamente, uma estratégia de incentivo ao mercado para futuras incursões mais agressivas no campo educativo, hoje infraestrutura e administração de pessoal, que interfere na estrutura da dinâmica de democratização do espaço escolar; amanhã, a completa tomada da educação e consequências mais deletérias à autonomia da escola. Uma vez que o Governador, enquanto anuncia volumosos recursos para a iniciativa privada, impõe, ao mesmo tempo, um corte de R$ 9 bilhões na educação.

Por conseguinte, algumas preocupações se dão quanto a precarização do atendimento aos alunos, como a representação da deputada e ex-presidente do Sindicato dos Professores, Professora Bebel (PT), que também anunciou a suspensão do decreto, alegando irresponsabilidade administrativa:

o que está em questão, afinal, é o direito constitucional de cada cidadão e cidadã paulista ao acesso a educação pública, gratuita, de qualidade para si e seus filhos. Não obstante o argumento do governo de que não serão privatizadas neste momento atividades pedagógicas, o processo que o decreto pretende iniciar tende a nos levar à privatização completa das escolas estaduais (Projeto de Decreto Legislativo – 27/2024).

Como podemos perceber, a lógica aqui é ampliar a mercadificação da educação pública. A privatização acaba por fragilizar as relações trabalhistas e, da mesma forma, os contratos temporários e precarizados de professores e demais funcionários, expropriando-os do direito a um vínculo qualificado e de seus direitos específicos, conforme as legislações nacionais e regionais. Esse processo de mercantilização tem crescido no Brasil. De acordo com as pesquisas de Adrião (2018), as formas de privatização têm sido orquestradas por regimes ou modelos de governança da educação, abrangendo organicamente toda a prática escolar, tanto no campo teórico quanto no prático (Adrião & Silva, 2023).

Mas, para além da privatização, também acompanhamos um setor disposto a ignorar padrões de sociabilidade política e democrática. Ademais da tentativa frustrada de Gianezzi, que teve seu pedido de suspensão do decreto de Tarcísio negado, sob a argumento do relator, o deputado e pastor Altair Moraes, que é o do mesmo partido de Tarcísio, o Republicanos:

a regulamentação do Poder Executivo reflete um expediente de organização administrativa cuja competência pertence a si. Os supostos e eventuais prejuízos acarretados por uma norma devem, em cada caso concreto, ser objeto de análise, entretanto, essa possível circunstância não pode servir de justificativa para se engessar a Administração, impedindo que ela se organize para preservar o bom andamento do Estado. Diante do exposto, somos, no que nos cabe examinar, contrários ao Projeto de Decreto Legislativo n. 28, de 2024.

Verifica-se pelo exposto que o legislativo está empenhado em acatar a decisão autocrática de Tarcísio de Freitas e Renato Feder, por mais que os prejuízos estejam anunciados.

Aliás, vimos a deputada Andrea Werner (PSB) manifestar-se na forma de solicitação de explicações sobre o decreto, em especial a respeito do impacto na educação de pessoas com deficiência (PROCESSO – 15482/2024 – Requerimento de Informação – 255/2024). Em 13 de junho de 2024, ela pede que o governador e seu secretário deem satisfação e justifiquem o decreto. No entanto, em 2 de agosto de 2024, o prazo para resposta à informação requerida havia expirado e não há justificativas. Isto evidencia a recusa em dialogar com os deputados e em prestar satisfação à população, caracterizando um claro movimento autoritário que expressa a lógica política de extrema-direita que permeia municípios e estados brasileiros.

Compreendemos que o Decreto n. 68.597/24 é um dos maiores ataques à educação pública do estado de São Paulo. Conforme Adrião (2018), há no Brasil diversos formatos de privatização da educação, e isso se agrava com a presença de governos ultraconservadores, como é o caso em questão. Não apenas no que concerne aos governos municipais e estaduais, mas também, em âmbito federal cercado por ultraliberais e uma esquerda com baixa operosidade política. Por isso, é importante realizar pesquisas e análises com o intuito de dissipar narrativas hegemônicas que provocam colapsos na cidadania e no direito à educação.

Isso se confirma quando, no dia 26 de setembro de 2024, foi realizada uma audiência pública da Secretaria de Educação (SEDUC) sobre a implantação do Decreto n. 68.597/24. Nessa audiência, os técnicos demonstraram, por meio de slides, a implementação do processo. O primeiro slide, intitulado “Estratégia da Parceria Público-Privada”, apresenta a iniciativa como inovadora, buscando modernizar a forma de contratação da infraestrutura educacional. Entendemos que, em uma relação cada vez mais autocrática, o processo de desestatização representa o que Adrião e Silva (2023) avaliam como a mais pura privatização, disfarçada sob o engodo do título “parceria público-privada”. Sob essa ótica, é importante ultrapassar a ideia de que o objetivo deles é apenas o lucro. Em nossa concepção, o lucro, a introdução do capital financeiro e a concentração de riqueza só são garantidos por meio de formas de controle político-ideológico ou pela força bruta, manifestando-se na gestão e no gerencialismo sobre discentes e docentes. Os impactos vão desde a relação estritamente trabalhista até os problemas históricos que emergem no processo de privatização, como a precarização do trabalho e da oferta de atendimento.

A Seduc, em seus slides, mostra que visa ampliar a privatização para 143 escolas de ensino fundamental e médio, sendo 70 escolas da Diretoria Centro-Oeste e 73 da Diretoria Leste 5. Diante do fatídico crime contra a escola pública, um coletivo de representantes de alunos, convocado pelo movimento estudantil e sindical da educação, reuniu-se na Seduc e, em coro, a cada slide, apontava seu descontentamento com a trama urdida em desfavor dos estudantes. E entoavam: “Que contradição! Tem dinheiro para empresário, mas não tem para Educação!” […] “Aê, Tarcísio, pode parar, a minha escola você não vai privatizar!” (Estudantes na Seduc, 2024). Quando foi anunciado que, por meio da concessão, o responsável faria a reforma e a manutenção das edificações e dos serviços não pedagógicos, os estudantes gritavam: “Não!! Não à privatização, privatizar escola é coisa de ladrão!” […] “Estudante na rua, Tarcísio, a culpa é sua!” […] “Isso aqui é só pra encher o bolso de empresário”.

Outra estudante denuncia que a tal reunião era um engodo para legitimar o processo contrário aos interesses da população:

Se isso aqui fosse pela educação, para ouvir os estudantes, se fosse pela educação de verdade. Vocês não cortariam as nossas falas no meio, não bloqueariam o microfone. Se fosse uma audiência de verdade, vocês (corpo administrativo) não estariam aí sentados sem a presença do Secretário de Educação, que nunca pisou aqui, nem na Alesp. Cadê o Secretário de Educação? (…) Vocês vão fazer o quê, vão bater na gente de novo? A gente não vai sair daqui, da rua e das escolas, enquanto vocês proporem esses projetos absurdos que só querem acabar com nossa educação de verdade. A gente não vai parar de lutar. (Audiência pública, 2/2024, 1h51)

Ou seja, a estudante argumenta que o acesso a uma educação complexa está ainda mais comprometido numa gestão privatista e de perfil autoritário como a de Feder e Tarcísio, e denuncia a truculência e autoritarismo. Outra complementa:

[…] Isso aqui é uma palhaçada, e o governo Tarcísio tem medo de encarar o povo […] isso aqui é uma farsa […] Os estudantes estão dizendo que não vão aceitar (microfone é cortado quando todos se levantam para entoar novamente ‘Tarcísio, ladrão, roubou minha Educação’.) (Seduc-Audiência pública, 2/2024, 1h54)

Os estudantes, representantes sindicais de professores e supervisores escolares, além dos poucos deputados que se posicionam contra o decreto, denunciam não apenas o processo privatista em sua gênese lucrativa, mas também reiteram alertas sobre o perigo ao direito à educação de qualidade. Isso envolve a valorização profissional, condições de trabalho e formação adequadas, além de possibilitar uma educação complexa e integral para os estudantes, com pleno direito de acesso e permanência, como também prevê a Constituição. Vemos que o decreto vai na contramão da Constituição Federal e da LDB quanto à lógica da gestão democrática nas escolas. Portanto, observa-se que não estão comprometidos os princípios da autonomia, conforme o art. 15 da LDB:

Estabelece que os sistemas de ensino devem garantir às unidades escolares públicas de educação básica um grau progressivo de autonomia pedagógica, administrativa e de gestão financeira. No entanto, é preciso respeitar as normas gerais de direito financeiro público.

Isto é, as escolas têm a garantia de organizar a gestão pedagógica, administrativa e financeira dentro dos marcos legais já estabelecidos, examinando o processo de ensino-aprendizagem numa perspectiva de autonomia. Ou seja, não sob o jugo da metrificação de resultados para atingir metas do mercado ou mesmo aquelas estabelecidas por organismos internacionais e nacionais, que pouco observam que a liberdade de aprender tem sido expropriada quando os recursos públicos são mal administrados, resultando na precarização do atendimento, dos recursos materiais e humanos.

No contexto da ascensão da extrema-direita, observa-se que esse drama histórico tende a ganhar traços mais marcantes no que tange às desigualdades educacionais e à formação humana. A privatização delineada no Decreto n. 68.597/24 coaduna-se a uma estratégia muito mais ampla, como é o caso do Movimento “De Olho no Material Escolar” (DONME), uma junção de parte da bancada do boi (em específico o agronegócio e a indústria do agrotóxico), que tem sua representação em São Paulo, atrelada ao Partido Novo e que tem no Governo Tarcísio ampliado sua atuação, buscando cercear nos livros didáticos temas sensíveis ao capital, por exemplo: os males dos agrotóxicos, do desmatamento, mudanças climáticas, as desigualdades do mundo do trabalho, entre outros que afetam a diversidade e a inclusão que o campo educativo é capaz. Ao contrário, essas questões são tratadas como “doutrinação de esquerda”, como também, no caso da produtora bolsonarista denominada Brasil Paralelo, que representa uma ofensiva do grande capital nos ensinos básico e superior, estimulando conteúdos curriculares com revisionismo grotesco e negacionismo científico, com intensos ataques ao pensamento freiriano, que preza pela autonomia, a criticidade, a horizontalidade no processo educativo. As iniciativas se convergem: a expropriação da formação humana, através de várias frentes autoritárias que afetam a autonomia docente, o acesso ao conhecimento complexo e a função transformadora da escola. Isto é, um caminho na contramão ao Desenvolvimento, Educação para a Cidadania Global, e Educação para a Transformação Social (ED/ECG/ETS).

Esses elementos são organizados na busca do construto de uma relação hegemônica (domínio e direção) que visa falsear a centralização dessa direção. Em outras palavras, o grupo totalitário ainda está formando sua relação de domínio, e a educação, tal como na Reforma Gentile na Itália fascista, busca o cidadão-soldado, esvaziado de uma identidade ou individualidade própria, em favor da construção de uma comunidade totalitária. Evidentemente, tal questão, transportada para o cenário brasileiro, nos permite concluir que uma realidade social mais violenta, desagregada e precarizada forma o palco ideal para ampliar o processo de extração de mais-valor sobre o trabalho e uma racionalidade de mercadificação de toda relação social, o que podemos ver com o extremo crescimento de atividades uberizadas e o estímulo ao empreendedorismo, inclusive nas escolas de Tarcísio.

O modelo adotado por Tarcísio amplia os caminhos abertos por Bolsonaro, formando um novo ciclo político autoritário, um convite ao caos, que tende a crescer à medida que se amplia o rompimento dos preceitos da democracia liberal adotada no Brasil, que fracassou na promoção da justiça social e em processos mais equânimes quanto à divisão da riqueza. A elite brasileira não apenas emperrou essa questão, mas também se aproveitou da pobreza que fomentou para ampliar seu capital, por meio de lógicas privatizantes e da exclusão da participação de grupos socialmente engajados. Tomou para si o direito de fala, de representar e de concentrar o espaço político e econômico, uma vez que organizou a crise política de 2013 e 2016, e a ascensão de Bolsonaro e Tarcísio.

Essa elite, proveniente do industrialismo e com amplos aportes financeiros do setor público, composta por herdeiros, latifundiários, banqueiros e religiosos, promoveu, em conjunto com o braço armado reacionário do país, a ascensão de um poder autocrático, difusor de uma racionalidade social baseada no ódio, na qual eles se supõem estar no controle. Conforme Paes Manso (2024):

Diante desse Estado policial fragilizado, sem projeto de futuro, em que poder passa a ser sinônimo de dinheiro e fuzis, os grupos armados ganham cada vez mais protagonismo político. Nas principais cidades brasileiras, tiranias que controlam o cotidiano e impõem suas regras em benefício de seus negócios já fazem parte da realidade […]. Durante 350 anos de colonialismo, a manutenção e a reprodução da sociedade escravista misturavam dinheiro, violência armada e fé para defender os interesses de uma minoria contra a maioria da população. Os séculos passam, mas a lógica continua a mesma. Um poder que tenta se impor pela força, sem legitimidade para criar um mundo viável para a maioria dos brasileiros. O projeto de futuro da extrema-direita se inspira nos piores traços de nosso passado.

A ascensão e permanência de figuras de extrema-direita no controle político marca uma continuidade do que é mais violento na história. E a educação tem sido elemento de disputa e ataques diretos, como o referido decreto evidencia. Ainda no âmbito deste, em 29 de outubro ocorreu um dos leilões dos lotes escolares. A vencedora, uma empresa que administra cemitérios, o Consórcio Novas Escolas Oeste SP, formado por fundos de investimento Kinea-Itaú e empresa de engenharia Engeform.

Diante de ações cíveis contra a privatização e sob a alegação de comprometimento da oferta de serviço público de educação, uma vez que gestão do espaço físico e pedagógico são indissociáveis, houve decisão liminar contra o leilão realizado e os agendados. O magistrado Luís Manuel Fonseca Pires argumentou que tal privatização fere o princípio constitucional da gestão democrática da educação. Para ele: “transcende a atividade pedagógica em sala de aula, pois envolve a maneira pela qual o espaço escolar é ocupado e vivenciado”. A ocupação do espaço e a autonomia sobre ele estão diretamente voltados ao programa pedagógico, portanto, argumenta que uma empresa não pode ter controle exclusivo sobre isso por 25 anos.

Porém, através de recurso do governo do estado, o Tribunal de Justiça de São Paulo manteve os leilões. A decisão do desembargador Fernando Antônio Torres Garcia (presidente do TJ-SP) argumenta que a interrupção dos leilões pode causar prejuízos à ordem pública, interferindo na execução regular da política pública de educação, o mesmo argumento que barrou a iniciativa de suspensão do decreto.

Pelo exposto, por mais que a sociedade se mobilize contra o projeto, os braços do poder público buscam assegurar o seu “direito” à vender o futuro dos cidadãos. Demonstrando que os espaços democráticos e participativos têm sido atropelados pelo autoritarismo de governos como o de perfil aqui analisado.

Considerações Finais

Atualmente, vivemos diferentes formas de privatização, da água, da vida, das terras e da educação, provocadas por governos autoritários e ultraconservadores na política brasileira. No caso em questão deste artigo, tratamos do governo Municipal e Estadual de São Paulo. As políticas implementadas são pautadas pelo ataque à democracia e à gestão democrática, revelando que a racionalidade desses grupos é não abrir espaços para processos democratizantes. O que se estabelece é uma estratégia para ampliar a subalternização das classes populares. Entendemos que a privatização na educação é uma dessas formas.

No caso do PL 573/21, um projeto de lei na esfera municipal, a verve privatista e mercadológica da educação pública é evidente. Os beneficiários? Seus articuladores. À população, restam a transferência dos custos e um conteúdo esvaziado, com caráter conformador, que expressa as impossibilidades emancipatórias e de futuro profissional, ferindo o direito à cidadania plena, como uma adaptação a uma sociedade desindustrializada e dependente, subordinada em todas as esferas produtivas e econômicas.

O Decreto Estadual n. 68.597 encarna a lógica privatista e ataca a história da educação pública, constituindo uma ofensiva frontal contra todas as esferas educativas, desde a gestão até o professor, complexificando processos de controle e burocratizando ainda mais a relação educativa, como se observa no Capítulo IV- Dos Direitos e das Obrigações da Concessionária Artigo 6° e o Capítulo VI- Dos Direitos e Obrigações da Comunidade Escolar, Artigo 8°.

Ou seja, ocorre a terceirização de uma privatização, denominada quarteirização, onde uma empresa terceirizada contrata outra empresa terceirizada. Tal movimento foi assegurado no governo Temer com a Lei n. 13.429/17, que conferiu legitimidade à quarteirização, permitindo sua execução. Na prática, em termos de relações de trabalho, um abismo se forma na organização e nas demandas coletivas. Em relação à racionalidade social, ocorre um dumping social, onde direitos trabalhistas afrouxados garantem a lucratividade das empresas, ao mesmo tempo que promovem uma sociedade cingida, em constante disputa, voltada ao discurso meritocrático, moralista e individual, facilmente cooptada por teologias da prosperidade e pela culpabilização das esquerdas por sua falência moral e social. Para Traverso (2019), no contexto brasileiro, o ressentimento é um fator que dinamiza a relação fascistoide na sociedade, reafirmando o padrão histórico-cultural que a classe média brasileira sempre exerceu, que é o de tentar manter seus privilégios.

Observamos que a extrema-direita une sentimentos de medo, articulando o poder reacionário ao capital transnacional, focando na competição entre frações da classe transnacional que instrumentalizam o Estado. O ataque à classe trabalhadora global, historicamente fragilizada, é tido como preventivo, e a exclusão coercitiva dos grupos sociais “inúteis” ao sistema forma o fascismo contemporâneo que experienciamos (Robinson, 2014).

O crescimento das ondas conservadoras no âmbito decisório é visto por alguns autores como consequência das crises do sistema capitalista, como a crise dos mercados financeiros de 2008, quando a reorganização da lógica imperialista na economia mundial (Alves, 2019; Meszaros, 2011) permitiu a crescente onda conservadora, apostando ainda mais alto em discursos reacionários em diversos setores, desde a mídia até o sistema judiciário e a arena política. De acordo com Avritzer (2018, p. 273), no Brasil, entre os “quase cinco anos que vão de junho de 2013 a 2018, houve uma completa inversão de condições, com a produção de um ‘mal-estar’ na democracia”, que se estende aos dias atuais, com a ascensão de discursos e práticas de ódio e brutalização dos direitos.

Diante deste cenário, tomamos como lição a luta pela necessária compreensão do mundo e de si como elementos de disputa. Como afirmava Gramsci (1975), é preciso fazer um inventário de si mesmo e de nosso percurso histórico, para entender nossas contradições, nosso senso comum e nossas ações no mundo. Paulo Freire também nos incitava a “começar do começo”, isto é, é necessário que o brasileiro consiga identificar o que é o Brasil, num processo de conscientização para se enxergar o que é real. E possa, num ato educativo complexo e horizontal, pensar novas formas concretas de viver em conjunto.  A escola para ser um espaço de libertação precisa, antes, ser um espaço autônomo e democrático. A educação libertadora de Freire é humanista e dialogista. “Esses são critérios da democracia, da cidadania, critérios permanentes” (Arelaro, 2021), por essa perspectiva, talvez as ED/ECG/ETS, devam orientar não apenas o espaço escolar, mas uma rede de comunidade educacional como um todo, tanto na educação formal, quanto não-formal.

Referências

References
1 Profa. Dra. em Educação pela Unifesp.
2 Prof. Me. em Educação pela Unifesp.
[1]Profa. Dra. em Educação pela Unifesp. & Eliano Macedo Souza[2]Prof. Me. em Educação pela Unifesp. Resumo: No contexto do crescimento das ações e ideais autoritários e neoconservadores na política brasileira, desde a ascensão de governos de extrema-direita que emergiram nas jornadas de julho de 2013, observamos a intensificação" data-link="https://sinergiased.org/pedagogia-do-autoritarismo-privatizacao-da-gestao-escolar/">

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References
1 Profa. Dra. em Educação pela Unifesp.
2 Prof. Me. em Educação pela Unifesp.