Ivaneide Mendes [1]Doutorada em Educação pela Universidade de Granada. Professora Adjunta Convidada da Escola Superior de Educação do Porto. Diretora de Projetos e Serviços do Centro Social Paroquial de Santa … Continue a ler

Resumo:

A Educação Social deve materializar-se na luta pela liberdade, que por sua vez contraria todo o tipo de opressão, toda a injustiça e tudo que obstaculiza a concretização dos direitos humanos. Este trabalho visa refletir sobre os princípios de uma Educação Social que se quer política, ética e estética, que visa novas relações sociais e que tem como fundamento capacitar os sujeitos para a criação de alternativas às realidades socialmente injustas. Sedimentado nas ideias de Paulo Freire, apresenta o/a Educador/a Social, essencialmente, como o/a educador/a das margens, aquele que rompe silêncios, que se inquieta e se rebela. A sua prática, de natureza reflexiva, leva-o/a à assunção de compromissos que se manifestam na sua pessoa, na sua ação, na sua profissão e na sua profissionalidade.

Palavras-chave: Educação Social; Paulo Freire; Educação Popular; Pedagogia Crítica; Rebeldia.

Abstract:

Social Education should materialise in the struggle for freedom, which in turn opposes every kind of oppression, every injustice and everything that hinders the realisation of human rights. This work aims at reflecting on the principles of a Social Education that is political, ethical and aesthetical, that aims at new social relations and that is based on empowering people to create alternatives to socially unjust realities. Based on Paulo Freire’s ideas, it presents the Social Educator, essentially, as the one who breaks silences, who worries and rebels. His/her practice, reflexive in nature, leads him/her to take on commitments which are manifested in his/her person, in his/her action, in his/her profession and in his/her professionality.

Keywords: Social Education; Paulo Freire; Popular Education; Critical Pedagogy; Rebellion.

Resumen:

La Educación Social debe materializarse en la lucha por la libertad, que a su vez se opone a todo tipo de opresión, a toda injusticia y a todo lo que impide la realización de los derechos humanos. Este trabajo pretende reflexionar sobre los principios de una Educación Social que sea política, ética y estética, que apunte a nuevas relaciones sociales y que se base en el empoderamiento de las personas para crear alternativas a realidades socialmente injustas. Basado en las ideas de Paulo Freire, presenta al Educador Social, esencialmente, como aquel que rompe silencios, que se preocupa y se rebela. Su práctica, de carácter reflexivo, le lleva a asumir compromisos que se manifiestan en su persona, en su acción, en su profesión y en su profesionalidad.

Palabras clave: Educación Social; Paulo Freire; Educación Popular; Pedagogía Crítica; Rebelión.

Introdução

A emergência de novos paradigmas na ação social revela a necessidade de pensarmos a Educação Social forjada na Pedagogia Crítica, por conseguinte urge-nos refletir sobre o pensamento freiriano presente na compreensão epistemológica da Educação Social. Pensamento este que se revela na constituição da ação e na formação do educador e, não seria desassisado afirmar, que está, inevitavelmente, na base da própria Educação Social como forma de intervenção socioeducativa, como modo de viver, sentir e agir na prática coletiva. Uma Educação Social que visa, sobretudo, contrariar todo e qualquer modelo de sociedade que viole o sentido de justiça, os direitos humanos e o respeito pela pessoa humana em toda a sua essência.

O artigo que aqui se apresenta visa refletir sobre os princípios de uma educação que promove novas relações sociais e que tem como fundamento capacitar os sujeitos com vista à criação de alternativas às realidades socialmente injustas, através de um processo de conscientização. Na mesma medida, procura revisitar conceitos-chave da obra de Freire que norteiam a formação dos educadores sociais.

A Educação Social que aqui se advoga reclama utopia, exige rebeldia, porque “não é na resignação, mas na rebeldia em face das injustiças que nos afirmamos” (Freire, 2000, p. 37). Reflete sobre a utopia de criar o que não existe: uma sociedade para todos. Sociedade esta que só poderá fazer parte do mundo de um educador que não se deixa abater pelo fatalismo e por ideias pré-concebidas e pré-determinadas por poderes hegemónicos e, por isso, um educador que rompe silêncios, que se inquieta e se rebela.

1. A Educação Social e o construto da liberdade (princípios norteadores)

Pensar a Educação Social é considerar a necessidade de contrariar toda e qualquer espécie de desumanização, logo é pensar nas ideias defendidas por Paulo Freire. Para ele, a desumanização é “um fato concreto na história, não é, porém, destino dado, mas resultado de uma ‘ordem’ injusta que gera a violência dos opressores e esta, o ser menos” (Freire, 2006, p. 32). Contrariar este facto exige uma educação como prática da liberdade e a Educação Social só se materializa na luta pela liberdade e a autonomia.

O ideário de liberdade pressupõe a existência de sociedades abertas, democráticas, implica a participação, uma inserção das pessoas na sua própria realidade, na sua história concreta e num tempo que é seu, o reconhecer-se sujeito que faz e refaz o mundo.

Desta feita, uma Educação Social libertária refuta toda e qualquer prática assistencialista, porque estas práticas, ao contrário de suprimir a opressão, geram um imobilismo subjetivista que transforma “(…) o ter consciência da opressão numa espécie de espera paciente” (Freire, 2006, p. 40) que tende a pensar que um dia a opressão poderá desaparecer por si mesma. As práticas assistencialistas são por si contraditórias, porque

(…) Em primeiro lugar, contradiziam a vocação natural da pessoa — a de ser sujeito e não objeto, e o assistencialismo faz de quem recebe a assistência um objeto passivo, sem possibilidade de participar do processo de sua própria recuperação. Em segundo lugar, contradiziam o processo de “democratização fundamental” em que estávamos situados. O grande perigo do assistencialismo está na violência do seu antidiálogo (…) (Freire, 2003a, p. 65).

A Educação Social reclama práticas emancipadoras, transformadoras, ações concretas de enfrentamento a toda e qualquer situação de injustiça, à medida que se põe em marcha, nesta ação libertadora contrária à acomodação, o franco ajustamento que muitas práticas sociais são sujeitas. Ajustamento este que, de forma evidente ou por vezes disfarçada, reforça a condição de oprimido.

Contrariamente ao que se possa pensar, a desumanização não é condição restrita aos oprimidos, não se reveste apenas naquele que tem as suas condições materiais negadas. Para Freire, o desumanizado é todo aquele que esteja fora também da esfera do simbólico e dos direitos. Na sua obra Pedagogia do Oprimido, Freire diz-nos que “a desumanização, que não se verifica, apenas, nos que têm sua humanidade roubada, mas também, ainda que de forma diferente, nos que a roubam, é distorção da vocação do ser mais” (Freire, 2006, p. 32).

Cabe à Educação Social trabalhar pela humanização dos sujeitos, a partir de processos reflexivos, para que estes venham a saber da sua condição de oprimido e, libertando-se da opressão, libertem-se a si próprio e, quiçá, ao opressor.

(…) E aí está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos – libertar-se a si e aos opressores. Estes, que oprimem, exploram e violentam, em razão de seu poder, não podem ter, neste poder, a força de libertação dos oprimidos nem de si mesmos. Só o poder que nasça da debilidade dos oprimidos será suficientemente forte para libertar a ambos (Freire, 2006, p. 33).

O exercício da liberdade exige utopia e esta, por sua vez, revela riscos e, em boa medida, desencadeia o medo. Segundo Freire, o medo não é uma abstração, surge, invariavelmente, quando os sujeitos “compreendem os riscos da política de oposição. Temem ser apontados como radicais, como pessoas que causam confusões” (Freire & Shor, 2003, p. 68). Contudo, a “compreensão do medo não é uma coisa que me diminui, mas que me faz reconhecer que sou um ser humano”. E acrescenta que reconhecer o “seu medo é consequência da tentativa de praticar seu sonho” (Freire & Shor, 2003, p. 71). Esta visão confronta a ideia de um medo que imobiliza e que resulta da condição de objeto, uma vez que não se pode racionalizar o medo, mas sim, entendê-lo criticamente, colocar limites e, assim, a utopia desencadeia a ousadia.

A Educação Social que aqui se advoga é ousada, é rebelde. A sua natureza crítica desafiada pelos problemas que as sociedades apresentam pretende a assunção de compromisso dos sujeitos, exige o desejo de mudança, de transformação, pretende criar o que não existe, em última instância deseja construir o novo, o inédito, porque “Criar o que não existe ainda deve ser a pretensão de todo sujeito que está vivo” (Freire, 1997).

A Educação Social ousada promove a participação, propicia a reflexão crítica tendo como premissa a transformação. Este exercício crítico rompe com processos alienantes, massificadores, porque “uma pessoa massificada não é capaz de compromissos, pois não tem opções e mesmo que pareça livre, teme a liberdade” (Freire, 2001a, p. 86-87). Falamos, portanto, de uma Educação Social que

deve orientar-se sobretudo pela criatividade e pelo estímulo à acção e reflexão sobre a realidade, onde os homens e mulheres sejam desafiados a questionar a sua própria existência e sejam capazes de se debruçar criticamente sobre a realidade e apreendê-la, actuando e transformando-a para o bem comum (Mendes, 2007, p. 124).

2. A emergência de novos paradigmas na ação social

A ação social impele uma intervenção que vá além da defesa dos direitos de cidadania e do acesso aos serviços de bem-estar, exige uma perspetiva mais complexa que se aproxima do que se compreende por desenvolvimento humano e qualidade de vida, numa matriz sustentada pela defesa dos direitos humanos e da justiça social.

Esta forma de conceber a ação social implica educação, porque “cabe à educação promover em todos os sujeitos a capacidade de apropriação crítica do seu presente a fim de tomarem decisões sobre um futuro, que responda aos interesses e desejos pessoalmente construídos com base numa lógica de solidariedade e justiça” (Caride, 2005, p. 285). Deve, na mesma medida, “valorizar a capacidade criadora e projectiva dos próprios indivíduos, rompendo com atitudes de inércia e de conformismo que os torna reféns de um presente muitas vezes sombrio, dramático e infeliz” (Carvalho & Batista, 2004, p. 70).

Na perspetiva deste compromisso com a mudança dos indivíduos e do meio, diríamos que a Educação Social exige criticidade. Numa aproximação às ideias de Freire, falamos de uma Educação Social que “aspira a mudanças radicais na sociedade, no campo da economia, das relações humanas, da propriedade, do direito ao trabalho, à terra, à educação, à saúde (…)” e que se revela incompatível a qualquer modelo de intervenção social que age reacionariamente, que “(…) pretende imobilizar a História e manter a ordem injusta” (Freire, 2004, p. 56).

A concretização desta experiência em educação exige, em bom rigor, alguns pressupostos defendidos, incansavelmente, por Paulo Freire a fim de romper o que ele define como “a cultura do silêncio”, que não deixa de ser uma rutura política. Para ele, a rutura só ocorre através de uma evolução pedagógica que se norteia pela crença na educabilidade do sujeito, porque os seres humanos são historicamente inacabados. Acresce a isto, a importância da dialogicidade e da horizontalidade nos processos educativos. Reforça também o lugar da conscientização, condição que decorre da tomada de consciência e da ação por parte dos sujeitos a partir da valorização da sua cultura, da sua consciência histórico-temporal, da sua leitura do mundo e da compreensão da sua condição de oprimido (Freire, 1979).

Uma ideia que deve estar presente na epistemologia da Educação Social é a ideia de inacabamento dos sujeitos e das sociedades. Por conseguinte, está presente a noção de incompletude do sujeito, de sua inconclusão e, na mesma medida, da sua capacidade de transcender, princípios fundamentais da educação (Freire, 2006).

A educação é uma resposta da finitude da infinitude. A educação é possível para o homem, porque este é inacabado e sabe-se inacabado. Isto leva-o à sua perfeição. A educação, portanto, implica uma busca realizada por um sujeito que é o homem. O homem deve ser o sujeito de sua própria educação. Não pode ser o objeto dela. Por isso, ninguém educa ninguém (Freire, 2003b, p. 27-28).

Na linha do pensamento freiriano, a educação deve desenvolver no sujeito a consciência do seu inacabamento histórico, a curiosidade por saber mais e saber-se mais, fazer mais, ser mais. Assim sendo, “necessariamente o ser humano se faria um ser ético, um ser de opção, de decisão” (Freire, 2004, p. 57).

Por dialogicidade entende-se o “pensar certo”, o caminho para que os sujeitos aprendam e cresçam face às suas diferenças e se respeitem de maneira rigorosamente ética. Na sua obra Pedagogia da Autonomia assegura que “não há inteligibilidade que não seja comunicação e intercomunicação e que não se funde na dialogicidade. O pensar certo por isso é dialógico e não polêmico” (Freire, 2004, p. 38). Ele acredita que é a partir do diálogo que se vai desvelando e desvendando o mundo, é a partir do diálogo que se vai pensando a história social como experiência, também ela social, e se vai libertando de saberes ingénuos, desfazendo teias que paralisam e credibilizam o fatalismo e, ao mesmo tempo, reforça que somente “através da comunicação faz sentido a vida humana” (Freire, 2006, p. 74). Para ele, “o diálogo não é um produto histórico, é a própria historicização” (p. 16) porque

o diálogo fenomeniza e historiciza a essencial intersubjetividade humana; ele é relacional e; nele, ninguém tem iniciativa absoluta. Os dialogantes “admiram” um mesmo mundo; afastam-se dele e com ele coincidem; nele põem-se e opõem-se. Vimos que, assim, a consciência se existência e busca perfazer-se (Freire, 2006, p. 16).

Esta consciência de existência impele à Educação Social, pois esta pressupõe a sua prática como um processo de conhecimento onde o indivíduo se vai conhecendo a si e ao que está à sua volta e, à medida que se conhece, vai-se transformando e ao ser transformado transforma outros e o mundo, assim a sua ação possui uma natureza dialógica onde “não há estritamente falando um ‘eu penso’, mas um ‘nós pensamos’. Não é o ‘eu penso’ o que constitui o ‘nós pensamos’, mas, pelo contrário, é o ‘nós pensamos’ que me faz possível pensar” (Freire, 2003a, p. 71).

Um constitutivo do diálogo é a horizontalidade, uma vez não há diálogo em relações verticais, porque estas tendem para os comunicados, para as frases de efeito, para os “dirigismos”, para os depósitos cognitivos, para o falso saber que visa “controlar o pensamento e a ação, levando os homens ao ajustamento do mundo” (Freire, 2006, p. 74), quando muito, leva a uma espécie de pseudoparticipação. Já na horizontalidade há uma verdadeira socialização do poder da palavra e uma partilha de conhecimento capaz de gerar um saber autêntico. Só aqui é que se forja uma educação como prática da liberdade, que é por essência oposta a todo o tipo de alienação.

Ainda para Freire (2006), a educação, como prática da liberdade, compromete-se com a ação libertadora e, por isso, não pode “fundar-se numa compreensão de homens vazios a quem o mundo ‘encha’ de conteúdos” (p. 77). Muito pelo contrário, “a libertação autêntica, que é a humanização em processo, não é uma coisa que se deposita nos homens. Não é uma palavra a mais, oca, mitificante. É práxis, que implica na ação e na reflexão dos homens sobre o mundo para transformá-lo” (p. 77), busca o emergir das consciências que resulta numa inserção crítica na realidade.

A tomada de consciência que desencadeia a ação revela um preceito fundamental da Educação Social, que também tem origem na obra de Freire: a conscientização. Por conscientização entende-se a apreensão crítica do indivíduo do seu lugar na sociedade. Esta consciência crítica não se revela apenas no esforço intelectual, mas sim na práxis, na relação ação-reflexão, e deve ser o principal objetivo da ação cultural pela liberdade (Freire, 2001a). Ação que contraria a apatia e faz brotar um “estado utópico de denúncia e anúncio, um projeto viável” (Freire, 1979, p. 45). Isto porque “o momento do trânsito pertence muito mais ao amanhã, ao novo tempo que anuncia, do que ao velho. É que ele tem algo nele que não é dele, enquanto não pode ser do amanhã” (Freire, 2003a, p. 56). “A conscientização não está baseada sobre a consciência, de um lado, e o mundo, de outro; por outra parte, não pretende uma separação. Ao contrário, está baseada na relação consciência – mundo” (Freire, 1979, p. 15).

Estes pressupostos de Freire evidenciam um compromisso com a liberdade e com a autonomia, revelam uma educação que promove a assunção do sujeito, refuta todo e qualquer tipo de objetificação, a massificação que afasta as pessoas de um olhar crítico sobre a realidade e que retira o poder participativo e de decisão.

Freire aponta para uma educação que transite da ingenuidade para a criticidade, que possibilite a tomada de consciência e o desenvolvimento de contradições, que conduzam a novas formas de (inter)agir. A este respeito provoca o apanágio de uma educação problematizadora.

A educação problematizadora é comprometida com a libertação. É questionadora, “(…) se funde na criatividade e estimula a reflexão e a ação verdadeira dos homens sobre a realidade, responde à sua vocação, como seres que não pode autenticar-se fora da busca e da transformação criadora” (Freire, 2006, p. 83). De natureza dialógica e reflexiva, esta forma de entender e viver a educação liberta o pensamento no sentido de fazer o mundo mais humano, logo inquieta, é rebelde. Na prática, supera a dicotomia educador-educando, sendo ambos sujeitos cognoscentes e objetos-cognoscíveis, investigadores críticos da realidade. Trata-se de um processo marcado por desafios ligados ao concreto, assentes em compromissos, gerando uma forma autêntica de pensar e atuar (Freire, 2006).

3. A pedagogia crítica: caminho de libertação

O problema de humanização nas nossas sociedades deve ser o problema central da educação, sobretudo da Educação Social. Este pensamento é gestor da preocupação de perceber a presença da desumanização não só como “viabilidade ontológica, mas como realidade histórica” (Freire, 2006, p. 32), logo a Educação Social deve estar forjada na pedagogia crítica, que reclama uma ação insurreta, contrária à falsa generosidade e às intervenções “de gesso”, portanto ela deve ser emancipatória.

A sua natureza emancipatória desnuda a falsa neutralidade, exige tomada de posição, revela a natureza política da educação. A pedagogia crítica pretende o envolvimento do sujeito no exercício político, visa a construção de sociedades menos injustas, alicerçada nos valores de uma igualdade diferenciada e de sociedades abertas, multi e interculturais, assentes na democracia. O que acolhe a utopia e as inquietações freirianas,

Um desses sonhos por que lutar, sonho possível, mas cuja concretização demanda coerência, valor, tenacidade, senso de justiça, força para brigar, de todas e de todos os que a ele se entreguem é o sonho por um mundo menos feio, em que as desigualdades diminuam, em que as discriminações de raça, de sexo, de classe sejam sinais de vergonha e não de afirmação orgulhosa ou de lamentação puramente cavilosa. No fundo, é um sonho sem cuja realização a democracia de que tanto falamos, sobretudo hoje, é uma farsa (Freire, 2001d, p. 14).

A pedagogia crítica visa contrariar esta farsa e faz-se dialógica e dialética e, por isso, praxiológica. Com efeito apresenta-se mais democrática e mais justa, capaz de reconhecer o poder de voz aos sujeitos, logo mais participativa. Entramos, portanto, no campo da educação libertadora, também designada educação popular, que grosso modo, se estabelece como a educação que busca a hegemonia das classes populares, que tem como ponto de partida a cultura popular e busca a assunção do sujeito como ator político. Esta realiza-se “tornando políticas as ações sociais e culturais de um povo, através do que lê realiza e através do que lê reflete e descobre, ao realizar como forma de luta a sua ação, ao convertê-la em prática com sentido histórico” (Brandão, 1984, p. 93).

Consolidada num clima de otimismo e de crença na humanidade, sobretudo nos que têm a sua dignidade roubada, a educação popular visa suprimir todo e qualquer modelo de sociedade que viole o sentido de justiça, os direitos humanos e o respeito pela pessoa humana em toda a sua essência. E, para além de ser formação política, ela é ética e estética, é expressão de luta, porque realiza-se

Como processo de conhecimento, formação política, manifestação ética, procura da boniteza, capacitação científica e técnica, a educação é prática indispensável aos seres humanos e deles específica na História como movimento, como luta. A História como possibilidade não prescinde da controvérsia, dos conflitos que, em si mesmos, já engendrariam a necessidade da educação (Freire, 2001d, p. 10).

De matriz progressista, a educação popular suplanta uma educação que oprime, que é bancária, visa a superação do senso comum pelo conhecimento mais crítico, que parte do quotidiano e que se vai revelando nas práticas, nas lutas e na resistência, numa perspetiva democrático-libertária, melhor dizendo: numa radicalidade democrática (Freire & Betto, 2003). Sem esquecer que

(…) toda prática educativa libertadora, valorizando o exercício da vontade, da decisão, da resistência, da escolha; o papel das emoções, dos sentimentos, dos desejos, dos limites; a importância da consciência na história, o sentido ético da presença humana no mundo, a compreensão da história como possibilidade jamais como determinação, é substantivamente esperançosa e, por isso mesmo, provocadora da esperança (Freire, 2000, p. 23).

A esperança que se evidencia na incompletude do sujeito, na sua educabilidade. No entanto, não é uma esperança de esperar, mas como diz Freire: uma esperança do verbo “esperançar”, que também poderíamos designar como a utopia dos sonhos possíveis (Freire & Nogueira, 1989; Freire, 2001c). Trata-se de contrariar a desesperança dos “esfarrapados do mundo”, daqueles que têm o amanhã roubado, porque

O discurso da impossibilidade de mudar o mundo é o discurso de quem, por diferentes razões, aceitou a acomodação, inclusive por lucrar com ela. A acomodação é a expressão da desistência da luta pela mudança. Falta a quem se acomoda (ou quem se acomoda fraqueja), a capacidade de resistir. É mais fácil a quem deixou de resistir, ou a quem sequer foi possível em algum tempo resistir, aconchegar-se na mornidão da impossibilidade do que assumir a briga permanente e quase sempre desigual em favor da justiça e da ética (Freire, 2000, p. 20).

A Educação Social que aqui se defende exige esta utopia, exige rebeldia face às injustiças. Impõe esta utopia de buscar criar o novo, o que não existe. Sonha com uma sociedade para todos. Uma utopia construída numa lógica de possibilidades e que só se realiza longe dos discursos e das lógicas fatalistas e, por isso mesmo, tem morada no pensamento e nas ações de um/a educador/a social que não se deixa abater pelo fatalismo, pela visão burocrática e por ideias pré-concebidas e pré-determinadas por poderes hegemónicos, mas sim naquele/a cuja sua prática se funde numa ação crítica e comprometida com a mudança.

4. A ação e a ética freiriana na Educação Social

No conjunto da sua obra, Paulo Freire vai-nos lembrando que mulheres e homens são seres, socialmente e historicamente, programados para aprender e, na mesma medida, capazes de ensinar. Fala-nos de um aprender gnosiológico que, por sua natureza, não se realiza na transferência e no depósito de conhecimento, e sim na constatação da realidade e na capacidade de conhecer e agir na construção e reconstrução de mundos possíveis, indo ao encontro das necessidades dos sujeitos.

Esta visão gnosiológica agrega a dimensão política, estética, moral e ética tão presente na Educação Social, envolve, sobretudo, a compreensão de que a transformação do sujeito e do seu meio é algo que não está fora, pré-determinado, está intrínseco à condição humana, e, por isso, o futuro, o amanhã é um desafio, é um problema dos homens. Para ele, somos seres programados para aprender e que resulta do

(…) ser “aberto” em que nos tornamos, a existência que in-ventamos, a linguagem que socialmente produzimos, a história que fazemos e que nos faz, a cultura, a curiosidade, a indagação, a complexidade da vida social, as incertezas, o ritmo dinâmico de que a rotina faz parte mas a que não o reduz, a consciência do mundo que tem neste um não eu e a de si como eu constituindo-se na relação contraditória com a objetividade (Freire, 2001d, p. 12-13).

Neste sentido, falamos de uma Educação Social cuja finalidade é uma ação transformadora, que trabalha para a construção da humanidade, da justiça e da dignidade para todos os seres humanos, assim sendo é incompatível com as ações alienantes de uma falsa caridade, construída de maneira vertical e distante. A Educação Social não abdica de uma educação amorosamente crítica. Muito embora, ao contrário do que se possa pensar, não se trata de uma educação alicerçada num otimismo ingénuo, e sim, numa esperança também ela crítica, repousada na crença

(…) que os homens podem fazer e refazer as coisas; podem transformar o mundo. Crença em que, fazendo e refazendo as coisas e transformando o mundo, os homens podem superar a situação em que estão sendo um quase não ser e passar a ser um estar sendo em busca do ser mais (Freire, 1985, p. 74).

Esta visão de educação deixa claro que a ação educativa não deve ser construída numa espécie de extensão que objetifica, que nega a condição de ser sujeito, que domestica. A ação educativa que deve orientar a Educação Social possui uma natureza dialética Homem-mundo e só se efetiva através do diálogo, da comunicação, do ato de ver os indivíduos como seres concretos, como agentes de mudança e exige uma tomada de consciência. Efetivamente, é uma educação humanista voltada para a libertação. Mas esta libertação também implica numa nova compreensão e reinvenção do poder:

(…) não me parece possível discutir a liberdade, a transformação do mundo, a revolução, a democracia, sem uma compreensão crítica do papel da subjetividade, que não a veja, de um lado, como pura cópia da objetividade, de outro, como uma entidade todo-poderosa. Ao lado deste problema, o do papel da subjetividade na feitura da história, como um dos problemas teórico-práticos do fim deste século, juntaria um outro, de implicações também político-pedagógicas – o do Poder (Freire & Macedo, 2011, p. 206).

A discussão sobre o exercício do poder, e das relações inerentes a ele, constitui também uma preocupação da Educação Social. As nossas sociedades, sendo elas de natureza complexas, levam-nos a viver, muitas vezes, submergidos no tempo, visto que compreendemos a vida como repetição diária e temos a história como um dado acabado, como um destino inexorável. Se assim o é, aceitamos de forma servil o não acesso à participação. Em última instância, o afastamento do poder resvala à destruição da liberdade criadora. No entanto, como advoga a corrente do pensamento freiriano, podemos afirmar que a história pode ser um destino condicionado, mas não determinado.

Se queremos sociedades mais justas e humanas, devemos criar condições para que os sujeitos sejam capazes de ler o seu mundo e de atuar, como construtores do seu processo de perfetibilidade e como agentes de transcendência do estado das coisas, porque “a imaginação, os desejos, os medos, as fantasias, a atração pelo mistério, tudo isso nos insere, como seres educáveis, no processo permanente de busca (…)” (Freire, 1997 p. 13).

Esta crença na perfetibilidade e da transcendência do estado das coisas são condições impulsionadoras para o exercício da Educação Social. Esta deve trabalhar no sentido de promover uma participação crítica, de desconstruir a ideia de que a história, por si só, tem poder. A história é produto dos homens e ela faz-se à medida que os homens se fazem (Freire & Macedo, 2011). Para tanto, é preciso formar o sujeito para que o mesmo tome o seu destino nas mãos e tenha o poder de participar ativamente da sua história. Mudanças estas que implicam no rompimento com alguns setores hegemónicos.

O pensamento freiriano descredibiliza a lógica de poder unidirecional e unidimensional, e fala-nos de poderes que fluem, confluem e conflituam, que necessitam dialogar, que necessitam ser pensados face à necessidade da construção da liberdade, porque a liberdade nunca é doação, será sempre uma conquista. E se assim o é, a prática social ultrapassa a visão, ainda ingénua, de dar voz aos sujeitos e progride no sentido de conferir o poder da voz, ou melhor dizendo, exige o reconhecer da voz, respalda o poder que emana do sujeito e das classes populares, “é o meio discursivo para que se façam ‘ouvir’ e para que se definam como autores ativos do próprio mundo” (Freire & Macedo, 2011, p. 185).

O projeto de sociedade sedimentado numa visão humanista, de emancipação não prescinde de práticas educativas que se construam numa lógica de proximidade, de encontro e de coconstrução. Estas condições que impelem a uma outra característica da educação defendida por Freire: a afetividade, por ele designada de amorosidade educativa. Esta passa pelo respeito à pessoa, na convivência amorosa, numa postura curiosa e aberta, no respeito à dignidade e autonomia do educando (Freire, 2004). Esta amorosidade educativa exige afetividade, rigor e uma constante vigilância do/a educador/a. A este respeito diz-nos Freire:

Sinto-me interiormente incompleto, nos níveis biológico, afetivo, crítico e intelectual, e essa incompletitude me impele, de maneira constante, curiosa e amorosa na direção das outras pessoas e do mundo, em busca de solidariedade e de transcendência da solidão. Tudo isso implica querer amar, uma capacidade para amar que as pessoas têm que criar dentro de si mesmas. Essa capacidade aumenta na medida em que se ama; diminui, quando se tem medo de amar (Freire & Macedo, 2011, p. 242).

Este não ter medo de amar convida-nos a olhar para outra dimensão do trabalho de Paulo Freire, também ele presente na Educação Social: a unicidade. Cada ser humano é único, ele não se repete, como não se repetem os seus contextos de vida. Esta sua singularidade torna-o incomparável, inconfundível. Ao mesmo tempo que é:

(…) um ser comunitário, membro de uma sociedade, “ser-com-os-outros, intersubjetividade é também individualidade, interioridade, intimidade, decisão e engajamento. Se por um lado o homem é parte, fragmento, objeto, por outro lado é também todo unificado, totalidade, universo, fim. Portanto, pode-se dizer que o homem é um ser em si mesmo, sujeito que não pode ser redutível a objeto por ninguém, ao menos em forma definitiva e absoluta (Nanni, 1992, p. 94).

É na sua individualidade que se funde a liberdade, mas a liberdade é uma conquista individual e coletiva. Ela resulta da problematização Homem-mundo da tomada de consciência do Homem com as suas relações, quer com o mundo, quer com os outros Homens, isto é, resulta da superação mágica da realidade que advém da humildade para aprender-ensinar, da noção de inacabamento, da curiosidade intelectual e da abertura para o novo. Melhor dizendo:

educar e educar-se, na prática da liberdade, é tarefa daqueles que sabem que pouco sabem – por isto sabem que sabem algo e podem assim chegar a saber mais – em diálogo com aqueles que, quase sempre, pensam que nada sabem, para que estes, transformando seu pensar que nada sabem em saber que pouco sabem, possam igualmente saber mais (Freire, 1985, p. 25).

A visão freiriana também nos convida a pensar a dimensão estética, sobretudo porque o seu pensamento refere o Homem como fazedor de cultura. Os sujeitos são convidados a pensar de forma crítica a sua situação existencial, a pensar que as suas diferenças não são naturais, mas sim, que resultam de fatores históricos e culturais, indo ao encontro do que defende a Educação Social, uma sociedade capaz de prestar atenção e cuidado a todos e todas, sobretudo aos mais vulneráveis e excluídos. Uma Educação Social capaz de relacionar a identidade individual e a identidade cultural, de forma a responder ao desafio ético e ao compromisso que temos enquanto sujeitos, porque “quando vivemos a autenticidade exigida pela prática de ensinar-aprender participamos de uma experiência total, diretiva, política, ideológica, gnosiológica, pedagógica, estética e ética, em que a boniteza deve achar-se de mãos dadas com a decência e com a seriedade” (Freire, 2004, p. 24). Com a boniteza, expressão da pedagogia freiriana, encontramo-nos “(…) diante de um conceito que, em unidade com a ética, articula em toda sua extensão metafórica a beleza, a bondade, a verdade, a legitimidade, a liberdade e a civilidade política das ações humanas, especialmente as ações pedagógicas” (Casali, 2016, s/n). Para Freire, “Nós, mulheres e homens, nos tornamos seres refazedores, reconstrutores do mundo que não fizemos. E não há reconstrução sem criatividade. No fundo, a criatividade tem que ver com a remodelação do mundo”. (Freire, 2013, p. 359-360).

Uma das Ideias-força mencionada por Freire na sua obra Conscientização refere que “cada homem está situado no espaço e no tempo, no sentido em que vive numa época precisa, num lugar preciso, num contexto social e cultural preciso. O homem é um ser de raízes espácio-temporais” (Freire, 1979, p.19). Esta afirmação leva-nos também para a dimensão ecossistémica e transdisciplinar já presente nos seus escritos. A sua perspetiva humanista traz à tona um novo paradigma capaz de promover o diálogo entre o saber científico e a experiência concreta dos indivíduos, um paradigma de natureza praxiológica. Traz “(…) um olhar mais humanístico, coletivo e global que seja capaz de conectar o ser humano à sociedade e ao meio ambiente, na busca por mudança nas suas práticas tanto educativas quanto em sociedade” (Pinho; Queirós & Freire, 2021).

5. O/A Educador/a Social: assunção de compromisso na ação, na profissão e na profissionalidade

O/A Educador/a Social, como agente de um outro mundo possível, é convidado a alimentar e gerar utopias, sobretudo num momento que se evidencia frágil.

A morte das ideologias libertárias e a predominância da ótica liberal, como sinónimo de democracia e liberdade, aceleram o processo de desumanização. Reflui-se do coletivo ao privado; do social ao individual; do histórico ao momentâneo. O que era povo transforma-se em aglomerados de pessoas; as classes se esgarçam em interesses pessoais movidos pelo mimetismo espelhado no comportamento da elite; a nação se deixa recolonizar pela progressiva mercantilização da aldeia global (Frei Betto, 2013, p. 79-80).

Ao/À educador/a cabe a árdua tarefa de ajudar a construir uma sociedade onde se valorize os direitos humanos, a cidadania, a capacidade participativa dos sujeitos. Nesta medida, a educação deve ser a referência que une e mobiliza todos nesta direção. Esta forma de ver a educação deve ser radicalmente ética.

Uma de nossas tarefas, como educadores e educadoras, é descobrir o que historicamente pode ser feito no sentido de contribuir para a transformação do mundo, de que resulte um mundo mais “redondo”, menos arestoso, mais humano, e em que se prepare a materialização da grande Utopia: Unidade na Diversidade (Freire, 2001d, p. 20).

Falamos então de um/a educador/a e que antes de serem educadores/as também são humanos, um ser social, logo a sua prática deve realizar-se através de uma educação capaz de diminuir “a distância entre o sonho e a concretez do sonho. O sonhador se junta a outro sonhador e eles encurtam a distância entre o sonho e a vida sonhada” (Freire & Nogueira, 1989, p. 44).

O/A educador/a comprometido desenvolve a curiosidade e desperta horizontes de possibilidades, é humilde, suficientemente, para perceber o que os sujeitos são capazes de ver, sentir e agir, de apreender a significação do discurso teórico, que são capazes de, em conjunto com ele, adentrar na realidade através de um processo de reflexão-ação. Assim, “molhando-se das águas culturais e históricas, das aspirações, das dúvidas, dos anseios, dos medos das classes populares que, organicamente vai inventando com elas caminhos verdadeiros de ação, distanciando-se cada vez mais dos caminhos da arrogância e do autoritarismo” (Freire & Faundez, 2002, p. 68).

A natureza orgânica da sua ação, movida pela sua sensibilidade e competência, permite o conhecimento mais sistematizado da realidade a fim de contribuir para que os sujeitos desenvolvam a sua autonomia e, por conseguinte, aprendam a aprender, descubram as suas possibilidades, sejam capazes de resistir e de lutar. Os/As educadores/as são intelectuais orgânicos (Gramsci, 1999). “Eles fazem a ponte entre a inteligência e a experiência vivida, eles iluminam conteúdos já pressentidos no interior da prática” (Freire & Nogueira, 1989, p. 30). Também é humilde, suficientemente, para reconhecer a sua constante necessidade de ser e de conhecer. A esse respeito, diz-nos Freire (2004):

Como posso respeitar a curiosidade do educando se, carente de humildade e da real compreensão do papel da ignorância na busca do saber, temo revelar o meu desconhecimento? Como ser educador, sobretudo numa perspectiva progressista, sem aprender, com maior ou menor esforço, a conviver com os diferentes? Como ser educador, se não desenvolvo em mim a indispensável amorosidade aos educandos com quem me comprometo e ao próprio processo formador de que sou parte? Não posso desgostar do que faço sob pena de não fazê-lo bem (p. 67).

É impreterível reforçar que a

(…) prática educacional não é o único caminho à transformação social necessária à conquista dos direitos humanos, contudo acredito que, sem ela jamais haverá transformação. A educação consegue dar às pessoas mais clareza para ‘lerem o mundo’, e essa clareza abre a possibilidade de intervenção política (Freire, 2001c, p. 36).

A inclusão desta ideia resulta da vontade em discutir o papel do/a educador/a social, sobretudo de um/a educador/a que toma a sua tarefa de forma crítica, engajada e comprometida com a libertação, um/a educador/a que, de forma eternamente vigilante, “no sentido da preservação da coerência entre a prática e o projeto da nova sociedade” (Freire, 1984, p. 122), contribui para o exercício da liberdade, porque, como diz Streck (2001):

a) a educação é práxis histórica para a libertação dos homens e mulheres; b) é uma práxis abrangente que perpassa todas as esferas da vida; c) é uma práxis diferenciada de outras práticas sociais com as quais, no entanto, se encontra no campo da cultura (p. 75).

O/A Educador/a Social deve ter a sua prática alicerçada na luta incessante de recuperação da humanidade roubada, deve fazer da opressão e das suas causas objeto de reflexão dos oprimidos (Freire, 2006). Vale acrescentar que esta ação de natureza reflexiva o leva à assunção de compromissos que se revelam na sua pessoa, na sua ação, na sua profissão e na sua profissionalidade, refletida numa solidariedade crítica e numa práxis autêntica. Só quando o educador percebe as relações existentes entre a educação e as relações sociais é capaz de agir como agente de transformação.

Neste viés, trata-se de um profissional que se quer crítico, que sabe que a sua prática possui uma intencionalidade educativa, que a sua pedagogia é o caminho para algo que transcende, logo “transformada a realidade opressora, esta pedagogia deixa de ser do oprimido e passa a ser a pedagogia dos homens em processo de permanente libertação” (Freire, 2006, p. 46). A sua inserção crítica na história, a sua consciência-mundo, implica-o, torna-o insurreto, contraria o imobilismo e a falsa crença na imutabilidade das pessoas e das sociedades, porque “a mudança do mundo implica a dialetização entre a denúncia da situação desumanizante e o anúncio da sua superação” (Freire, 2000, p. 37).

Na pedagogia crítica não há lugar para um/um educador/a que viva “um falso amor, uma falsa humildade, uma debilitada fé nos homens” (Freire, 2004, p. 94). É-lhe exigida a confiança e a “(…) confiança implica o testemunho que um sujeito dá aos outros de suas reais e concretas intenções” (Freire, 2004, p. 94). Melhor dizendo, a verdadeira corporização da palavra pelo exemplo.

A “(…) visão da liberdade tem nesta pedagogia uma posição de relevo. É a matriz que atribui sentido a uma prática educativa que só pode alcançar efetividade e eficácia na medida que implica a participação livre e crítica dos educandos” (Freire, 2003a, p. 13). Educar para a liberdade exige um novo paradigma, também ele de natureza crítica, um paradigma emergente capaz de trazer a humanização de teor político à atividade do pensamento científico (Santos, 2013), que pretende um novo saber resultante do confronto do saber popular e do saber científico. O processo de mudança social, de construção e/ou de consolidação de relações sociais exige rigorosidade e novas conceções metodológicas, pois supera a neutralidade científica ao mesmo tempo que gera um novo compromisso ético-político em favor da hegemonia popular. Com efeito,

(…) para os intelectuais que queremos comprometidos com esta perspectiva, a questão é a contribuição do conhecimento e sua produção nos diversos momentos de luta pela mudança social, que parece não acontecer por um passe de mágica nem numa única ação. Parece exigir ações várias e em níveis diversificados no interior de um longo processo (Sousa, et al, 2006, p.32).

Acresce ainda que cabe ao/à Educador/a Social acompanhar as pessoas e/ou os grupos no seu processo de inclusão e participação nas redes de sociabilidade, sendo que a sua tarefa deve resultar de projetos coletivos, de natureza comunitária (Sáez & Molina, 2006), desenvolvidos com os sujeitos através de experiências problematizadoras, capazes de se construírem conhecimento coletivo, indo ao encontro do que bem defende Paulo Freire:

Há uma responsabilidade no/a educador/a na própria programação da educação. E ele não pode fugir a esta responsabilidade: ver tudo que ele possa fazer, no sentido que o educando pouco a pouco, estimulado, desafiado, possa começar a compreender a razão de ser da própria busca em que está inserido (Freire & Guimarães, 2003, p.71).

Considerações finais

A Educação Social consubstancia-se em diferentes campos sociais, a sua essência convoca a ação transformadora da sociedade, procurando torná-la mais humana e justa. Nesse sentido, a Educação Social bebe na fonte da Educação Popular. Uma educação de caráter progressista e democrática, que se funde na dialética de denunciar e anunciar, porque a denúncia que não se alonga em anúncio, é uma denúncia que se castra. “Todo anúncio tem que vir com um amanhã, que por sua vez está se gerando, e não se gera a não ser através da mudança do hoje” (Freire & Guimarães, 2003, p. 65).

De natureza emancipatória, a Educação Social realiza a sua prática assente na visão de que a realidade social é produto dos Homens, e que a mudança da realidade depende da ação concreta dos sujeitos, reconhece que a transformação da realidade é tarefa histórica, trabalha com contradições e visa a conquista de direitos. Esforça-se para que o educando seja sujeito cognoscente do processo de transformação.

Esta Educação Social, de natureza crítica, desenvolve-se no lado oposto de práticas burocráticas, fatalistas e assistencialistas. Ela quer-se utópica, é alimentada pelo sonho da igualdade dentro da diferença, da justiça social e dos direitos humanos. É simultaneamente esperançosa, assente na fé nos Homens e no seu poder de transformação. Por isso mesmo, é ousada, rebelde, rompe a cultura do silêncio e funde-se na luta quotidiana por um melhor ser e viver.

Pensar o lugar do/a educador/a social no âmbito da pedagogia crítica, leva-nos a um fundamento do seu trabalho educativo, que passa por acreditar que “a possibilidade humana de existir – forma acrescida de ser, mais do que viver, faz do homem um ser eminentemente relacional. Estando nele, pode também sair dele. Projetar-se. Discernir. Conhecer” (Freire, 2001b, p. 10).

As ideias de Paulo Freire são indispensáveis na ação do/a Educador/a Social crítico e comprometido com a construção do novo, do inédito. Ainda mais, numa época em que

deveria ser nosso maior desafio de intelectuais e de pesquisadores deste fim de século e de milénio: reinventar um conhecimento que tenha feições de beleza; reconstruir uma ciência que tenha sabor de vida e cheiro de gente, num século necrófilo, que se especializou na ciência e na arte da morte, da guerra e da destruição (Freire, 1993 cit. por Streck et al, 2001, p. 90).

Na senda deste pensamento, a intervenção socioeducativa praticada pelo/a Educador/a Social, deve caracterizar-se pela horizontalidade, participação, coconstrução de possibilidades, desenvolvimento da autonomia dos sujeitos e de novas relações de poder. E porque nenhum ser humano está pronto, todos nós nos vamos fazendo, a premissa básica da Educação Social é a ideia de incompletude, de inconclusão dos sujeitos. Através da educação, o ser humano vai se formando, vai-se (re)construindo e, quiçá, vai-se libertando, a partir de um processo de conscientização, que resulta de uma educação problematizadora. Em síntese, a Educação Social deve ser libertadora, logo a sua natureza é praxiológica, forjada na utopia, na capacidade inventiva e interventiva dos sujeitos. À medida que os Homens mudam a sua realidade, também muda o conhecimento.

Todo conhecimento começa com o sonho. O conhecimento nada mais é que a aventura pelo mar desconhecido, em busca da terra sonhada. Mas sonhar é coisa que não se ensina. Brota das profundezas do corpo, como a água brota das profundezas da terra. (…) Conta-me os teus sonhos para que sonhemos juntos (Alves, 2018, p. 71).

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References
1 Doutorada em Educação pela Universidade de Granada. Professora Adjunta Convidada da Escola Superior de Educação do Porto. Diretora de Projetos e Serviços do Centro Social Paroquial de Santa Eulália-Vizela.
[1]Doutorada em Educação pela Universidade de Granada. Professora Adjunta Convidada da Escola Superior de Educação do Porto. Diretora de Projetos e Serviços do Centro Social Paroquial de Santa … Continue a ler Resumo: A Educação Social deve materializar-se na luta pela liberdade, que por sua vez contraria todo o tipo de opressão," data-link="https://sinergiased.org/freire-o-um-educador-social-rebelde/">

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1 Doutorada em Educação pela Universidade de Granada. Professora Adjunta Convidada da Escola Superior de Educação do Porto. Diretora de Projetos e Serviços do Centro Social Paroquial de Santa Eulália-Vizela.