Cristina Domínguez-Iglesias[1]Escola Superior de Educação – IPVC. cristinaiglesias@ese.ipvc.pt.

Resumo:

Neste artigo, pretende-se evidenciar a atividade implementada como “Clube de Leitura: Distopia tecnológica e desinformação”, do projeto “Desconexão Digital no Ensino Superior”, dedicado a estudantes da Escola Superior de Educação do IPVC. Neste clube de leitura, trabalharam-se obras literárias de distopia tecnológica, através das quais pretendia-se estabelecer um paralelismo entre as situações vividas pelas personagens e temáticas descritas pelos autores destas obras, com a sociedade contemporânea. Para a concretização desta ideia, foram selecionadas obras literárias como “1984” de George Orwell, “Fahrenheit 451” de Ray Bradbury, assim como obras recentes, incluindo “Gosto, logo existo” da autora Isabel Meira. Em cada sessão, foram lidos excertos da obra selecionada por participantes voluntários, sendo que o texto os incentivava a fazer uma análise da temática convidativa ao pensamento crítico. O clube de leitura demonstrou a importância do pensamento crítico como uma ferramenta de cidadania, essencial para combater fundamentalismos políticos e preservar os direitos fundamentais em sociedades democráticas.

Palavras-chave: Pensamento Crítico; Literatura Distópica; Literacia Mediática; Notícias Falsas; Redes Sociais; Capitalismo da Vigilância.

Introdução

O projeto “Desconexão Digital no Ensino Superior” (DDES), promovido pela Biblioteca Prof.º Luís Mourão da ESE-IPVC, foi concebido como uma iniciativa dos profissionais deste serviço, com o objetivo de desenvolver um programa de extensão cultural que envolvesse a biblioteca num papel interventivo e educativo, alertando para os efeitos nocivos da utilização desinformada das redes sociais e dos media. Uma das atividades incluídas no programa do projeto é a referente ao clube de leitura: “Distopia tecnológica e desinformação”.

A ideia surge como consequência da temática central do projeto DDES: o “capitalismo da vigilância”, conceito formulado pela socióloga Shoshana Zuboff na sua obra homónima. Na referida obra, Zuboff discute a manipulação e vigilância a que os cidadãos estão a ser sujeitos atualmente, desde o aparecimento dos grandes gigantes tecnológicos “Google” e “Facebook”.

Outros autores, como o filósofo Byung-Chul Han, também escreveram ensaios sobre este fenómeno, para discutir a problemática da sociedade contemporânea. Han (2015) descreve um novo paradigma de controlo que difere das formas tradicionais de poder, baseadas na repressão aplicada por sistemas políticos repressivos. Neste novo sistema, o poder é exercido de forma subtil, através do “big data”, a manipulação psicológica, e a exploração da liberdade individual. “Através da transparência, do Big Data e da psicopolítica, o capitalismo de vigilância transforma o indivíduo em um produto previsível e manipulável, mantendo-o em um estado de alienação voluntária e conformidade passiva”.

Adicionalmente, Jonathan Crary no ensaio “Terra queimada”, aborda algumas das consequências diretas da devastação que este tipo de sistema económico está a provocar no meio ambiente: infraestruturas físicas para os centros de dados, e a destruição de ecossistemas; os recursos naturais para manter o nível de consumismo imediato oferecido por empresas de comercio digital como Amazon, ou os gigantes chineses: Temu e Alibaba (que a sua vez também usam métodos de vigilância para publicitar os seus produtos aos consumidores); e a gestão de resíduos eletrónicos, são problemáticas nunca tratadas pelas empresas tecnológicas, mas que Crary detalha na sua obra.

Face a estas preocupações, o clube de leitura incluiu duas sessões dedicadas à discussão da manipulação dos média para fins políticos e corporativos, e a imediata transmissão da informação na internet. Nessas sessões, o objetivo foi a melhor compreensão do conceito de literacia mediática como ferramenta para combater a desinformação e a manipulação dos meios de comunicação tradicionais e digitais.

A urgência destas temáticas levou-nos a desenhar um programa para o clube de leitura com novelas e ensaios, nos quais os participantes pudessem refletir sobre as temáticas tratadas pelos autores, realizando uma comparativa com a realidade dos próprios estudantes. A literatura é aqui utilizada como um instrumento para promover o desenvolvimento do pensamento crítico, uma vez que os clubes de leitura proporcionam espaços de reflexão coletiva, onde os participantes têm a oportunidade de desenvolver uma “leitura crítica” das obras. Neste contexto, o principal objetivo do clube é fomentar a análise profunda e o debate em torno das questões contemporâneas.

Por último, a recente promoção dos clubes de leitura no Ensino Superior por parte do Plano Nacional de Leitura português (PNL2027), e o reconhecimento, por parte de profissionais de bibliotecas de Ensino Superior, da necessidade de fomentar este hábito entre os estudantes, levou à proliferação de clubes de leitura neste ambiente. Tendo em conta este contexto, a nossa instituição considerou evidente a criação desta atividade em detrimento de outras iniciativas de educação não formal que pudessem ter um impacto inferior.

Revisão da Literatura

A tese de mestrado de Gabriel Myrvang, intitulada “Facilitation of critical thinking and ethical awareness by reading dystopian literature” defendida na UIT: The Arctic University of Norway, constitui um contributo relevante para a exploração da literatura distópica como ferramenta de desenvolvimento do pensamento crítico e da consciência ética. Myrvang foca-se nas obras 1984 e Fahrenheit 451, destacando o seu potencial para estimular a reflexão crítica sobre as problemáticas sociais nelas descritas. O autor também cita Martha Nussbaum e Wayne C. Booth, os quais nas suas investigações indicam que a literatura pode funcionar como catalisador emocional, como uma ferramenta poderosa para despertar a empatia, sendo que o livro se torna um amigo para o leitor, e dessa forma, durante o tempo “da amizade” entre o livro e o leitor, esta relação entre ambos pode transformar o sistema de crenças éticas e até modificar o sistema de valores do leitor.

A literatura distópica, de acordo com Myrvang, pode ser interpretada como uma “cautionary tale” (história preventiva), o que reforça o seu valor no contexto do clube de leitura, ao funcionar como uma advertência contra as consequências dos sistemas de vigilância e manipulação descritos.

Levi, S. (2022), explora a problemáticas das notícias falsas na sua obra “Fake news: não te deixes enganar”. Embora esta obra seja uma adaptação para o publico juvenil da sua obra: “Fake you” (2019), são exploradas as temáticas relacionadas com a manipulação para fins políticos, ideológicos ou comerciais, através da publicação em redes sociais e meios de comunicação digitais. Nesta obra se tratam assuntos como os métodos de criação de notícias falsas, as motivações para a criação e divulgação destas, assim como os vieses cognitivos que facilitam o processo de acreditar neste tipo de informação falsa.

No que diz respeito aos clubes de leitura e à leitura partilhada, Daniels, H. (2002, p.18), destaca a importância da leitura partilhada em grupo para o desenvolvimento do pensamento crítico: uma vez que a reflexão coletiva permite que os participantes identifiquem matizes que, por vezes, podem escapar durante a leitura individual. Esta prática de “leitura em comunidade” incentiva uma análise mais profunda e detalhada, reforçando competências críticas como a capacidade de identificar e questionar situações.

Além disso, Álvarez-Álvarez, C. e Pascual Díez, J. (2024), realizaram uma revisão da literatura de 180 estudos pesquisados na Web of Science, sobre clubes de leitura no período de 2010-2022. Neste trabalho o pensamento crítico é visto como uma aportação dos clubes de leitura de educação primária, sendo que nos clubes de leitura de Ensino Superior destacam-se os seguintes benefícios: Promoção do desenvolvimento académico e profissional; Desenvolvimento da empatia; Leitura de livros com valor literário; Leitura acessível para estudantes de primeiro ano de cursos de Ensino Superior; Ambiente propício de intercâmbio de ideias entre alunos e professores num ambiente não formal.

Por fim, Brouckaert, M. (2017), no seu trabalho como mediador de leitura compartida, oferece uma perspetiva inovadora que difere dos clubes de leitura tradicionais. Nas sessões de leitura compartida, os participantes não sabem qual vai ser o texto a ser tratado na sessão, o qual implica que não exista uma preparação prévia dos participantes da sessão, de modo que o foco da sessão seja unicamente o texto que está a ser partilhado nesse momento. Dessa forma, tal e como indicado pelo autor: “as interações dos estudantes são espontâneas e relacionadas com as suas próprias vivencias: pensamentos, memórias, etc”. Em suma, são estas associações com o texto, que podem criar os momentos de pensamento crítico pretendidos.

Metodologia

Para a implementação das atividades coordenaram-se as seguintes questões:

  • Seleção das obras: Como indicado na introdução, o clube de leitura forma parte do projeto “DDES”, com o qual se pretende criar conscientização das consequências do capitalismo de vigilância, assim como o abuso do uso dos dispositivos eletrónicos. Não obstante, para o clube de leitura a temática foi ampliada às consequências dos meios de comunicação digital, sendo que a desinformação é outra forma de manipulação dos cidadãos.
    Portanto, no processo de planeamento do clube de leitura foram consideradas obras literárias de distopias tecnológicas, livros de literatura juvenil, e ensaios sobre jornalismo e comunicação mediática, para criar sessões que nos permitissem abordar as temáticas escolhidas.
  • Cartaz do clube de leitura: Solicitou-se a colaboração de um docente da área de ilustração da ESE-IPVC, Hugo Maciel, para a criação de um cartaz capaz de captar a atenção dos alunos. Consideramos que era importante que a parte gráfica do mesmo não ficasse ofuscada pela sobrecarga de material visual que os alunos confrontam diariamente, tanto na instituição de Ensino, como nos seus próprios dispositivos móveis (Figuras 1 e 2).
  • Comunicação: criou-se uma notícia por semestre no site institucional da ESE-IPVC com a informação das sessões do clube (título do livro, autor, data da sessão, local e horário). Por outro lado, publicaram-se notícias nas redes sociais da ESE-IPVC para cada uma das sessões, assim como histórias onde eram partilhadas o endereço direto de inscrição às sessões. E, por último, a docente coorganizadora do clube de leitura informou de forma oral após a conclusão das aulas.
  • Requerimento de inscrição prévia: através da inscrição prévia era possível considerar o número de participantes na atividade para a organização da logística do evento.
  • Comunicação prévia das necessidades aos funcionários da ESE-IPVC: desta forma os colaboradores do clube tinham a informação precisa para a montagem da sala na qual se organizavam as sessões.
  • Montagem da sala: considerou-se importante que a sala tivesse um círculo de cadeiras no qual os participantes se sentissem confortáveis, criando um ambiente de igualdade entre todos os participantes do clube. Os lugares eram escolhidos de forma aleatória de forma que os participantes pudessem sentir que podiam partilhar as ideias de forma livre e sem hierarquias como as criadas em sala de aula. No centro do círculo foram posicionadas mesas para servir o lanche oferecido, livre de ser consumido durante a sessão.
  • Periodicidade das sessões: As sessões foram organizadas de forma mensal, sempre no mesmo dia do mês, sendo que os alunos não tinham aulas na parte da tarde e facilitava a participação dos mesmos no evento.
  • Escolha da dinamização: esta foi levada a cabo pelas organizadoras do clube de leitura (bibliotecária e docente organizadoras do clube).
  • Metodologia de dinamização: foi aplicado um sistema misto entre a teoria dos grupos de leitura em voz alta e os clubes de leitura tradicionais, sendo que os participantes sabiam qual era a obra que ia ser trabalhada durante a sessão, mas não era assumido que a tivessem lido. Assim sendo, a bibliotecária organizadora por norma iniciava a sessão com uma breve apresentação do livro, autor e temática; de seguida era iniciada a leitura em voz alta dos excertos do livro (previamente selecionados pelas organizadoras do clube). A leitura podia ser interrompida de forma a dar início à discussão que, de forma geral, era iniciada pela docente organizadora, dessa forma os tópicos lidos não ficavam esquecidos na leitura do texto, dando lugar a sessões onde prevalecia o dinamismo. Finalmente, o livro era partilhado com um leitor voluntário, normalmente estudante, e a dinâmica anterior era retomada pela docente sendo que foi uma metodologia eficiente para o fomento do diálogo entre os participantes.

Estudo de Caso – Descrição das sessões

Primeira sessão do Clube de Leitura

Obra: Gosto, logo existo: redes sociais, jornalismo e um estranho vírus chamado fake news de Isabel Meira e Bernardo P. Carvalho. Planeta Tangerina, 2020;

Data: 29 de novembro de 2023;

Nº de participantes: 13 estudantes (dois não inscritos no formulário), 2 mediadoras e uma docente;

Duração da sessão: 180 minutos;

Assuntos abordados durante a sessão: Capitalismo da vigilância; redes sociais; uso de dados pessoais; genocídio da comunidade “rohingya”;

Descrição: Durante esta sessão, a prioridade foi introduzir a temática do capitalismo de vigilância, bem como esclarecer o funcionamento do negócio dos dados pessoais conduzido por redes sociais de empresas como a Meta e o TikTok, etc. A obra selecionada para explorar este tema foi escolhida pela sua linguagem acessível, a eficácia dos exemplos fornecidos pela autora, e a sua capacidade de explorar conceitos relevantes que foram abordados ao longo da sessão. Na página 142 do livro com a secção intitulada: “Tu és o produto”, a autora descreve a realidade da nossa sociedade digital, na qual qualquer indivíduo pode divulgar conteúdo falso na internet Além disso, as campanhas de desinformação têm o potencial de alterar os resultados de eleições democráticas, e qualquer pessoa com acesso a redes sociais pode ser influenciada pelo fenómeno da “bolha digital”, que favorece a manipulação através dos algoritmos dessas plataformas. Nesta mesma secção é discutido o genocídio da comunidade “Rohingya” em Myanmar, o que foi especialmente impactante para os participantes da sessão. Este exemplo permitiu-lhes compreender que estas questões não são apenas pertinentes, mas absolutamente fundamentais para o exercício de uma cidadania crítica. Compreenderam que as redes sociais e as notícias falsas não se limitam ao espaço virtual, tendo repercussões significativas no mundo real.

Segunda sessão do Clube de Leitura

Obra: 1984 de George Orwell; D. Quixote, 2021;

Data: 13 de dezembro de 2023 (data alterada por motivo do fim das aulas);

Nº de participantes: 17 estudantes, 2 mediadoras e uma docente;

Assuntos abordados durante a sessão: Sistemas políticos autocráticos; vigilância; “telecrã”; “novilíngua”; liberdade;

Descrição: A obra 1984 foi o mote escolhido para uma sessão na qual o foi posto o foco nos conceitos de vigilância e ataque à liberdade. A sessão começou com uma pequena introdução biográfica sobre George Orwell, a sua experiência na luta contra o fascismo na Guerra Civil espanhola e as suas críticas ao sistema político comunista, no qual a o conceito de vigilância era uma realidade permanente na vida dos cidadãos desse tipo de regime político. Esta constante da obra de Orwell, serve como figura retórica que facilita o debate, criando símeis entre o telecrã e os nossos dispositivos móveis atuais; a informação recolhida pelos espias do partido e as atuais empresas digitais, que tal e como indica Cheney-Lippold, J. ” Uma simples pesquisa na web, até mesmo a partir dos smartphones mais básicos, gera um longo registo de novos dados. […]. A esta lista, junta-se tudo o mais que fazes com esse telefone, tudo o que fazes no teu computador, e tudo o mais que possa ser registado sobre a tua vida por agentes de vigilância.”

Esta parte da sessão, ajudou a reforçar a noção da vigilância tecnológica atual, e sublinhou o facto da ausência de literacia digital na nossa sociedade para ajudar a compreender o este paradigma. Por outro lado, considerou-se importante pelas organizadoras abordar a questão da “novilíngua”, sendo que o autor utiliza esse conceito como uma ferramenta poderosa para abordar a questão da manipulação através da língua. Na obra de Orwell, com cada nova edição do dicionário, os linguistas do partido criavam termos a partir de vários conceitos, sendo que retiravam os conceitos anteriores, e eliminavam as palavras indicadas pelos ideólogos do partido como manipulação psicológica, tal e como indica o linguista na obra de Orwell: “Queremos restringir o domínio do pensamento, percebes? Desse modo deixarão de existir crimes do pensamento, pois faltarão palavras para o perpetrar. […] Sem o conceito de liberdade, que poderá significar uma expressão como <>”. Após a leitura desta secção, os participantes da sessão concluíram que sem a correta aprendizagem da língua e hábitos de leitura, as pessoas são altamente manipuláveis sendo que não possuem o vocabulário necessário para refletir de forma complexa, ou a capacidade de expressar as suas ideias. Quanto mais rico for o léxico, maiores serão as competências refletivas e dialéticas dos cidadãos.

Terceira sessão do Clube de Leitura

Obra: Fahrenheit 451 de Ray Bradbury;

Data: 28 de fevereiro de 2024;

Nº de participantes: 15 alunos, 2 mediadoras; 4 funcionários da ESE-IPVC; e uma docente;

Assuntos abordados durante a sessão: Meios de comunicação de massas; leitura; entretenimento; pensamento crítico;

Descrição: A obra-prima de Ray Bradbury não deixou indiferente a comunidade académica da ESE-IPVC, refletindo-se no elevado número de inscrições na sessão e o interessante debate que a sua leitura suscitou. Os excertos escolhidos centraram-se no monólogo do comandante Beatty, onde se estabelece um paralelismo entre a sociedade retratada na obra e a “sociedade do vazio”, como descrita por Lipovetsky (1989) no seu ensaio homónimo. Na narrativa de Bradbury, é descrita uma sociedade futurista dominada pelos meios de comunicação, na qual o entretenimento não é apenas um aspeto mais desta sociedade, mas o conceito predominante. Nesta sociedade, os bombeiros queimam livros não como uma imposição governamental, como em 1984 de Orwell, mas como parte do espetáculo constante que os rodeia. O desaparecimento do interesse pela leitura surge, assim, da própria população, que rejeita os livros por iniciativa própria. Este cenário oferece uma analogia perfeita com as reflexões de Lipovetsky sobre a “espetacularização da vida social”, onde os eventos se tornam banalizados pelos meios de comunicação e os indivíduos são motivados a viver em função da aparência e do reconhecimento social.

Durante a sessão, os participantes observaram que atualmente as pessoas são facilmente influenciadas pelos meios de comunicação, redes sociais, e o entretenimento como consequência do cansaço mental. Certamente, desde o início do dia, os indivíduos são submetidos a um fluxo contínuo de notícias, notificações, emails, mensagens e a uma navegação incessante nas redes sociais. Este fenómeno, aliado à autoimposição de produtividade, competitividade e autoexploração decorrente da conexão constante, contribui para um estado de exaustão mental, conforme descrito por Byung-Chul Han na sua obra “A Sociedade do Cansaço” (2014). Assim, houve consenso entre os participantes sobre a importância de promover o descanso e a desconexão, tanto em termos de autoexigência como de exploração laboral, e sobre a necessidade de libertar-se da pressão imposta à conexão constante aos dispositivos móveis. Estes passos são vistos como essenciais para dedicar tempo de qualidade à leitura e alcançar o estado mental propício ao desenvolvimento do pensamento crítico.

Quarta sessão do Clube de Leitura

Obra: Admirável mundo novo de Aldous Huxley;

Data: 20 de março de 2024;

Nº de participantes: 7 alunos e 2 mediadoras;

Assuntos abordados durante a sessão: sociedade de castas; desumanização tecnológica;        clonagem humana; totalitarismo político;

Descrição: esta sessão foi moderada por convite, pela funcionária responsável pela biblioteca, Sónia Silva, sendo que já conhecia a obra de Aldous Huxley. A sessão teve menos inscritos dado a coincidência com outro evento de educação não formal, o qual foi organizado na mesma instituição à mesma hora.

Durante a sessão aprofundou-se a temática de desumanização pela evolução tecnológica, sendo que os cidadãos do Admirável Mundo Novo são manipulados de forma psicológica e, também, através da tecnologia. Um dos aspetos falados pelos alunos, foi como a administração de drogas para manter calma a população poderia ser uma metáfora dos efeitos de dopamina das notificações dos telemóveis: “qualquer coisa que seja simultaneamente menos nociva e mais dispensadora de prazeres que o gin ou a heroína”, Huxley, A.

Por outro lado, as participantes ficaram surpreendidas com a frieza desta sociedade, especialmente quando o selvagem decide que deseja ver o corpo da sua mãe depois da sua morte e as pessoas do Admirável Mundo Novo não sabem como reagir perante esse pedido. Numa sociedade onde as emoções humanas estão quimicamente controladas, não há lugar para a improvisação ou o inesperado.

Em geral, nesta sessão, foi amplamente discutido como a tecnologia não pode tornar-se um fim em si mesmo, não pode ser uma ferramenta de um poder totalitarista para subjugação do livre-arbítrio, da curiosidade, do espírito crítico.

Quinta sessão do Clube de Leitura

Obra: Liberdade e informação de José Manuel Fernandes (2011); Fake news: não te deixes enganar de Simona Levi (2022); Porque está a falhar o liberalismo de Patrick J. Deneen (2019); Tecnologia versus humanidade de Gerd Leonhard (2017); Dez argumentos para apagar já as contas nas Redes Sociais de Jaron Lanier (2023);

Data: 23 de abril de 2023 (Sessão especial parte do programa da semana da leitura ESE-IPVC: “Livres para ler nos 50 anos do 25 de abril de 1974”);

Nº de participantes: 50 participantes;

Assuntos abordados durante a sessão: jornalismo e democracia, jornalismo independente como entidade indissolúvel da democracia; literacia mediática; notícias falsas, 50 anos do 25 de abril;

Descrição: esta sessão foi programada no âmbito da semana da leitura ESE-IPVC: “Livres para ler nos 50 anos do 25 de abril de 1974”. A sessão foi aberta, sem inscrição prévia, pelo que foi organizada numa secção mais ampla da biblioteca, para poder albergar lugares para mais estudantes. A temática da sessão teve o foco no jornalismo e na sua função dentro de um sistema político democrático, assim como a ameaça que as notícias falsas e a tecnologia podem supor aos estados democráticos. Dada a diversidade dos textos utilizados, o papel do moderador nesta sessão específica não foi o de guiar a discussão em torno de leituras previamente definidas, mas sim o de selecionar excertos que pudessem complementar a conversa que se desenvolvia de forma espontânea. Este formato permitiu uma maior liberdade de participação e facilitou a escolha de textos relevantes para os temas que surgiram ao longo do debate.

A sessão teve início com a leitura da introdução da obra “Liberdade e informação”, com o intuito de abordar o tema da imprensa livre nos sistemas políticos democráticos. O jornalismo foi discutido tanto como uma instituição fundamental para o exercício da cidadania livre, como uma possível ferramenta de manipulação ao serviço de poderes políticos ou financeiros. Outro excerto relevante foi o texto “Democracia mediática?”, no qual o autor explora conceitos fundamentais como liberdade de expressão, objetividade, “verdade jornalística” e a seleção de notícias com base no “interesse público”. Nesta fase do debate, os participantes concluíram unanimemente que a existência de uma imprensa livre, mesmo que imperfeita, é indicativa de um sistema político onde a repressão ideológica não impera e onde a liberdade de expressão é um direito fundamental. A criação de notícias através de inteligência artificial foi então abordada, e a moderadora optou por introduzir o texto “Convidamos a automatização a entrar” (página 97 da obra Tecnologia versus Humanidade, de Leonhard, G.). Este texto destaca como plataformas como “Google News” ou os “feeds” da Meta não são geridas por humanos, mas sim por algoritmos, que determinam as notícias consideradas relevantes para cada utilizador, criando “bolhas digitais”. Foi também assinalado que estas empresas não investem em capital humano, mas sim em engenheiros informáticos, com o intuito de expandir a manipulação que mantém os utilizadores ligados durante horas diariamente. De seguida, leu-se o texto: “Humanidade androide” retirado da obra “Porque está a falhar o liberalismo?” de Deneen, P.J. (2019), neste texto o autor cita a obra “Os superficiais”, de Carr, N. (2012), para descrever como a internet está a produzir alterações fisiológicas nos nossos cérebros, dada a plasticidade cerebral demonstrada em estudos científicos. Como indica Carr, “estamos a ficar com perdas significativas de linguagem, memória e concentração. […] A internet está a tonar-nos mais estúpidos”. A eleição desse excerto não foi causal, mas uma oportunidade para debater como internet afeta a forma como pensamos e agimos, funcionando como um agente de manipulação ao serviço de terceiros. A sessão prosseguiu com a leitura do texto “Sabias que uma informação falsa faz estragos no cérebro?” do Manual de Literacia Mediática de Levi, S. (2002). Este texto foi utilizado para ilustrar como o cérebro processa a informação e os princípios básicos dos desvios cognitivos.

A sessão foi encerrada com a leitura do texto: “Isto é bom para a humanidade? Um teste básico”, Leonhard. G (2017), que serviu de reflexão sobre os limites da tecnologia, como esta deve ser aplicada de forma respeitosa para os direitos e ética dos seres humanos, ou se apenas é feita para fomentar o consumo em detrimento da saúde mental. Os participantes compreenderam, imediatamente, que a tecnologia não deve ser um fim em si mesmo, mas uma ferramenta para o progresso humano, tal como tem sido ao longo da nossa história. Contudo, se uma ferramenta pode facilitar uma tarefa, um “smartphone” não é uma ferramenta inanimada, mas como diria Han, B.C. (2022) os “smartphones” são “não-coisas”: um objeto físico e digital, que demanda a nossa atenção através de notificações, que nos afasta da realidade física e nos atrai para o mundo digital com o objetivo de absorver a nossa atenção, e com ela os nossos dados comportamentais, considerados por inúmeros autores o “petróleo” da era do capitalista da vigilância.

Sexta sessão do Clube de Leitura

Obra: Reaccionário com dois cês de Ricardo Araújo Pereira;

Data: 29 de maio de 2024;

Nº de participantes: 3 estudantes, 2 mediadoras, um funcionário da ESE-IPVC e uma investigadora (Sessão coincidente com a organização do Dia da Criança, cuja data foi alterada uma semana antes do previsto);

Assuntos abordados durante a sessão: redes sociais; jornalismo;

Descrição: Esta sessão foi concebida para encerrar o clube de leitura com textos que abordassem a temática do clube, mas com um enfoque humorístico. Para isso, selecionamos a obra Reaccionário com dois cês de Ricardo Araújo Pereira. Esta foi uma sessão inusual, pelo limitado número de inscritos e pelas caraterísticas das alunas presentes, finalistas da Licenciatura de Artes Plásticas e Tecnologias Artísticas. O debate centrou-se no texto “Isto não é maneira de abominar jornalistas”, um ensaio satírico que retrata uma sociedade onde o jornalismo se banaliza através de conteúdos de baixa qualidade, aproximando-se cada vez mais das redes sociais. A expressão “adaptar-se ou morrer” surge como a nova filosofia do jornalismo, que abandona progressivamente os jornais impressos, com os recursos a serem redirecionados para a publicação de conteúdos nas edições online. No entanto, as redes sociais, longe de oferecerem informação de qualidade, impulsionam uma imitação que leva os meios de comunicação tradicionais a perder a sua função primordial: informar o público de forma independente e imparcial. Esta perda contrasta com o aumento de bots nas redes sociais, cuja função é disseminar desinformação, subvertendo o papel dos media na formação de uma opinião pública informada.

Análise e Discussão

Duas semanas após o encerramento do clube de leitura, foi distribuído um inquérito de satisfação à comunidade académica da ESE-IPVC, no âmbito do projeto “DDES”. Este inquérito visava avaliar a satisfação dos participantes em relação ao clube de leitura. Os resultados mostraram que 100% dos respondentes consideraram que a atividade correspondeu às suas expectativas; 60% indicou que a frequência das sessões foi adequada, enquanto 40% sugeriu que estas deveriam ocorrer com maior frequência. Além disso, 100% dos inquiridos manifestaram a vontade de que a atividade tivesse continuidade no próximo ano letivo.

Este resultado positivo confirma a pertinência da temática escolhida, da metodologia aplicada na implementação do clube e da frequência das sessões. Contudo, foram identificadas algumas dificuldades ao nível da comunicação, uma vez que nem todos os estudantes consultam as redes sociais ou o site da instituição. Para o próximo ano letivo, serão consideradas alternativas de comunicação, como a utilização da newsletter da ESE-IPVC, a afixação de cartazes nas instalações da instituição, e a divulgação da informação através de grupos de mensagens instantâneas das turmas, com o apoio dos respetivos representantes.

Por fim, torna-se essencial a verificação do calendário académico para assegurar a reserva de datas que não interfiram com outras atividades, bem como agilizar o processo de requisição/reserva das obras literárias trabalhadas, de modo a permitir que os alunos possam usufruir das obras. Será também incentivado o recurso ao serviço de empréstimo interbibliotecas, para garantir o acesso às obras por parte dos estudantes interessados.

Conclusão

Este artigo foi uma análise da relevância do clube de leitura “Distopia Tecnológica e Desinformação”, inserido no projeto “Desconexão Digital no Ensino Superior” (DDES) e do impacto que esta iniciativa teve na comunidade académica da ESE-IPVC. Ao longo das sessões, foi debatido o papel crescente das redes sociais e a manipulação exercida por grandes corporações tecnológicas, as quais recolhem e exploram dados pessoais para fins comerciais e políticos. A escolha desta temática revelou-se particularmente pertinente e urgente, face ao paradigma digital atual, no qual os estudantes são, frequentemente, expostos à desinformação e às consequências fisiológicas das plataformas digitais. O clube de leitura ofereceu, assim, um espaço com estrutura horizontal, seguro e aberto ao debate, para discutir a influência da tecnologia nas nossas vidas, e a crescente importância da literacia digital e mediática como ferramentas essenciais de resistência.

Os resultados confirmaram que o clube de leitura, além de proporcionar uma reflexão coletiva sobre os desafios da era digital, foi fundamental para promover o desenvolvimento do pensamento crítico. A leitura e a análise de obras distópicas, associadas a questões contemporâneas, ajudaram os participantes a compreender melhor as formas subtis de manipulação e vigilância a que estão sujeitos nas plataformas digitais. A literacia digital e mediática emergiu como um fator central no raciocínio dos estudantes, permitindo-lhes adotar uma postura mais consciente e crítica diante da informação e “feeds” que consomem diariamente.

Para o futuro, foi sugerida a ampliação do clube de leitura, com uma maior frequência de sessões, e a promoção do clube entre estudantes de diversas áreas de estudo. Poderá também ser vantajosa a introdução de novas metodologias, como debates interdisciplinares e convites a docentes e/ou especialistas na temática do livro (literatura, filosofia, sociologia, etc.).

A diversificação das estratégias de comunicação, dentro da instituição, será essencial para garantir uma maior visibilidade da atividade e, assim, alcançar um público ainda mais diversificado no próximo ano letivo. Dada a urgência das temáticas abordadas, será crucial continuar a fomentar a literacia digital e mediática como competências essenciais para enfrentar os desafios da era digital e da manipulação tecnológica.

Figura 1 e 2 – Autor dos cartazes do clube de leitura:
Hugo Maciel.
https://orcid.org/0000-0003-1938-115X.

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  • Pereira, R.A. (2017). Reaccionário com dois cês. Tinta-da-China.

References
1 Escola Superior de Educação – IPVC. cristinaiglesias@ese.ipvc.pt.
[1]Escola Superior de Educação – IPVC. cristinaiglesias@ese.ipvc.pt. Resumo: Neste artigo, pretende-se evidenciar a atividade implementada como “Clube de Leitura: Distopia tecnológica e desinformação", do projeto “Desconexão Digital no Ensino Superior”, dedicado a estudantes da Escola Superior de Educação do IPVC. Neste clube de leitura, trabalharam-se obras literárias de distopia tecnológica, através" data-link="https://sinergiased.org/vigilancia-dados-e-desinformacao-o-clube-de-leitura-como-exercicio-de-resistencia/">

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1 Escola Superior de Educação – IPVC. cristinaiglesias@ese.ipvc.pt.