Vanessa de Oliveira Andreotti 1 2

Resumo: Compreender os problemas globais, as interdependências entre norte-sul e as assimetrias e desigualdades sociais implica uma análise complexa da realidade do processo de globalização e dos contextos, ora ao nível local, ora ao nível global. A Educação para a Cidadania Global é uma resposta alternativa para pensar sobre estas questões, uma vez que procura a ação comprometida dos cidadãos no sentido da transformação social, tendo por base valores como a solidariedade, a justiça social e a equidade. Esta é uma abordagem inovadora que se designa como Educação para a Cidadania Global Critical. Ao contrário de uma diferente perspetiva que tem como propósito a capacitação dos indivíduos para a ação, usando estratégias de sensibilização para as questões globais e para a melhoria das condições de vida, no sentido de um mundo ideal, esta nova abordagem à Educação para a Cidadania Global procura capacitar os indivíduos para a reflexão crítica e para a responsabilização sobre as suas decisões e ações, para que o compromisso assumido seja informado, responsável e orientado para uma ação ética.

Palavras-chave: Educação para a Cidadania Global, crítica, globalização, interdependências.

Abstract: In order to understand global issues, the North/South interdependences and asymmetries, and social inequalities we need to analyze the complex globalization process and the different contexts at both local and global level. Global Citizenship Education represents an alternative way to think about these issues, as it aims to engage citizens in committed action based on solidarity, social justice and equity. This is an innovative approach called Critical Global Citizenship Education. It’s different from another perspective that enables people to take action by raising awareness for global issues and for the need to improve living conditions, in order to create an ideal world. This new approach to global citizenship education is aimed at empowering people to reflect critically and to take responsibility for their decisions and actions so that their commitment is more informed, responsible and oriented to ethical action.

Key words: Global Citizenship Education; Critical; Globalization; Interdependences. 

 

Introdução

No final da sessão de formação para ativistas ‘Make Poverty History’ (MPH), para inspirar um grupo de 30 jovens a escrever os seus planos de ação, o facilitador pediu-lhes que imaginassem o seguinte (reproduzido a partir das minhas notas):

“Imaginem um grande salão, cheio de gente com roupa formal. São todos celebridades. Vês também um tapete vermelho que leva a um palco do outro lado da sala. No palco está Nelson Mandela, a segurar um prémio. É o prémio de ativista do ano. Ele chama o teu nome. Caminhas pelo corredor e toda a gente olha para ti. O que estás a vestir? O que estás a sentir? Pensa em como chegaste até aqui: o número de pessoas que assinaram as tuas petições, a quantidade de faixas brancas nos braços dos teus amigos, o número de pessoas que levaste a Edimburgo. Apertas a mão de Mandela. Como é que isso te faz sentir? Ele dá-te o microfone. Toda a gente está em silêncio à espera que comeces o teu discurso. Eles respeitam-te. Sabem o que fizeste. Pensa na diferença que conseguiste com a tua campanha. Pensa em todas as pessoas que ajudaste em África…”

Ouvir isto enquanto alguém do Sul é perturbador, mas o mais preocupante foi constatar que, quando os jovens abriram os olhos e lhes perguntei se encontravam algo de errado neste exemplo, a esmagadora maioria dizer-me ‘não’. Confirmaram, assim, que a maior motivação para frequentarem um curso de formação de ativistas estava relacionada com a auto-melhoria, o desenvolvimento de capacidades de liderança ou simplesmente divertirem-se, com base, claro, na supremacia moral e vanguardista de se sentirem responsáveis por mudar ou salvar o mundo, fora da sua zona de conforto. Isto é o eco de uma das frases de um cartaz que a organização do curso promoveu: “Faz o que mais amas fazer, mas salva o mundo enquanto o fazes”.

Sentia-me desconfortável, em parte, porque o grupo parecia não ter consciência desse sentimento de paternalismo e de que os efeitos ‘daquilo que mais gostam de fazer’ podiam estar diretamente relacionados com a causa dos problemas que estavam a tentar enfrentar. Isto salienta uma questão central da Educação para a Cidadania Global: se e como lidar com as raízes económicas e culturais das desigualdades no poder e na distribuição da riqueza/trabalho num sistema global complexo e incerto.

Para compreender as questões globais é necessário analisar e desconstruir uma complexa teia de processos e contextos culturais locais/globais. O meu argumento é que, se não conseguirmos fazê-lo na Educação para a Cidadania Global, poderemos acabar por promover uma nova ‘missão de civilização’ como o slogan de uma geração que terá de assumir o ‘fardo’ de salvar/educar/civilizar o mundo. Esta geração, encorajada e motivada para ‘fazer a diferença’, vai projetar as suas crenças e mitos como universais e reproduzir relações de poder e violência, semelhantes às do colonialismo. Como podemos desenhar/pensar processos educativos que conduzam os jovens para longe desta tendência?

Este artigo, dividido em três partes, tem como objetivo introduzir o argumento para uma Educação para a Cidadania Global Critical. Na primeira parte, apresento a tese de Andrew Dobson referente aos fundamentos da cidadania global e a sua crítica às noções de ‘cidadania global’ e de ‘interdependência’. Na segunda parte, apresento a análise de Gayatri Spivak sobre alguns dos efeitos culturais do colonialismo nas relações Norte/Sul. Finalmente, na última parte, comparo e destaco as diferenças, de forma geral, das duas perspetivas – Soft e Critical – da Educação para a Cidadania Global, com base nas análises de Dobson e Spivak e exploro brevemente a noção de literacia crítica enquanto dimensão significativa da Educação para a Cidadania Global Critical. Argumento que, para os/as educadores/as, uma cuidada análise do seu contexto de trabalho é fundamental para tomarem decisões informadas quanto ao foco pelo qual optam, mas é imperativo conhecer os riscos e as implicações das opções existentes para fazermos escolhas pedagógicas responsáveis.

Humanidade comum ou justiça: A dimensão material da educação para a cidadania

Andrew Dobson é um autor político britânico e professor na Open University, especializado em políticas ambientais. O seu trabalho mais famoso chama-se Green Political Thought, no qual aborda os fundamentos para a cidadania global e as noções de ‘cidadania global’ e ‘interdependência’. O autor começa a sua análise com o que entende ser uma questão comum no contexto ‘Norte’:

“Como pode a pobreza severa de metade da humanidade persistir, apesar dos progressos económicos e tecnológicos e apesar das normas morais e valores esclarecidos da nossa civilização ocidental fortemente dominante?” (Pogge, 2002: 3 in Dobson, 2006: 170).

Dobson afirma que, para a grande maioria dos que trabalham no campo das ciências políticas, é precisamente na assunção de progresso e de valores/moralidade do Ocidente que reside o problema. O autor coloca outra questão: “Qual deve (então) ser a base da nossa preocupação com aqueles que não conhecemos e, provavelmente, nunca iremos conhecer?”. O autor propõe que a resposta seja enquadrada na obrigação política de fazer justiça e que a razão de ser dessa obrigação se baseie no reconhecimento da cumplicidade ou da ‘responsabilidade causal’ no dano causado transnacionalmente (Dobson, 2006).

Dobson argumenta que a globalização do comércio cria laços baseados numa “cadeia de causa-efeito que provoca obrigações imediatas da justiça, ao invés de criar simpatia, piedade ou beneficência” (p. 178). O autor baseia-se na imagem das pegadas ecológicas para demonstrar que este processo se desenrola como “uma rede de efeitos que estimula a reflexão sobre a natureza dos impactos que englobam” (p. 177). Dobson refere ainda as práticas injustas impostas pelo Norte como uma ordem institucional global que perpetua a pobreza e empobrece as pessoas (p. 177).

Dois dos argumentos centrais da campanha MPH apontam na mesma direção. Os apelos para uma maior justiça no comércio e para o alívio da dívida sugerem que o Norte é também, de certa forma, responsável pela pobreza criada noutros contextos. No entanto, o reconhecimento dessa cumplicidade não se traduziu nas estratégias da campanha. O uso de imagens, figuras e slogans enfatizou a necessidade de sermos caridosos, compassivos e localmente “ativos” (para mudar as instituições), com base numa obrigação moral para com uma humanidade comum, e não numa responsabilidade política pelas causas da pobreza.

Dobson defende que os atos alicerçados nesta base moral são facilmente desvirtuados e acabam por reproduzir relações de poder desiguais (e paternalistas) e aumentar a vulnerabilidade dos destinatários (Dobson, 2006). Para o autor, a justiça é uma melhor base para a reflexão, por ter uma dimensão política e promover relações mais justas e iguais. Faz ainda uma distinção entre ser humano e ser cidadão: ser humano levanta questões morais; ser cidadão levanta questões políticas (Dobson, 2005).

Ao contrário daquilo que foi sugerido na campanha ‘Make Poverty History’, Dobson enfatiza a responsabilidade individual, acima da institucional. Para realçar esta ideia, cita Pogge:

“Estamos familiarizados, através de apelos à caridade, com a afirmação de que está nas nossas mãos salvar a vida de muitos ou de que, se não fizermos nada, deixamos que essas pessoas morram. Estamos, no entanto, menos familiarizados com a afirmação aqui analisada de uma responsabilidade mais pesada: que a maioria de nós não somente deixa as pessoas morrer à fome, mas também contribui para que haja fome” (Pogge, 2002: 214 in Dobson, 2006: 182).

Dobson questiona também os conceitos de ‘cidadania global’, ‘interdependência’ e  ‘interconexão mundial’ que muitas vezes acompanham noções, não analisadas, de humanidade comum em Educação para a Cidadania Global. Afirma que estas noções não têm suficientemente em conta as relações de poder desiguais entre Norte e Sul, como Vandana Shiva defende:

“O ‘global’ no discurso dominante é o espaço político no qual um local particular e dominante procura o controlo global e se liberta de constrangimentos locais, nacionais e internacionais. O global não representa o interesse humano universal; representa um determinado interesse local limitado que foi globalizado através do seu âmbito de alcance. Os sete países mais poderosos, o G7, decretam quais os assuntos globais prioritários, mas os interesses que os orientam permanecem restritos, locais e limitados” (Shiva, 1998: 231 in Dobson, 2005: 261).

Shiva e Dobson consideram que só alguns países têm poderes de globalização – os outros são globalizados. Neste sentido, o Norte tem um alcance global e o Sul apenas existe localmente:

“A globalização é apresentada, nesta leitura, como um processo assimétrico, no qual não só os seus proveitos são divididos de forma desigual, como também a própria possibilidade de ‘ser global’ está desequilibrada” (Dobson, 2005: 262).

Ter a possibilidade de atravessar o local para o espaço global é o fator determinante para se ser ou não um cidadão global. Se não és ‘global’, “as paredes construídas pelos controlos de imigração, leis de residência e de ‘ruas limpas’ e ‘tolerância zero’ crescem mais alto” (Bauman, 1998: 2 in Dobson, 2005: 263) para tentar limitar a difusão de ideias, bens, informações e pessoas, a fim de proteger espaços locais específicos de uma ‘contaminação’ indesejada. Assim, no final teremos uma transfusão unilateral (na sua forma legal, pelo menos), em vez de uma difusão. Uma vez que a capacidade de atuar globalmente é limitada, Dobson conclui que aqueles que conseguem agir e agem globalmente estão, na verdade, a projetar o seu local (suposições e desejos) como sendo o global de todos (Dobson, 2005: 264). Tal é bem ilustrado num dos slogans de campanha de MPH: ‘ Make History’ (História de quem? Quem está a fazer esta história? Em nome de quem? Em benefício de quem?).

A análise de Dobson levanta algumas questões importantes para a Educação para a Cidadania Global: quem é este cidadão global? Qual deve ser a base deste projeto? De quem são os interesses representados aqui? Este projeto é elitista? Estaremos a capacitar o grupo dominante para permanecer no poder? Estaremos a fazer o suficiente para examinar as dimensões locais/globais das nossas suposições?

Contudo, a tese de Dobson também parece simplificar em demasia as relações Norte-Sul, porque apresenta o Sul apenas como um local de dominação ocidental forçada ou de resistência popular. Ao analisar os aspectos culturais da construção histórica desta relação, outros críticos apresentam um quadro mais complexo, tendo em conta a ‘cumplicidade’ do próprio Sul em manter o domínio do Norte.

 

Ignorância autorizada: A dimensão cultural

Uma análise cultural levanta questões complementares para a Educação para a Cidadania Global. A ênfase é dada às implicações da projeção dos valores e interesses do Ocidente/Norte como globais e universais, naturalizando o mito da supremacia ocidental sobre o resto do mundo. Gayatri Spivak, professor da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos da América, que teve um grande impacto no desenvolvimento teórico nas áreas dos estudos culturais, da teoria crítica e da análise do discurso colonial, chama a este processo “worlding of the West as world” (Spivak, 1990).

Spivak considera que esta naturalização acontece através da negação da história do imperialismo e do desequilíbrio de poder entre o ‘Primeiro’ e o ‘Terceiro’ Mundos no sistema capitalista global. O resultado dessa naturalização é um discurso de modernização, onde o colonialismo é ignorado ou é encarado como algo que já não é preocupante porque faz parte do passado, de maneira a que se pense que acabou e que não afeta – e não afetou – a construção da situação atual.

O resultado é uma ignorância autorizada (negação constitutiva) do papel do colonialismo para a criação da riqueza do que chamamos de ‘Primeiro Mundo’, assim como do papel da divisão internacional do trabalho e da exploração do ‘Terceiro Mundo’ para manutenção daquela riqueza. Dentro dessa lógica naturalizada, o ‘Terceiro Mundo’ surge no pós-Segunda Guerra Mundial “com os padrões de crescimento do ‘Primeiro Mundo’ enquanto guias e como objetivos a atingir”.(Kapoor, 2004: 669).

Esta ideologia produz, por um lado, o discurso do ‘desenvolvimento’ e, por outro, as políticas de ajustamento estrutural e de livre comércio que incitam os países do ‘Terceiro Mundo’ a comprar (cultural, ideológica, social e estruturalmente) do ‘Primeiro’ uma “versão independente do Ocidente”, ignorando tanto a sua cumplicidade como a produção do “projeto imperialista” (Spivak, 1988). Ainda neste âmbito, a pobreza é entendida como a falta de recursos, de serviços, de mercados e de educação (enquanto direito subjetivo de participar no mercado global) e não como a falta de controlo sobre a produção de recursos (Biccum, 2005: 1017) ou como um enfraquecimento imposto. Esta ignorância autorizada, que disfarça a universalização do mundo, responsabiliza os pobres pela pobreza e justifica o projeto de desenvolvimento do ‘Outro’ como uma “missão civilizadora”.

Para Spivak, a violência epistémica do colonialismo (na qual o colonialismo afeta a capacidade do colonizador de constatar a sua situação de efetiva exploração) pode, neste trabalho de ignorância autorizada, criar dois resultados complementares: o ‘Primeiro Mundo’ acredita na sua supremacia e o ‘Terceiro Mundo’ esquece a universalização e ‘quer’ ser civilizado ou acompanhar o desenvolvimento do Ocidente. Na mesma linha de pensamento de Said, Bhabha e Fanon, Spivak afirma que o poder colonial muda a perceção do subalterno de si mesmo e da sua realidade e legitima ainda a supremacia cultural (epistémica) do primeiro, ao permitir a violência de criar um outro que é ‘inferior’ e a naturalização destas construções.

Spivak explica também que, no ‘Primeiro Mundo’, isso reforça o eurocentrismo e o triunfalismo porque encoraja as pessoas a pensar que vivem no centro do mundo, que têm a responsabilidade de “ajudar o resto” e que “as pessoas de outras partes do mundo não são totalmente globais” (Spivak, 2003: 622).

Isto aparece ecoado nas políticas relacionadas com a ‘dimensão global’ em Inglaterra, que promovem a ideia de que as culturas diferentes apenas têm “tradições, crenças e valores”, enquanto o Ocidente tem um conhecimento (universal) (e ainda produz conhecimento sobre essas culturas). A ideia de uma ‘história comum’, que apenas reconhece a contribuição de outras culturas para a ciência e para a matemática, também reforça a perceção de que se projetam os valores, as crenças e as tradições do Ocidente como globais e universais, ao mesmo tempo que também se excluem os processos históricos que levaram a essa universalização.

Isto tem implicações importantes para a noção de ‘cidadania global’. No entanto, em termos de reprodução dessa ideologia, para Spivak, a cultura de uma classe é mais importante do que o posicionamento geográfico: a autora refere-se a uma elite profissional global (composta por pessoas provenientes tanto do ‘Primeiro como do Terceiro Mundos’), marcada pelo acesso à internet e por uma cultura de gerencialismo e de organizações não-governamentais internacionais envolvidas no desenvolvimento e nos direitos humanos. A mesma autora defende que esta elite global tem tendência a projetar e a reproduzir estes mitos etnocêntricos e desenvolvimentistas nos ‘subalternos’ do Terceiro Mundo que estão prontos a ajudar a ‘desenvolver’. Afirma ainda que, para mudar esta tendência, as intervenções educativas devem enfatizar o ‘desaprender’ e o ‘aprender a aprender de baixo’ (Spivak, 2004).

As análises de Dobson e Spivak não são exemplos únicos nas suas áreas. Vários académicos e ativistas têm questionado as ideologias por detrás do desenvolvimento e da Educação para a Cidadania Global nos últimos anos e têm sido desenvolvidas algumas iniciativas pedagógicas com base nestas análises. No entanto, em termos gerais, as articulações entre novas reflexões e novas práticas têm sido fracas.

 

Educação para a cidadania – Soft versus Critical – e a noção de literacia crítica

A partir da análise de Dobson e Spivak, é possível contrastar as perspetivas Soft e Critical em termos de pressupostos e implicações para a educação para a cidadania. A Tabela 1 ilustra esta comparação, em termos muito gerais, a fim de fomentar a discussão e reflexão.

 

 Tabela 1 – Educação para a Cidadania Global – Soft versus Critical

 

As noções de poder, de voz e de diferença são centrais para a Educação para a Cidadania Critical. Assim, para a criação de uma relação ética com os aprendentes (e com o Sul), o desenvolvimento da literacia crítica torna-se necessário. Defino a literacia crítica como um nível de leitura do que é escrito e do mundo que envolve o desenvolvimento do compromisso crítico e da reflexividade: a análise e a crítica das relações entre perspetivas, língua, poder, grupos sociais e práticas sociais por parte dos aprendentes. A análise crítica, neste contexto, não se refere à noção dominante de que algo é certo ou errado, tendencioso ou imparcial, verdadeiro ou falso. Mas sim a uma tentativa de compreender as origens de determinados pressupostos e implicações.

Neste sentido, a literacia crítica não pretende ‘revelar a verdade’ aos aprendentes, mas sim proporcionar uma oportunidade para que reflitam sobre o seu próprio contexto e sobre as suposições epistemológicas e ontológicas suas e dos outros: como é que acabámos por pensar/ser/sentir/agir de determinada forma e as implicações dos nossos sistemas de crenças em termos locais/globais face às relações de poder desiguais, relações sociais e distribuição de trabalho e recursos.

A literacia crítica baseia-se no pressuposto estratégico de que todo o conhecimento é parcial e incompleto se construído apenas dentro de determinado contexto, cultura e experiência. Portanto, falta-nos o conhecimento que é construído noutros contextos e culturas e a partir de diferentes experiências. Precisamos, assim, de nos comprometer com as nossas próprias perspetivas de aprendizagem e também com as dos outros, para que possamos transformar os nossos pontos de vista, identidades e relações – para pensarmos de forma diferente. A ação é sempre uma escolha do indivíduo após uma análise cuidadosa do contexto de intervenção, de diferentes pontos de vista, de relações de poder (especialmente a posição de quem está a intervir), das implicações dos objetivos e estratégias de curto e longo prazo (positivas e negativas).

Em oposição à perspetiva Soft da Educação para a Cidadania Global, esta abordagem procura promover a mudança sem dizer aos aprendentes o que eles devem pensar ou fazer, criando um espaço no qual se sintam seguros e confiantes para analisar e experimentar outras formas de ver/pensar e de ser/relacionar com o outro. O foco é colocado na produção histórica do conhecimento e do poder, com o objetivo de capacitar os aprendentes para a tomada de decisões mais informadas – contudo, a forma como escolhem agir ou dar significado (o que ‘nós’ somos ou ‘devemos ser’) nunca é imposta, uma vez que o direito de cada um dar os seus próprios significados é reconhecido e respeitado (como um comando ético para os relacionamentos).

No entanto, uma vez que não há uma receita universal ou uma abordagem que sirva todos os contextos, é importante reconhecer que a perspetiva Soft da Educação para a Cidadania Global é apropriada para determinados contextos – e pode representar já um grande passo. Contudo, não pode ficar por aí ou a situação ilustrada no início deste trabalho vai tornar-se norma. Se os/as educadores/as não estiverem sensibilizados para a importância da literacia crítica ao lidarem com as suas pressuposições e implicações/limitações das suas abordagens, correm o risco de (indiretamente e sem intenção) reproduzir os sistemas de crenças e de práticas que prejudicam aqueles que querem ajudar. A questão de saber até onde os/as educadores/as que trabalham a Educação para a Cidadania Global estão preparados para o fazer, no presente contexto, no Norte está aberta ao debate.

 

[1] Artigo original em inglês: “Andreotti, V. (2006). Soft vs. critical global citizenship education. Policy and Practice: A Development Education Review, 3, 40–51″. Poderá consultá-lo em: http://www.developmenteducationreview.com/issue3-focus4?page=show. Tradução de Tânia Neves e de Teresa Corte-Real, validada pela autora.

[2] Vanessa de Oliveira Andreotti é professora e investigadora na área da Educação para o Desenvolvimento na University of British Columbia, no Canadá.

Referências bibliográficas

  • Bauman, Z. (1998) Globalization: the Human Consequences, New York: Columbia University Press.
  • Bhabha, H. (1994) The Location of Culture, London: Routledge.
  • Biccum, A. (2005) ‘Development and the ‘new’ imperialism: a reinvention of colonial discourse in DFID promotional literature’, Third World Quarterly, Vol. 26, pp.1005-1020.
  • Dobson, A. (2005) ‘Globalisation, cosmopolitanism and the Environment’, International Relations, Vol.19, pp.259-273.
  • Dobson, A. (2006) ‘Thick Cosmopolitanism’, Political Studies, Vol.54, pp.165-184.
  • Kapoor, I. (2004) ‘Hyper-self-reflexive development? Spivak on representing the Third World “Other”’, Third World Quarterly, Vol.4, pp.627-647.
  • Pogge, T. (2002) World Poverty and Human Rights, Cambridge: Polity Press.
  • Shiva, V. (1998) ‘The Greening of Global Reach’ in G Thuatail, S Dalby & P Routledge (eds.) The Geopolitics Reader, Routledge, pp.230-143.
  • Spivak, G. (1988) ‘“Can the Subaltern Speak?”’, in C Nelson & L Grossberg (eds.) Marxism and the Interpretation of Culture, Chicago: University of Illinois Press, Chicago, pp. 271-313.
  • Spivak, G. (1990) The Post-colonial Critic: Interviews, Strategies, Dialogues, New York & London: Routledge.
  • Spivak, G. (2003) ‘A conversation with Gayatri Chakravorty Spivak: politics and the imagination’, interview by J Sharpe, Signs: Journal of Women in Culture and Society, Vol.28, pp.609-624.
  • Spivak, G. (2004) ‘Righting wrongs’, The South Atlantic Quarterly, Vol. 103, 523-581.

Download do artigo

Compartilhe nas suas redes