Maria Helena Salema 1

Introdução

No passado dia 26 de novembro de 2020, participei numa sessão virtual promovida pelo Fórum Internacional da Ação Católica 2 cujo tema era o Pacto Educativo Global (PEG), estando presentes 28 países provenientes de África, América, Ásia e Europa. Os oradores, responsáveis pela Ação Católica nos vários países, à luz do pensamento do Papa Francisco, apresentaram pilares conceptuais estruturantes do Pacto Educativo Global:

  • a centralidade da pessoa e da sua dignidade num processo educativo que visa a maturidade não somente cognitiva mas também espiritual;
  • a escuta das vozes dos jovens e a sua plena participação na ação educativa;
  • o trabalho educativo sinérgico contra a pobreza e as desigualdades, centrado no exercício de uma cidadania ativa e dinâmica, a partir das bases (bottom up);
  • a compreensão da economia, da política e do desenvolvimento, à luz da perspectiva da ecologia integral, no sentido da promoção da pessoa humana, da família e da humanidade. O ser humano é o autor, o centro e o objetivo da dimensão socioeconómica.

Percebi que esta iniciativa do Papa, expressa ao longo do seu pontificado, nos discursos e documentos apostólicos e já desenvolvida em muitas escolas, se concretizava, em 2020, na assinatura do Pacto Educativo Global.

Simultaneamente, tive e tenho a perceção de que textos como as encíclicas Laudato Si (2015), Fratelli Tutti (2020) e, mais recentemente, a Assinatura do Pacto Educativo Global (2021), são muito faladas e noticiadas mas os seus textos, na íntegra, são pouco conhecidos.

Fiz, então, uma pesquisa dos documentos publicados na internet: notícias, discursos e documentos oficiais do Vaticano.

Na organização da informação recolhida, optei primeiramente por apresentar textos que descrevessem o contexto do Pacto Educativo Global e posteriormente o documento oficial do Vaticano Instrumentum Laboris 3. É um instrumento chave para a compreensão do pensamento do Papa Francisco e, simultaneamente, desafiante tanto para uma pesquisa teórica sobre conceitos fundantes de uma educação humana integral, como para uma pesquisa prática de metodologias de ensino e aprendizagem. Optei, pois, por uma apresentação do texto original com pequenas alterações.

Pacto Educativo Global – um apelo urgente, em tempo de pandemia

A 15 de outubro de 2020, na abertura de um evento online, promovido e organizado pela Congregação para a Educação Católica, intitulado “Pacto Educativo Global. Juntos para olhar além”, realizado na Aula Magna da Pontifícia Universidade Lateranense em Roma, o Papa Francisco enviou uma mensagem-vídeo 4, salientando a importância deste encontro universitário e alertou para uma “catástrofe educativa” mundial, afetando 10 milhões de crianças e de adolescentes obrigados a abandonar a escola e deixados para trás no processo natural de desenvolvimento educacional devido à crise económica gerada pelo coronavírus.

Utilizando a expressão “catástrofe educativa”, à qual algumas organizações internacionais já se referiram, o líder dos católicos afirmou depois que “cerca de 10 milhões de crianças poderiam ser forçadas a abandonar a escola, aumentando um já alarmante fosso educativo, com mais de 250 milhões de crianças em idade escolar excluídas de qualquer atividade educativa” 5.

Pacto Educativo Global – um caminho

O delineamento do pensamento expresso no Pacto Educativo Global está identificado nas várias intervenções, discursos do Papa Francisco e no documento Instrumentum Laboris. Em 12 de setembro de 2019, o Papa convocou representantes mundiais para assinarem um compromisso comum, com o objetivo de construir o pacto educativo global. Esta iniciativa não é uma ideia nova e repentina, mas a concretização de uma visão e de um pensamento que o Papa manifestou várias vezes em discursos desde o início do seu magistério em 2013. Vem no seguimento da exortação apostólica Evangelii Gaudium (2013) (EG) e da Carta Encíclica Laudato Si: sobre o cuidado da casa comum (2015).

No primeiro documento (EG), o Papa convidou a Igreja inteira a colocar-se “em saída” missionária, uma atitude a ser adotada em qualquer atividade que se realizar. O convite é dirigido a todo o povo de Deus, para realizar um anúncio aberto “a todos, em todos os lugares, em todas as ocasiões, sem demora, sem repugnâncias e sem medo”: um anúncio que “não pode excluir ninguém” (EG § 23). A Igreja em saída é uma comunidade que se envolve, capaz de intervir em todos os processos da vida pessoal e social. E, nessa perspetiva, escreve o Papa, depois de ter analisado os problemas do mundo e da cultura atual, “sentimos o desafio de descobrir e transmitir a mística de viver juntos, misturar-nos, encontrar-nos, dar o braço, apoiar-nos, participar nesta maré, um pouco caótica, que pode transformar-se numa verdadeira experiência de fraternidade, numa caravana solidária…” (EG § 87).

Nesse convite, a cuidar das fragilidades do povo e do mundo em que vivemos – convite que não é dirigido apenas aos cristãos, mas a todos os homens e mulheres da terra –, a educação e a formação tornam-se prioritárias, pois ajudam a que sejam protagonistas diretos e construtores do bem comum e da paz.

Na Carta Encíclica Laudato Si (2015), o Papa faz um diagnóstico do planeta: dilacerado por contrastes sociais, consequência de um modelo de desenvolvimento egocêntrico, sem uma visão comum, e apela a uma mudança global através de uma conversão ecológica integral, capaz de uma escuta paciente e de um diálogo construtivo, que permita às gerações futuras a construção de um futuro de esperança e de paz.

Em 2020, o Papa convoca um evento global presencial para 14 de maio, sobre o tema “Reinventar o Pacto Educativo Global: juntos para olhar além”. Este evento, adiado devido à pandemia, teve lugar numa sessão virtual em 15 de outubro de 2020, na da Pontifícia Universidade Lateranense em Roma.

O caminho estava lançado. Muitas escolas e universidades, católicas ou não, estão já aprofundar a dimensão antropológica, comunicativa, cultural, económica, geracional, inter-religiosa, pedagógica e social deste Pacto Educativo Global.

De facto, o Papa instruiu a Congregação para a Educação Católica a apelar àqueles que se preocupam com a educação das novas gerações, com o intuito de os envolver no Pacto Educativo Global.

Esta Congregação é o Ministério da Santa Sé, que reúne 216 mil escolas católicas, frequentadas por mais de 60 milhões de alunos, e 1750 universidades católicas, com mais de 11 milhões de estudantes.

No sábado, 12 de dezembro 2020, no Dia de Nossa Senhora de Guadalupe, a Conferência dos Provinciais Jesuítas da América Latina e do Caribe (CPAL) assinou o Pacto Educativo Global 6, convocado pelo Papa Francisco no dia 15 de outubro de 2020. Em apelo semelhante ao expresso há seis anos, na Encíclica Laudato Si, Francisco realça a sua contínua preocupação com o futuro do planeta.

Ao aderirem ao Pacto, as comunidades, obras e presenças apostólicas da CPAL comprometem-se a colaborar, com os seus talentos e energias, na construção e promoção de um novo modelo cultural e de desenvolvimento.

A cerimónia contou com a participação de todos os membros da Equipe Executiva e Ampliada da CPAL, bem como dos provinciais jesuítas das 12 províncias que compõem a Conferência. De diferentes partes da América do Sul, mas todos unidos num mesmo compromisso: o Direito Universal a uma Educação de Qualidade para Todos.

Atenta a este convite, a Rede Jesuíta de Educação realizou um ato simbólico de compromisso com o Pacto Educativo Global. No dia 10 de dezembro de 2020, os membros das equipes diretivas das Unidades reuniram-se virtualmente para, em nome de suas comunidades educativas, assinarem o termo de compromisso de adesão à campanha promovida pela CPAL.

A Companhia de Jesus, por meio da Conferência dos Provinciais Jesuítas da América Latina e do Caribe (CPAL), juntamente com as comunidades, obras e presenças apostólicas na região, atenderam ao apelo do Papa Francisco e uniram-se pelo Pacto Educativo Global.

A informação sobre as linhas mestras do Pacto Educativo Global está disponível no seu portal oficial 7. Pode ainda consultar-se o documento de trabalho Instrumentum Laboris, com quatro capítulos: introdução ao pacto enquanto projeto, o contexto, a visão, a missão e, por fim, uma listagem de núcleos temáticos geradores para reflexões adicionais.

Apresenta-se, em seguida, o texto do Instrumentum Laboris, com pequenas alterações assinaladas.

O Pacto Educativo Global: a abertura ao outro como fundamento

O Santo Padre não propõe uma ação educativa, nem tão pouco convida a elaborar um programa, mas apela a uma aliança educativa. A escolha das palavras revela muito do estilo com que o Papa convida a executar esta tarefa: para que possa haver um pacto, de facto, deve haver duas ou mais pessoas diferentes que se comprometam por uma causa comum. Há um pacto quando, mantendo as recíprocas diferenças, se opta por colocar as próprias forças ao serviço do mesmo projeto. Há um pacto quando somos capazes de reconhecer no outro, diferente de nós, não uma ameaça à nossa identidade, mas um companheiro de viagem, para que “se descubra nele o esplendor da imagem de Deus” (Exortação apostólica pós-sinodal Christus vivit, §165).

O termo aliança, segundo a tradição hebraico-cristã, evoca o vínculo de amor estabelecido entre Deus e o seu povo. Amor que em Jesus derrubou o muro entre os povos, restabelecendo a paz (cf. Ef. 2, 14-15). A partir dessa base, o Papa convida a estreitar entre todos uma aliança que valorize a unicidade de cada um, graças a um compromisso contínuo na educação e na formação. Respeitar a diversidade, poderíamos dizer, é o primeiro pressuposto do pacto educativo (…).

A fraternidade original

A fraternidade é a categoria cultural que funda e guia paradigmaticamente o pontificado de Francisco. Inseri-la nos processos educativos, significa reconhecê-la como dado antropológico fundamental, a partir do qual se enxertam todas as principais e positivas gramáticas da relação: o encontro, a solidariedade, a misericórdia, a generosidade, mas também o diálogo, o confronto e, de modo mais geral, as variadas formas da reciprocidade.

Originariamente, a vida humana é um facto recebido que não tem as suas origens em nós mesmos. Pelo contrário, a vida transcende cada homem e cada mulher e, portanto, não é algo autoproduzido, mas algo dado por outro. Para os crentes, como destacou a recente declaração conjunta – Sobre a Fraternidade Humana – de Abu Dhabi, trata-se de nos reconhecermos como filhos de um único Pai e, portanto, irmãos chamados à recíproca benevolência e à recíproca custódia (cf. Gn. 4, 9). Contudo, como o Papa Francisco quis destacar desde o início do seu magistério, a vocação à custódia fraterna “não diz respeito apenas a nós cristãos, tem uma dimensão que antecede e que é simplesmente humana, diz respeito a todos”. A humanidade inteira, ao receber a vida, descobre-se unida no vínculo da fraternidade, que então se manifesta como o princípio que expressa a realidade estrutural do ser humano (cf.  Laudato Si §220). Se podemos escolher os nossos amigos ou alguns dos nossos companheiros, certamente não podemos escolher os nossos irmãos ou as nossas irmãs, enquanto não somos nós os autores da sua existência. Quanto mais for exercida, portanto, a fraternidade não expressa – em primeiro lugar – um dever moral, mas a identidade objetiva do género humano e de toda a criação.

A atual cultura do descartável, em profundidade, nasce precisamente da reiteração da rejeição da fraternidade como elemento constitutivo da humanidade: “muitas coisas devem reorientar a própria rota, mas antes de tudo é a humanidade que precisa de mudança. Falta a consciência duma origem comum, duma recíproca pertença e dum futuro partilhado por todos” (Laudato Si §202). (…) Hoje, na perspetiva da construção de uma vila global da educação, esse princípio recebe um impulso renovado, tornando-se, de certa forma, o verdadeiro ponto de chegada de cada processo educativo realizado. É precisamente a disponibilidade de se colocar a serviço da fraternidade a sancionar a plena realização da humanidade que é comum a todos. De facto, fomos criados não apenas para viver “com os outros”, mas também para viver “no serviço aos outros”, numa reciprocidade salvífica e enriquecedora.

O contexto atual: rutura da solidariedade inter-geracional

O Papa Francisco indica a ferida mais grave que o atual contexto sociocultural provoca no compromisso educativo: “Educar exige entrar num diálogo leal com os jovens. São eles os primeiros a chamar-nos à urgência daquela solidariedade inter-geracional que, infelizmente, tem faltado nos últimos anos. De facto, em muitas partes do mundo, os jovens têm uma tendência a fecharem-se em si mesmo, a proteger os direitos e os privilégios adquiridos, a conceber o mundo dentro dum horizonte limitado que trata com indiferença os idosos e sobretudo não oferece mais espaço à vida nascente. O envelhecimento geral de parte da população mundial, especialmente no Ocidente, é sua triste e emblemática representação” (Discurso aos Membros do Corpo diplomático acreditado junto da Santa Sé para as felicitações de Ano Novo, 9 de janeiro de 2020).

As raízes últimas desta tendência ao isolamento e ao fechamento em relação ao outro encontram-se, sempre, segundo o Papa Francisco, numa profunda transformação antropológica. “A criatura humana parece que hoje se encontra numa particular passagem da sua história […] A caraterística emblemática desta passagem pode ser reconhecida, resumidamente, no rápido difundir de uma cultura obsessivamente centrada na soberania do homem – quer como espécie, quer como indivíduo – em relação à realidade. Há quem fale de egolatria ou seja, de um verdadeiro e próprio culto do eu, sobre cujo altar se sacrifica cada coisa, inclusive os afetos mais queridos. Esta perspetiva não é inócua: plasma um sujeito que se vê continuamente no espelho, a ponto de se tornar incapaz de dirigir o olhar para os outros e para o mundo” (Assembleia geral dos membros da Pontifícia Academia para Vida, outubro de 2017).

Uma tal egolatria gera fraturas que tornam pesadas a ação educativa desenvolvida em todos os níveis: a fratura entre as gerações, a fratura entre povos e culturas diferentes, a fratura entre partes da população ricas e partes da população pobres, as primeiras sempre mais ricas e as segundas sempre mais pobres, a fratura entre masculino e feminino, a fratura entre economia e ética, a fratura entre humanidade e o planeta terra. A educação que precisamos hoje, portanto, deve ser capaz de confrontar esta nova idolatria do eu e encontrar as palavras certas para devolver a todos a originalidade e beleza da vocação humana nos confrontos do outro e do seu destino. Juntos é a palavra que tudo salva e tudo realiza.

Tempos educativos e tempos tecnológicos

(…) Hoje, a globalização trouxe aos jovens uma utilização permanente das novas tecnologias. Há, assim, um desfasamento entre a velocidade de acesso à informação digital e a lentidão natural da evolução biológica (Laudato Si §18).

As novas gerações, de uma forma até hoje desconhecida, são forçadas a conviver com tal contradição, pois o tempo do que se aprende e o tempo de amadurecimento, estão muito distantes dos tempos da internet. Não é raro, por conseguinte, que isso implique um forte sentimento de frustração e pobreza de auto-estima e consciência de si. Se posso conseguir o que eu quero com um clique, porque não consigo – com a mesma rapidez – tornar-me uma pessoa adulta, capaz de escolhas importantes e de responsabilidade?

Deste modo, estão-se a alterar, de maneira radical, tanto as relações entre os seres humanos, como a própria formação da identidade dos indivíduos, prejudicando o desenvolvimento de diversas competências como a introspeção.

Diante das grandes potencialidades e dos grandes riscos que a internet hoje representa, não é suficiente uma atitude de constante denúncia, nem de total absolvição. É preciso discernimento. E ainda mais, são necessárias pessoas capazes de transferir esta atitude para as novas gerações. A educação hoje necessária é uma educação que não apenas não teme a complexidade do real, mas que se esforça de habilitar todos aqueles aos quais se dirige, a habitar esta complexidade e a humanizá-la, conscientes de que qualquer instrumento depende sempre da intencionalidade de quem o utiliza.

Educar as procuras

A desintegração psicológica, devido à falta de discernimento no uso das novas tecnologias, é indicada como um dos problemas educativos mais urgentes. A atenção, em particular de crianças e jovens, é hoje constantemente atraída por estímulos rápidos e múltiplos, que tornam difícil aprender a habitar o silêncio. O tempo e o espaço necessários para que o jovem possa familiarizar-se com os próprios desejos e medos, são cada vez mais preenchidos por interações contínuas e atraentes, que seduzem e tendem a preencher cada momento do dia (…). Na grande riqueza de estímulos, experimenta-se então, por assim dizer, uma profunda pobreza de interioridade (…). É preciso ainda concentrar-se hoje sobre educar as procuras dos jovens, prioritárias em relação ao fornecer respostas: trata-se de dedicar tempo e espaço ao desenvolvimento das grandes questões e dos grandes desejos que habitam no coração das novas gerações, que de uma serena relação consigo mesmas, possam levar à busca do transcendente.  (…) Para o crente, trata-se de despertar nos jovens, nos tempos certos, o desejo de entrar na própria interioridade para conhecer e amar Deus, para o não crente de animar uma inquietude estimulante sobre o sentido das coisas e da própria existência.

Reconstruir a identidade

A questão da fragmentação da identidade, ou da dificuldade de construir uma visão unitária de si, é destacada com força por psicólogos e educadores, que identificam, em particular nas novas gerações, uma presença crescente de sofrimento ligado precisamente a esse problema. As indicações dadas pelo Papa Francisco na Laudato Si dizem respeito à cultura do descartável e oferecem uma reflexão útil para abordar a questão mais profundamente; de facto, lê-se que “a cultura do descartável, atinge tanto os seres humanos excluídos como as coisas” (§22). Entre as pessoas mais atingidas pela cultura do descartável lembramos os idosos e as crianças. Na lógica do consumo, os primeiros são descartados porque já não são mais produtivos; os segundos porque ainda não são produtivos. Todavia, uma sociedade que coloca os idosos de lado, é uma sociedade que recusa confrontar-se com o próprio passado, com a própria memória e com as próprias raízes. (…) Por outro lado, no descartável da infância mostra-se uma pobreza de esperança, de visão e de futuro, já que as crianças “dão o seu modo de ver a realidade, com um olhar confiante e puro” (Audiência Geral, 18 de março de 2015).

Assim como um presente é pobre, sem passado e sem futuro, assim também uma identidade pessoal, sem os outros, é vazia, porque é sem memória e sem perspetiva. Eis, então, porque empobrecido de alma e privado de esperança, o homem contemporâneo enfrenta insegurança e instabilidade. É preciso, portanto, formar pessoas capazes de reconstruir os laços quebrados com a memória e com a esperança no futuro; jovens que, conhecendo próprias raízes e estando abertos ao novo que está por vir, saibam reconstruir uma identidade presente mais serena.

Crise ambiental como crise relacional

A busca de uma renovação do compromisso educativo da interioridade e da identidade (..) questiona que não se rompa o vínculo com o horizonte social, cultural e ambiental mais amplo no qual se está inserido. O ser humano e a natureza devem ser pensados na sua interdependência, porque “o ambiente humano e o ambiente natural degradam-se juntos, e não podemos enfrentar adequadamente a degradação ambiental, se não prestamos atenção às causas que têm a ver com a degradação humana e social” (Laudato Si § 48). A falta de cuidado da interioridade reflete-se numa falta de cuidado da exterioridade, e vice-versa: “o descuido no compromisso de cultivar e manter um correto relacionamento com o próximo, relativamente a quem sou devedor da minha solicitude e custódia, destrói o relacionamento interior comigo mesmo, com os outros, com Deus e com a terra” (Laudato Si §70). (…) Daqui, nasce naturalmente a necessidade de uma educação ecológica integral. O desafio ambiental leva, essencialmente, a um desafio relacional mais radical, no qual está em jogo o futuro das gerações e do próprio planeta.

Considerar a questão ambiental como intrinsecamente relacional “impede-nos – afirma a Laudato Si – de considerar a natureza como algo separado de nós ou como uma mera moldura da nossa vida. Estamos incluídos nela, somos parte dela e compenetramo-nos” (§139). Aqui também, mais que moral, a questão é ontológica e antropológica: “não haverá uma nova relação com a natureza, sem um ser humano novo, não há ecologia sem uma adequada antropologia” (Laudato Si § 118). A ecologia integral invocada pelo Papa não deve ser considerada individualista, como uma espécie de ecologia romântica e moral da beleza desencantada da natureza, mas nasce da plena consciência de que “tudo está interligado”, “tudo está relacionado”, como é lembrado várias vezes Laudato Si (cf. § 70, 92, 117, 120, 138, 142).

É somente no horizonte desta reciprocidade entre interioridade e exterioridade, identidade e alteridade, em si e o outro, que é possível redescobrir – como afirma o Papa Francisco – “um mistério ao contemplar uma folha, uma vereda, o orvalho, o rosto do pobre. O ideal não é só passar da exterioridade à interioridade, para descobrir a ação de Deus na alma, mas também chegar a encontrá-Lo em todas as coisas” (Laudato Si §233) e, assim, guardá-las num estilo de vida renovado e consciente.

A VISÃO

Unidade na diferença: um novo pensar

(…) Perante o medo da diversidade, é necessário reconstruir os tecidos da unidade e do encontro, portanto, exige que o pensamento mude radicalmente a sua lógica habitual. (…) O primeiro princípio indispensável para a construção de um novo humanismo é, portanto, o da educação para um novo pensamento, capaz de unir diversidade e unidade, igualdade e liberdade, identidade e alteridade. (…) Por outras palavras, trata-se de entender que as diversidades não são um obstáculo à unidade, nem a desestabilizam, mas – pelo contrário – são indispensáveis a um horizonte de possibilidades: unidade e diferença não se excluem, estão entrelaçadas. Caso contrário, estaríamos diante de uma unidade sufocante, que mata a alteridade, tornando o outro impossível, mas também a si mesmo; ou então experimentaríamos uma desordem caótica, na qual identidades individuais são mutuamente indiferentes entre si, impossibilitando qualquer tipo de encontro.

É necessário, portanto, exercitar o pensamento que articula a unidade na diversidade e que considera a diferença como uma bênção para a própria identidade e não como um forte impedimento à auto-realização. O trabalho educacional deve intervir, acima de tudo, nesse nível (…) Na prática educacional, o novo pensamento inaugura, consequentemente, um exercício de diálogo amplo, que envolve livremente quem quer que queira trabalhar para uma autêntica cultura do encontro, do enriquecimento recíproco e da escuta fraterna: “Mesmo nas disputas, que constituem um aspeto inevitável da vida, é preciso recordar sempre de que somos irmãos; por isso, é necessário educar e educar-se para não considerar o próximo como um inimigo nem um adversário a eliminar” (Mensagem para o Dia Mundial da Paz, 1 de janeiro de 2014).

(…) Nesse sentido, o papel do diálogo entre as religiões é de importância crucial, pois “é uma condição necessária para a paz no mundo e, por conseguinte, é um dever para os cristãos e também para outras comunidades religiosas” (Evangelii Gaudium, §250). É justamente na prática dialógica, de facto, que “aprendemos a aceitar os outros, na sua maneira diferente de ser, de pensar e de se exprimir. Com este método, poderemos assumir juntos o dever de servir a justiça e a paz, que deverá tornar-se um critério básico de todo o intercâmbio. Um diálogo, no qual se procurem a paz e a justiça social, é em si mesmo, para além do aspeto meramente pragmático, um compromisso ético que cria novas condições sociais” (ibid.).

À luz dessas considerações, não podemos deixar de destacar que esse pensamento de diálogo e paz deve iluminar e orientar cada vez mais aqueles que os cidadãos elegeram para a administração político-económica da sociedade civil. A ação política autêntica nunca é dada distante de um pensamento e prática de diálogo e paz.

A relação educacional no centro

(…) “Se, por um lado, não devemos esquecer que os jovens esperam a palavra e o exemplo dos adultos, por outro lado, é preciso ter em mente que aqueles têm muito para oferecer com o seu entusiasmo, o seu empenhamento e a sede de verdade, pela qual nos recordam constantemente o facto de que a esperança não é uma utopia e a paz é um bem sempre possível. Vimo-lo no modo como muitos jovens se estão a empenhar na sensibilização dos líderes políticos para a questão das alterações climáticas. O cuidado da nossa casa comum deve ser uma preocupação de todos e não objeto de contraposição ideológica entre diferentes visões da realidade e, menos ainda, entre as gerações” (Discurso aos membros do Corpo diplomático acreditado junto da Santa Sé para as felicitações de Ano Novo, 9 de janeiro de 2020).

Uma educação frutífera não depende primariamente da preparação do professor nem das habilidades dos alunos, mas da qualidade do relacionamento que é estabelecido entre eles.

Muitos estudiosos da educação enfatizaram que não é o professor a educar o aluno numa transmissão unidirecional, nem é o aluno a construir o seu próprio conhecimento, mas é o relacionamento deles que os educa mutuamente num intercâmbio dialógico que os pressupõe e, ao mesmo tempo, os supera. Este é, propriamente, o sentido de colocar no centro a pessoa que é relação. Isto também implica assumir o controle concreto das situações iniciais em que se encontram hoje muitas crianças do mundo inteiro. De facto, não podemos esconder que o discurso sobre a centralidade da pessoa em qualquer processo educacional corre o risco de se tornar muito abstrato se não estiver disposto a abrir os olhos para a situação real da pobreza, do sofrimento, da exploração, da negação de possibilidades, em que se encontra boa parte da infância mundial. E sobretudo, se não se é disponível a fazer alguma coisa. Como o Papa Francisco gosta de referir, é preciso agir sempre ligando a cabeça, o coração e justamente as mãos.

O mundo pode mudar

Outro princípio fundamental para recolocar no centro do planeamento educacional é aquele que afirma que o mundo pode mudar. Sem tal princípio, o desejo humano, especialmente o dos mais jovens, é privado da esperança e da energia necessárias para se transcender e se deslocar rumo ao outro. A questão foi bem identificada na Caritas in Veritate § 42 de Bento XVI. De facto, “notam-se às vezes atitudes fatalistas a respeito da globalização, como se as dinâmicas em ato fossem produzidas por forças impessoais anónimas e por estruturas independentes da vontade humana”. Na realidade, as coisas não são assim. Os eventos culturais, históricos e económicos que acontecem à nossa volta, por maiores que sejam, não devem ser interpretados como factos incontestáveis, determinados por leis absolutas.

Esta é a mensagem que o Papa Francisco desejou restituir aos próprios jovens quando, em 13 de janeiro de 2017, por ocasião da publicação do Documento Preparatório do Sínodo sobre os Jovens, lhes enviou uma carta. Uma das passagens mais emocionantes desse documento é a seguinte: “Na inauguração da última Jornada Mundial da Juventude, em Cracóvia, perguntei-vos várias vezes: ‘As coisas podem mudar?’. E juntos, vós gritastes um SIM retumbante. Aquele brado nasceu do vosso jovem coração, que não suporta a injustiça e não pode submeter-se à cultura do descartável, nem ceder à globalização da indiferença. Escutai aquele clamor que provém do vosso íntimo!”.

(…) E é justamente na força desse clamor dos jovens – que encontra cada vez mais espaço nas inúmeras manifestações criadas por eles – que todos, especialmente aqueles que estão envolvidos no setor da educação, devem encontrar a força necessária para alimentar essa revolução da ternura que salvará o nosso mundo que está muito ferido.

Surge a necessidade de estimular, com toda força, o fascínio por um risco saudável e de despertar a inquietação pela realidade.

Ousar tal inquietação é arriscar a saída de si que implica – se como lê na Evangelii Gaudium (2013) – “correr o risco do encontro com o rosto do outro, com a sua presença física que interpela, com os seus sofrimentos e suas reivindicações, com a sua alegria contagiosa permanecendo lado a lado” (§88). Somente assim o desejo recupera o impulso e se torna o protagonista de sua existência, educando-se em estilos de vida conscientes e responsáveis. “É justamente usando bem o espaço de liberdade que se contribui para o crescimento pessoal e comunitário: e não se pense que estes esforços são incapazes de mudar o mundo. Estas ações espalham, na sociedade, um bem que frutifica sempre para além do que é possível constatar; provocam, no seio desta terra, um bem que sempre tende a difundir-se, por vezes invisivelmente” (Laudato Si §212).

A MISSÃO

Na sua Mensagem para o Lançamento do Pacto Educativo, como já mencionado no início, o Papa Francisco enfatiza fortemente a urgência de estabelecer uma “vila da educação”, na qual são feitos esforços para criar uma rede de relações humanas e abertas. Acrescentou também que tal tarefa não será possível sem a ativação, por parte de todos, de uma tríplice coragem: em primeiro lugar a coragem de colocar a pessoa no centro, em segundo lugar, a coragem de investir as melhores energias com criatividade e responsabilidade, em terceiro e último lugar, a coragem de formar as pessoas disponíveis para o serviço da comunidade.

Especificando o primeiro ponto, o da coragem de colocar a pessoa no centro, o Papa Francisco exprime-se assim: “Por isso, é preciso assinar um pacto para dar uma alma aos processos educativos formais e informais, que não podem ignorar o facto de que tudo, no mundo, está intimamente conexo e é necessário encontrar – segundo uma sã antropologia – outros modos de compreender a economia, a política, o crescimento e o progresso. Num percurso de ecologia integral, coloca-se no centro o valor próprio de cada criatura, em relação com as pessoas e com a realidade que a rodeia, e propõe-se um estilo de vida que rejeite a cultura do descartável” (Mensagem para o Lançamento do Pacto Educativo).

Entende-se bem neste ponto o profundo vínculo entre a encíclica Laudato Si e a iniciativa do Pacto Educativo Global. Trata-se, portanto, de corajosamente tomar consciência de que a crise ambiental e relacional que estamos a enfrentar pode ser tratada com atenção dedicada à educação daqueles que serão chamados para proteger a casa comum no futuro.

A educação “chamada a criar uma ‘cidadania ecológica’” (Laudato Si §211), pode tornar-se uma ferramenta eficaz para construir a longo prazo uma sociedade mais acolhedora e atenta ao cuidado do outro e da criação. Por outras palavras, o compromisso educacional não é voltado apenas para beneficiários diretos, crianças e jovens, mas é um serviço prestado à sociedade como um todo, que na educação se renova.

Além disso, a atenção educacional pode representar um importante ponto de encontro para reconstruir uma trama de relações entre diferentes instituições e realidades sociais: para educar um jovem, é necessário que a família, a escola, as religiões, associações e sociedade civil em geral dialoguem por um objetivo comum. Partindo da necessidade urgente de formação, é possível contrastar a “silenciosa rutura dos vínculos de integração e comunhão social” (Laudato Si §46). Poderíamos afirmar que a educação pode ser re-interpretada como um caminho de formação das gerações mais jovens e, ao mesmo tempo, como a possibilidade de revisão e renovação de uma sociedade inteira que, num esforço de transmitir o melhor de si aos mais jovens, discerne os seus comportamentos e, eventualmente, os melhora.

O amanhã exige o melhor do hoje

Antecipado pelo Papa Francisco, a segunda passagem corajosa rumo a um novo pacto formativo consiste em ter força, enquanto comunidade (eclesial, social, associativa, política), para oferecer à educação as melhores energias que se têm à disposição. Trata-se, como é evidente, de uma escolha corajosa, porque cada escolha comporta também favorecer um aspeto para colocar um outro em segundo plano. Quantas realidades, hoje, colocam ao serviço dos jovens o melhor que têm?

Se se pensa na maioria das sociedades de hoje, nota-se claramente como as forças mais criativas e propositivas são colocadas a serviço da produção e do mercado. Os melhores jovens graduados e as mentes mais brilhantes costumam ser empregados em grandes empresas com fins lucrativos, mais do que na busca do bem comum. Ao mesmo tempo, o consumismo predominante requer a ausência, ou apenas a fraca presença, de pessoas formadas, capazes de espírito crítico e ímpeto relacional. A ideologia consumista, de facto, alimenta-se do individualismo e da incompetência na gestão de si, porque é fora da comunidade que somos mais frágeis e é na incapacidade da sobriedade que respondemos docilmente aos estímulos da propaganda.

É necessária, portanto, a coragem de fazer uma verdadeira e radical inversão de rota: o investimento, considerando a situação apresentada, requer a máxima urgência, porque é somente mediante a educação que se pode, realisticamente, esperar uma mudança positiva sobre um projeto de longa duração. O que será no futuro deve ter o melhor do que existe. Quem será amanhã tem direito ao melhor de quem é hoje.

Educar para servir, educar é servir

O terceiro ato de coragem indicado pelo Papa Francisco é o de formar pessoas disponíveis para se colocarem ao serviço da comunidade. Uma tal indicação lança a luz certa sobre um aspeto verdadeiramente decisivo de todo ato educativo: nenhum educador alcança plenamente uma finalidade educativa se não se comprometer a formar e a plasmar, naqueles que lhe são confiados aos seus cuidados, uma plena e real disponibilidade ao serviço dos outros, de toda a comunidade humana, e daqueles que mais apresentam uma situação de fadiga e de desafio.

A pesquisa educacional reconhece claramente a dimensão central do serviço ao próximo e à comunidade como instrumento e finalidade da própria educação. Pensamos, por exemplo, no desenvolvimento da Pedagogia do “Service-Learning”. Esta pesquisa mostra como o serviço pode não ser apenas uma atividade de formação entre outras (a importância do voluntariado na formação dos jovens é bem reconhecida), mas como este se pode tornar no método fundamental mediante o qual todos os conhecimentos e competências podem ser desenvolvidos e adquiridos. Poderíamos indicar esse processo como o desenvolvimento de uma educação ao serviço, versus uma educação como serviço, segundo a qual o próximo é tanto o caminho quanto a meta do caminho da educação.

Por fim, deixamos uma palavra final de reflexão de Hannah Arendt que soube indicar de maneira eficaz e sintética o que realmente está em jogo em cada gesto educacional: “A educação é o momento que decide se nós amamos suficientemente o mundo para assumir a responsabilidade e assim salvá-lo da ruína, que é inevitável sem a renovação, sem a chegada de novos seres, de jovens. Na educação decide-se também se nós amamos tanto os nossos filhos a ponto de não os desalojar do nosso mundo, deixando-os à mercê de si mesmos, a ponto de não arrebatar de suas mãos a possibilidade de realizar algo novo, algo de imprevisível para nós, e prepará-los, em vez disso, para a tarefa de renovar um mundo que será comum a todos” (Entre o Passado e o Futuro, Garzanti, Turin 1999 [original. 1961], p. 255).

O documento Instrumentum Laboris indica, no final, os seguintes Núcleos Temáticos Geradores de Reflexões Adicionais:  Mística de viver juntos; Vila da educação; Fraternidade e paz; Egocentrismo; Recursos positivos da Internet; Educação para o silêncio; Cultura do descartável; Pensamento da unidade; Inquietação da busca; Revolução da ternura; Cidadania ecológica.

Considerações finais

A leitura desta seleção de textos, organizados por forma aos leitores e formadores poderem ter um panorama do Pacto Educativo Global, poderá permitir aos educadores e formadores, crentes e não crentes, fundamentos educacionais geradores de uma mudança radical no pensamento educacional na Educação para o Cidadania Global e permitir, com criatividade, desenvolvimentos e praticas curriculares formais ou não formais inovadoras.


[1] Doutorada em Educação (1996) pela Faculdade de Ciências (Departamento de Educação) da Universidade de Lisboa (UL), Mestre em Educação (1986), Licenciada em Filologia Germânica pela Universidade de Lisboa (UL). É Professora e investigadora no Instituto de Educação da UL, tem inúmeras publicações nacionais e internacionais nas temáticas de ED/ECG. Coordenou projectos nacionais e internacionais do Conselho da Europa e da Comissão Europeia também na área da ED/ECG. Atualmente está aposentada.

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