Taísa Oliveira 1, 3, Teresa Alves Martins 2, 3, Joana Santos 3, Pedro Daniel Ferreira 3, 4

Resumo: Ocupar o espaço público transgredindo narrativas dominantes: é essa a proposta da Mostra Internacional de Cinema Anti-Racista (MICAR) promovida pelo núcleo do Porto do Movimento SOS Racismo desde 2014. Neste texto pretende-se expor como, por meio da MICAR, enquanto Movimento SOS Racismo e em diálogo com outros sujeitos sociais e políticos, procuramos mobilizar a arte cinematográfica para promover uma reflexão crítica das temáticas caras à nossa luta. Durante os dias da mostra procura-se que o Teatro Rivoli do Porto, onde ela tem lugar, não seja apenas habitado pelas elites da cidade e que veja os seus públicos diversificados. Na MICAR, além de se exibirem filmes, curtas e documentários que trazem à tona, entre outras, as problemáticas do racismo, discriminação e xenofobia, possibilita-se que se tragam à tela produções de realizadores/as à margem do sistema de produção convencional e outras formas de se fazer cinema que geralmente ficam de fora das escolhas artísticas de outros festivais. Através do seu repertório, conjugando diversificação de filmes, debates e públicos, procura-se possibilitar a criação de fissuras nas narrativas sociais dominantes, permitindo um diálogo com a sociedade civil, alertando as pessoas para a necessidade de se envolverem no debate de assuntos que lhes dizem respeito ou de se posicionarem e mobilizarem como aliadas ou parceiras na luta anti-racista. Por fim, através da MICAR pretende-se ampliar o debate do racismo para além dos circuitos ativistas e académicos, ocupando também o campo cultural.

Palavras-Chave: Anti-racismo; Cultura; Cinema; Transformação Social.

Pode a arte mudar a sociedade?

A resposta a essa pergunta para os/as ativistas do Movimento SOS Racismo é: sim! Movidos/as por essa vontade, desde 2014 que no núcleo do Porto do Movimento SOS Racismo dinamizamos a Mostra Internacional de Cinema Anti-racista (MICAR), na cidade do Porto. A MICAR, sob o ponto de vista do ativismo anti-racista que visa a transformação social, utiliza a linguagem do cinema e da atividade cultural para desconstruir mitos e narrativas que contribuem para a persistência dos problemas crónicos do racismo, discriminação e tantos outros nas sociedades contemporâneas, ao mesmo tempo que procura exibir filmes de qualidade que normalmente estão afastados dos circuitos comerciais.

Explorando a arte que, como relembrou Raposo (2015), pela sua própria natureza estética e simbólica é capaz de sensibilizar, refletir e interrogar as situações num dado contexto histórico e social, no Movimento SOS Racismo, através da MICAR, optamos por mobilizar o cinema como um instrumento para dialogar com a sociedade civil, convidando-a a posicionar-se e/ou refletir sobre questões relacionadas com o racismo, a xenofobia e demais formas de opressão.

Ao criar um contexto problematizador, ao trazer textos e debates que permitem leituras e releituras dos filmes da mostra, pretende-se através da MICAR contrariar a ideia de uma democratização cultural, como discute Teixeira Lopes (2009), que tem subjacente fenómenos da massificação da cultura e que através da produção em série potencia não só o entretenimento, mas também a alienação dos indivíduos. Mais ainda, a MICAR afigura-se como um ponto de resistência à apropriação de inúmeros instrumentos culturais e artísticos pelo sistema de valores da classe dominante, detentora de um conjunto de capitais (simbólico, cultural, social e sobretudo económico) que muitas vezes se socorre da arte para ter as suas ideologias e preceitos fundacionais continuamente validados e naturalizados (Amorim, 2017).

Para além disso, como referiu Amorim (2017) há a compreensão da cultura como um sistema que reflete um campo de disputas ideológicas, produto de uma série de arranjos históricos, derivados sobretudo de uma relação de poder de um grupo social sobre outro. Portanto, um dos objetivos centrais da MICAR é desnaturalizar e criar fissuras nas narrativas cinematográficas e artísticas que retratam essas relações de poder desigual de forma acrítica. Essa desnaturalização ocorre, sobretudo, através da inclusão de filmes que, por um lado retratam os problemas das populações marginalizadas e discriminadas (i.e., populações racializadas negras ou de etnia cigana, imigrantes, pessoas refugiadas etc.) e por outro, permitem trazer outras cinematografias, valorizando-as e dando-as a conhecer (para citar apenas alguns dos que foram passando em diversas edições temos, por exemplo, Nôs Terra (2011) de Anna Tica, Blackout (2016) da Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas, Água Prateada (2014) de Wiam Bedirxan e Ossama Mohammed e Broken Silence (2013) de Orhan Galjus e Bob Entrop).

As disputas ideológicas que ocorrem no campo cultural que referimos acima, também vão ao encontro das críticas sinalizadas por alguns autores da condição pós-colonial das sociedades modernas. Grosfoguel(2016) afirma ser um dos maiores mitos contemporâneos aquele que advoga que após o fim formal da posse de colónias por partes dos impérios europeus passámos todos, automática e instantaneamente, a viver em sociedades pós-coloniais. Contudo, essa condição pós-colonial falha em quase todos os aspetos referentes ao desmantelamento das estruturas e das relações de poder que foram sendo desenvolvidas e perpetuadas pelo sistema colonial. Não é de espantar que no campo da cultura as representações simbólicas desse sistema sejam continuamente reproduzidas. Basta refletirmos sobre quem são normalmente os/as protagonistas dos filmes mais populares, de como são muitas vezes feitas as escolhas dos atores e atrizes. Provavelmente, esses/as protagonistas retratam indivíduos que pertencem às categorias que os sistemas coloniais e escravocratas produziram como dominantes e privilegiadas. Por isso, é importante referir o potencial que identificamos num evento como a MICAR, que através do seu formato e conteúdo busca desobedecer a essa lógica da tradição eurocêntrica, patriarcal, branqueada e colonial do cinema que prevalece nos circuitos comerciais, posicionando-se como um evento aliado aos processos de descolonização dos instrumentos culturais.

Mais ainda, salientamos, a MICAR permite ocupar o teatro municipal, mostrar que um local público, um espaço cultural central para a vida da cidade, pode e deve ocupar a sua agenda também com estas questões, ser lugar para corpos, visões e debates que trazem para o palco o racismo estrutural contra as populações negras, a discriminação de imigrantes, as injustiças e desigualdades vividas pelas comunidades ciganas, os genocídios provocados pelo colonialismo, entre outras questões tantas vezes deixadas nas margens das agendas públicas. A escolha do teatro municipal prendeu-se também com a sua centralidade e acessibilidade. Para que os filmes se tornem ainda mais acessíveis a todos/as os/as que queiram assistir, a entrada para todas as sessões é totalmente gratuita. A MICAR não tem fins lucrativos, assenta principalmente no trabalho voluntário de ativistas do Movimento SOS Racismo e em algumas contribuições públicas e privadas que cobrem os custos com as licenças dos filmes, os materiais de divulgação e outros custos de produção.

Neste texto pretendemos apresentar alguns dados sobre a MICAR, sublinhando o seu potencial como uma prática transformadora para a construção de uma cultura anti-racista ancorada em práticas culturais e que tem como fim último a contribuição para a constituição de uma sociedade mais justa e igualitária.

O Movimento SOS Racismo

O Movimento SOS Racismo é a associação anti-racista mais antiga de Portugal. Fundado no início dos anos 1990, é composto por ativistas voluntários/as que se organizam e pensam as suas estratégias de luta movidos/as pela vontade de acabar com todas as formas de opressão em Portugal, com foco na luta pelos Direitos Humanos e na eliminação da discriminação por razão da cor da pele, etnia e nacionalidade. Desde a sua fundação, o modo de atuação e de luta do Movimento SOS Racismo relaciona-se de forma quase orgânica com o modo como a sociedade portuguesa e o Estado têm reagido às reivindicações em matéria de racismo e xenofobia e à relação da sociedade nacional com o Outro. Ao longo dos seus 30 anos de existência, o Movimento SOS Racismo cimentou um posicionamento de ativismo, sobretudo, no campo político e institucional.

A intervenção política do Movimento SOS Racismo tem-se evidenciado na pressão por mudanças no quadro legislativo, por dar visibilidade às incongruências legislativas e sociais, na denúncia de situações injustas e ilegais e, especialmente, em manter o tema da sua luta na agenda política nacional. Além disso, o Movimento SOS Racismo materializa a sua atuação através da apresentação de queixas e denúncias e da emissão de pareceres e comunicados de imprensa. Outras estratégias são os eventos políticos e culturais que organiza. Além da MICAR, são também promovidos eventos como a Festa da Diversidade em junho em pleno verão lisboeta, ou a Escola Anual de Formação no inverno na Figueira da Foz. O Movimento SOS Racismo tem vindo também a desenvolver diversas ações no campo educativo, seja por via do desenvolvimento de projetos (de que são exemplo projetos desenvolvidos no âmbito do Programa Escolhas, promovidos pelo Alto Comissariado para as Migrações), ou pela dinamização de ações mais pontuais de formação e/ ou sensibilização em escolas e outros contextos educativos.

A missão e os valores do Movimento SOS Racismo consistem na incessante busca por uma sociedade mais justa, igualitária e intercultural, onde todos e todas, nacionais e estrangeiros/as, com qualquer tom de pele, possam usufruir dos mesmos direitos de cidadania.

O que é a MICAR?

A MICAR surge como a extensão de uma prática que se realizava na extinta sede do Porto, que funcionava como uma espécie de “ciclo de cinema” em que eram exibidos filmes de ficção e documentários apenas para os/as membros do Movimento SOS Racismo. Percebemos o potencial desta prática para trazer a discussão política para o espaço público através do cinema. Felizmente, em 2014 surgiu uma linha de financiamento da Fare Network, uma entidade da União das Associações Europeias de Futebol (UEFA), que trazia a possibilidade de financiamento para promover atividades relacionadas com o combate ao racismo, dando algum foco específico à discriminação racial relacionada com o futebol.

Figura 1 – Público na 1.ª edição da MICAR – 2014 – destaque para o catálogo MICAR.

 

Na esteira desses acontecimentos é realizada a primeira edição da MICAR:

“Acho que a Micar é das coisas mais importantes que nós fazemos. Porque, primeiro, o objetivo da MICAR é trazer filmes de qualidade, mas que têm dificuldade de passar no circuito comercial. E segundo, porque nos permite ter filmes que trabalham essa temática e que nós podemos utilizar para envolver a comunidade. Ou seja, raramente são ativistas do SOS que estão no debate ou escrevem os textos. O propósito da MICAR é envolver toda a gente, e por isso, nós todos os anos convidamos pessoas que não são militantes do SOS, estão próximas, já foram [militantes], mas tentamos que sejam pessoas que nas suas áreas de intervenção venham falar sobre discriminação. Tentamos trazer para aquele espaço, pessoas que estão afastadas dele e por isso temos projetos com escolas públicas e programação para crianças” (N., ativista do Movimento SOS Racismo desde 2006, entrevista concedida em outubro de 2019 5).

Como referido, nesta mostra são exibidas obras cinematográficas relevantes com o intuito de sensibilizar, educar e alertar para os problemas relacionados com a discriminação racial e xenofobia. Para além disso, na MICAR há uma preocupação em incluir convidados/as, sejam ativistas, académicos/as ou qualquer outra pessoa que tenha potencial para contribuir e discutir os temas abordados nos filmes. Os debates são fundamentais para maximizar a reflexão dos/as espectadores/as da MICAR, pois têm sempre a oportunidade de ouvir e participar ativamente num debate fluído e tecnicamente sustentado pelas intervenções dos e das convidadas.

Figura 2 – Debate com Luís Filipe Guerra (Observatório dos Direitos Humanos) e Manuel Loff, historiador,
moderado por Sara Neves, ativista do SOS RACISMO, na 2.ª edição da MICAR em 2015.

 

Havendo nesta mostra a preocupação em trazer filmes que permitam ou aprofundem reflexões sobre as temáticas a que se dedica, algumas das obras que são apresentadas na MICAR permitem ainda dar a conhecer à sociedade maioritária outras formas de se produzir conteúdo artístico cinematográfico. Por exemplo, através da exibição de filmes produzidos e dirigidos por pessoas do Sul Global, por comunidades discriminadas, subvertendo em algum nível os processos eurocêntricos que circulam pelo campo cultural em Portugal.

Quanto ao processo de escolha dos filmes incluídos em cada edição da MICAR, passa por encontrar os que refletem os acontecimentos do presente e que representam as temáticas que nesse ano mais importa trazer a debate. Para além disso, na mostra procura-se um equilíbrio entre filmes que são clássicos e outros mais recentes, ficção e documentário, trazer alguns filmes mais conhecidos, mas também mostrar filmes que não tinham nunca passado em sala em Portugal ou no Porto. Essa forma de produzir a mostra permite que a cada edição a MICAR possa incluir temáticas diferentes, mas sempre atenta ao facto de estarem em harmonia com o propósito central do evento, isto é, a desconstrução das narrativas sociais que toleram a persistência do racismo e das demais formas de opressão nas sociedades contemporâneas.

Desde a primeira edição da MICAR que têm sido também realizadas sessões dedicadas a crianças e jovens, do 1.º ciclo ao ensino secundário. A MICARzinha, que é direcionada para crianças e jovens em idade escolar, é normalmente estruturada em duas sessões, sendo uma mais dirigida para crianças do 1.º e 2.º ciclos e outra para jovens do 3.º ciclo e ensino secundário, nas quais são apresentados filmes sobre as temáticas em discussão na MICAR de cada ano. Estas sessões têm ocorrido em dias úteis e em articulação com escolas da cidade, que convidamos para participar com os e as suas estudantes, professores/as e educadores/as. Importa referir que a colaboração com as escolas não se fica pela participação das turmas nas sessões.

A MICARzinha tem contemplados três momentos distintos: são realizadas sessões prévias à MICARzinha nas próprias escolas, para explicar às crianças e jovens o que é a MICAR, porque se realiza e porque são convidadas/os a participar. Na própria sessão da MICARzinha é sempre feito um momento de abertura e explicação do filme que se vai ver e no final da sessão é desenvolvida uma discussão com os/as presentes, sobre os filmes ou curtas-metragens visualizados procurando-se identificar os temas subjacentes com as crianças e jovens.

Na semana seguinte à MICAR têm sido realizadas, sempre que possível, sessões pós-MICAR nas escolas, com as turmas que foram ver os filmes. O objetivo destas sessões pós-MICAR é aprofundar e problematizar, a partir dos filmes vistos, os assuntos que lhes estão subjacentes. Para além disto, em alguns anos foram também produzidos materiais pedagógicos para apoio posterior às professoras e professores para dar continuidade ao trabalho destas temáticas em contexto de sala de aula de forma autónoma.

Figura 3 – Perspetiva sobre uma das sessões dinamizadas no âmbito da MICARzinha na 3ª edição da MICAR em 2016.

As temáticas discutidas na MICAR são apresentadas ao público também através da produção e venda dos catálogos de cada edição. Nestes catálogos é apresentada uma sinopse dos filmes exibidos na edição da MICAR em causa e é feita uma compilação de textos de diversos/as convidados/as (que podem ou não participar nessa edição como dinamizadores/as ou participantes em debates) para refletir a propósito de cada filme e/ou dos temas que estes convocam. O catálogo tem vindo a ser perspetivado como uma forma de perpetuar a MICAR e os debates que se procuram suscitar num recurso material que as pessoas podem adquirir e levar consigo. Nesse sentido, para a escrita dos textos deste catálogo, procura-se desafiar pessoas que possam ajudar a essa reflexão e problematização, que tem como ponto de partida um determinado filme mas pode seguir pelo caminho reflexivo que o/a autor/a do texto entender como mais interessante. O catálogo é sempre editado e trabalhado graficamente em coerência com a linha gráfica de cada edição da MICAR, cujo conceito e problematização é sempre feito com os/as designers envolvidos/as neste trabalho, de modo a irem também ao encontro do tema de cada uma das edições. Por isso, o catálogo é também um recurso educativo que resulta da MICAR e que pode ser utilizado como apoio para outras reflexões, também noutros contextos.

Figura 4 – Conjunto das seis edições do catálogo da MICAR.

 

Em todas as edições da MICAR têm sido também organizadas exposições que ficam em exibição no Foyer que antecede o Pequeno Auditório do Teatro Municipal do Porto – Rivoli, onde decorrem as sessões da MICAR. Estas exposições têm sido uma mais-valia na medida em que contribuem para potenciar reflexões e/ou breves discussões nos períodos de tempo que antecedem as sessões e no seu final. Procura-se que as exposições se relacionem com a temática de cada edição, mas o fator preponderante para que aconteçam tem sido a oportunidade da sua realização, que resulta da disponibilidade de pessoas, instituições ou outros parceiros que têm colaborado nesta organização.

A título de exemplo, pode destacar-se a exposição de obras de arte com o tema “No Man is an Island”, da artista plástica Manuela São Simão, que se realizou em 2015; a exposição de desenhos de crianças refugiadas, denominada por “Colours of a Journey”, proposta pela Transform Europe, que decorreu em 2018 ou a exposição “Caminhos do colonialismo português”, realizada em 2019 pelos investigadores Hugo Silveira Pereira e Bruno J. Navarro, do CIUHCT – Centro Interuniversitário de História das Ciências e da Tecnologia, da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa. Sempre que possível, as exposições foram apresentadas na abertura da MICAR pelas pessoas ou representantes das organizações que as promoveram.

Entre 2014 e 2019 foram já realizadas seis edições da MICAR, sempre no quarto trimestre do ano civil, tendo cada uma das edições um tema distinto. As temáticas centrais de cada uma das edições, respetivas exposições (ver Quadro 2) e o número de filmes, participantes, textos escritos para o catálogo e a percentagem de ocupação da sala são apresentados de seguida (ver Quadro 1).

 

n.º dias

n.º sessões

n.º filmes

n.º participantes

% ocupação total (lotação da sala: 158 lugares)

n.º crianças na MICARzinha

n.º de textos originais para o catálogo MICAR

1.ª edição 2014

3

10

11

mais de 800

50,60%

10

2.ª edição 2015

3

10

15

1150

72,80%

85

8

3.ª edição 2016

3

11

12

1436

90,90%

11

4.ª edição 2017

3

12

14

1190

75,35%

180

8

5.ª edição 2018

4

11

16

1104

69,90%

267

8

6.ª edição 2019

4

10

18

903

57,10%

208

10

 Quadro 1 – Síntese das várias edições da MICAR.

Temática

Exposição

1.ª edição 2014

Futebol e o racismo: discriminação racial no futebol e seu potencial como instrumento de inclusão social Fotografias do torneio de futebol anti-racista organizado pelo Projeto Catapulta E5G dinamizado pelo Movimento SOS RACISMO na freguesia da Sé

2.ª edição 2015

Para que não vença a indiferença” com foco nas pessoas refugiadas da Síria e na travessia do Mediterrâneo Exposição do trabalho da artista plástica Manuela São Simão “No man is an Island”

3.ª edição 2016

Limites e fronteiras: quem está dentro e quem está fora Exibição de vídeos no âmbito da campanha #DIREITOASEROQUEQUISEREM dinamizada pela EAPN Portugal relativa às crianças de etnia cigana

4.ª edição 2017

Ascensão dos totalitarismos Fotografias da iniciativa “Não engolimos Sapos” promovida pelo Movimento SOS RACISMO

5.ª edição 2018

Lugar de fala – Voz das minorias – isolamento e segregação Exposição de desenhos realizados por crianças refugiadas “Colours of a Journey”, proposta pela Transform Europe

6.ª edição 2019

Memória – Colonialismo, Pós e Neocolonialismos Exposição de fotografias de arquivo “Caminhos do colonialismo português”

Quadro 2 – Temáticas das edições da MICAR e das exposições realizadas durante a mostra em cada um dos anos.

 

Através da produção da MICAR realça-se no Movimento SOS Racismo o objetivo de fazer chegar à luta anti-racista todos os espaços, incluindo o campo da cultura. Mais ainda, reforça-se o entendimento de que o cinema é uma forma de comunicação e expressão capaz de criar espaços de reflexão e educação, mas sobretudo capaz de tornar mais fácil o caminho para se chegar aos/às outros/as. É essa compreensão que a MICAR transporta – de que a cultura é um elemento que remove barreiras, promove a diversidade, constrói pontes e se apresenta nas múltiplas visões de mundo possíveis, em oposição frontal a uma visão única e hegemónica que impera na sociedade atual e que exclui muitos cidadãos e cidadãs da participação social e da experiência em plenitude da sua cidadania.

 

De que forma a MICAR poderá contribuir para a transformação social?

Por tudo o que já se descreveu sobre a MICAR, acreditamos que esta Mostra Internacional de Cinema Anti-Racista possa dar um contributo para a mudança, ou para a transformação social, se assim lhe quisermos chamar. Efetivamente, entendemos que através da MICAR estamos a trabalhar em prol da “construção cooperativa de uma ética e de práticas políticas, económicas, sociais, culturais que tornem possível a vida em sociedades interculturais sendo fonte de inclusão e coesão” (Barahona, Gratacós & Quintana, 2012, p. 12), sendo por isso um contributo para uma efetiva Educação para a Cidadania Global.

Através da realização desta Mostra, no Movimento SOS Racismo, juntamente com todas as pessoas que trabalham para que se torne uma realidade, pretendemos contribuir para a manutenção na cidade e nos seus espaços públicos, de espaços-tempos que permitam a problematização da ideologia dominante. Através da MICAR facilita-se uma “mudança de percepção, que se dá na problematização de uma realidade conflitiva” (Freire, 2015, p.60) e que “implica um novo enfrentamento dos indivíduos com sua realidade” (idem). Consideramos que a diversidade de perspetivas que é trazida para o espaço público através da MICAR tem contribuído para este confronto com outras vivências, com outras histórias que são também realidade e que ajudam, a quem as vê e as debate, a sair da perspetiva etnocêntrica dominante e a desafiar as narrativas e histórias únicas que reforçam exclusões e desigualdades, como tão bem nos diz a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie. 6

Figura 5 – Participação de Cristina Roldão, CIES-IUL e ESE-IPS com apresentação de Mamadou Ba,
ativista do Movimento SOS RACISMO, no comentário ao filme 13th na 4.ª edição da MICAR, 2017.

 

Por tudo isto, assumimos a não neutralidade da MICAR, que não tem como propósito entreter “os indivíduos, os grupos e as comunidades com formas de ação puramente anestésicas” (Freire, 2015, p. 60), sendo clara e assumida a nossa intenção de contribuir para “desvelar a realidade” (idem). Com a MICAR pretende-se problematizar e discutir a sociedade atual, o sistema capitalista, racista, sexista e discriminatório em que vivemos. Materializamos nesta mostra a esperança de que a arte que trazemos, o cinema, possa ajudar a desnaturalizar o mundo e a tornar possíveis perspetivas alternativas, tornar visíveis desigualdades e injustiças que as visões hegemónicas ocultam (Mouffe, 2007) e assim desafiar todos/as para a construção de uma visão de mundo diferente, a partir de um espaço cultural da cidade que deve ser de todos e de todas, e aberto a todas as discussões e debates que se apresentam como urgentes.  Entendemos, por isto, que uma iniciativa como a MICAR se aproximará da conceção de  “democracia cultural”, proposta de Teixeira Lopes (2009), proporcionando espaços-tempos para a “dignificação social, política e ontológica de todas as linguagens e formas de expressão cultural e na abertura de repertórios e de campos de possíveis” (p.9), envolvendo muitas e muitos em questionamentos que abrem portas à aprendizagem e transformação permanente, quer através da sua ação ativista e militante, quer pela presença disponível para ver e rever ativamente os filmes e o mundo.

Por fim, salientamos que através da MICAR pretendemos “criar socialmente as condições para a emergência das questões” (Lopes, 2015, p. 11) que desordenem o estado atual das coisas, que façam todos/as pensar que elas poderiam ser diferentes e que as condições diversas, concretas, estruturais e constitutivas que caracterizam o racismo têm de ser confrontadas nas mais diversas esferas das nossas vidas.

O que queremos para o futuro da MICAR?

Ao longo dos anos temos refletido sobre vias potenciais para um maior impacto desta iniciativa. Partilhamos aqui algumas dessas reflexões na expectativa de que estas se venham a concretizar em edições futuras.

A grande maioria destas propostas vai ao encontro da necessidade de alargar o número de pessoas que acedem aos conteúdos da MICAR e poderá passar pela sua descentralização, através de parcerias com escolas de Cinema e Cineclubes regionais. Desta forma poder-se-á chegar a públicos fora das grandes cidades e alargar o debate a populações que devem ter também espaços para debater o racismo e a xenofobia, também refletir sobre as suas formas nas suas comunidades e ser envolvidas na construção de uma sociedade intercultural.

Pensamos, ainda, poder conferir maior autonomização da MICARzinha com a possibilidade de se disponibilizarem filmes para serem exibidos em sala de aula e de se criarem materiais didáticos para professoras/es e educadoras/es, permitindo que estas/es explorem as temáticas da MICAR no contexto da escola, sem depender da disponibilidade de ativistas do Movimento SOS Racismo. Assim seria possível chegar a um maior número de professoras/es e alunos/as.

Pensado ainda em parcerias alargadas com a Educação, ponderamos incluir uma secção aberta à participação de filmes, submetidos a partir de uma call, que poderia, justamente, envolver parcerias ou trabalho conjunto com estudantes ou escolas de cinema e que incluam as temáticas tratadas pela MICAR.

Explorando o potencial da distribuição digital, reflexão reforçada pelas tantas formas de consumo da cultura que emergiram durante o período pandémico que (ainda) atravessamos, pensamos a possibilidade de live stream dos debates e apresentações de filmes. Estes conteúdos poderão ainda constar como gravações para disponibilização posterior no site, prolongando no tempo o impacto destas reflexões. Usando as plataformas de distribuição digital, consideramos a possibilidade de aumento do número de sessões da MICAR através de plataformas de streaming de filmes (ex., FILMIN), o que possibilitaria que no período da mostra mais pessoas, noutras geografias, pudessem aceder aos filmes selecionados.

Finalmente, há dois elementos da MICAR que consideramos poderem ser melhorados elevando a sua qualidade e impacto. Primeiro, quanto ao catálogo da MICAR, consideramos a possibilidade de abandonar esta denominação que limita, no nosso entender, a perceção que as pessoas fazem do seu conteúdo. Tendo em conta que esta publicação contempla principalmente textos reflexivos de convidados/as de diversas áreas, consideramos que com a adoção de um novo formato e denominação será possível distribuí-la noutros locais (nomeadamente através de distribuição editorial). Segundo, e caminhando para o fim, consideramos que há a necessidade de explorar de forma mais intencional o espaço do foyer onde têm sido realizadas as exposições de fotografia e artes plásticas paralelas à MICAR. Esta intencionalidade poderia passar por atribuir a curadoria do espaço a pessoas que construíssem/reunissem os conteúdos a exibir à medida que a própria programação é definida e em paralelo com toda a equipa MICAR. Atualmente, temos tido a felicidade de encontrar as parcerias e conteúdos adequados, mas consideramos que há espaço para a construção de conteúdos únicos, desenhados à medida deste evento, como de algum modo se começou a fazer em 2019.

Este ano de 2020 tem sido um ano de muitas mudanças e incertezas. Não sabemos ainda quais os impactos que estas poderão ter também na MICAR, mas o que é certo é que se mantém o compromisso de, neste e nos anos por vir, se aprofundar o trabalho de reunir pessoas em torno de filmes que ajudem todos/as a re/ver a injustiça e a agir dia-a-dia na construção de uma sociedade com menos desigualdade e anti-racista.


[1] Mestranda em Sociologia, Universidade do Minho.

[2] Doutoranda em Gerontologia, Escola Superior de Educação, Politécnico do Porto.

[3] Ativista do SOS Racismo.

[4] CIIE – Centro de Investigação e Intervenção Educativas, Universidade do Porto

[5] Os trechos das entrevistas presentes nesse texto são parte do material empírico recolhido no decurso de uma pesquisa exploratória, em andamento, denominada “Fluxo Migratório e Racismo em Portugal: uma análise da atuação do Estado e dos movimentos sociais” no âmbito do Mestrado em Sociologia, desenvolvido pela autora na Universidade do Minho.

[6] Ted Talk “The danger of the single story” de Chimamanda Ngozi Adichie, em 2009: https://www.ted.com/talks/chimamanda_ngozi_adichie_the_danger_of_a_single_story?language=pt.

Referências Bibliográficas

  • Amorim, Simone (2017). Cultura e democracia: a participação como elemento estruturante das políticas públicas de cultura no estado do Rio de Janeiro. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Tese de Doutoramento.
  • Ba, Mamadou (2017). Entrevista à RTP ÁFRICA. Disponível em <https://www.rtp.pt/play/p3051/e309760/bem-vindos>. Acesso em 23.04.2020.
  • Barahona, Rodrigo, Gratacós, Joan, & Quintana, Gotzon (2012). Centros educativos transformadores – Ciudadanía global y transformación social (2.ª ed.). Barcelona: Oxfam Intermón.
  • Freire, Paulo (2015). Ação cultural para a liberdade e outros escritos (15.ª ed.). São Paulo: Paz & Terra.
  • Grosfoguel, Ramón (2016). What is Racism? Journal of World-System Research, 22(1), pp. 9-15.
  • Lopes, Teixeira, João (2009). Da democratização da Cultura a um conceito e prática alternativos de Democracia Cultural. Saber & Educar, 14, pp. 1-13. http://dx.doi.org/10.17346/se.vol14.121.
  • Mouffe, Chantal (2007). Artistic Activism and Agonistic Spaces. Art & Research, 1(2). Disponível em <http://www.artandresearch.org.uk/v1n2/mouffe.html>. Acesso em 28.04.2020.
  • Raposo, Paulo (2015). “Artivismo”: Articulando dissidências, criando insurgências. In: Cadernos AA. Disponível em <https://journals.openedition.org/cadernosaa/909?file=1> Acesso em 29.04.2020.

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