Maria Helena Salema 1
Resumo: Neste artigo, justificamos a necessidade de desenvolver a avaliação formativa interna, no campo da Educação para o Desenvolvimento (ED) e apresentamos uma proposta de um instrumento de reflexão e autoavaliação para professores – o Portefólio – sobre as suas representações em relação às problemáticas da ED e às práticas pedagógicas desenvolvidas pelos próprios.
Contextualizamos os critérios que presidiram à construção do portefólio, justificamos a relevância da reflexão crítica e da autoavaliação, com o apoio de instrumentos, no desenvolvimento profissional do(a) professor(a). Apresentamos descritores, sugerimos e formulamos perguntas sobre as quais se espera o exercício de reflexão crítica e autoavaliação do(a) professor(a). Sugerimos pistas para um aprofundamento da autoavaliação e propostas de ação.
Palavras-chave: Educação para o Desenvolvimento; Autoavaliação; Reflexão; Capacitação dos professores.
Resumen: En este artículo justificamos la necesidad de desarrollar una evaluación formativa interna en el campo de la Educación para el Desarrollo (EpD) y presentamos una propuesta de instrumento de reflexión y auto-evaluación para el profesorado – un Portfolio – sobre sus representaciones en relación a la EpD, sus problemáticas asociadas y las prácticas pedagógicas que desarrollan.
Contextualizamos los criterios que organizarán la construcción del portfolio, justificamos la importancia de la reflexión crítica y de la autoevaluación como instrumentos de apoyo al desarrollo profesional de la profesora o profesor. Presentamos descriptores, sugerimos y formulamos preguntas sobre que se espera del ejercicio de reflexión y auto-evaluación del profesorado. Además sugerimos pistas para una profundización sobre auto-evaluación y propuestas de acción.
Palabras-clave: Educación para el Desarrollo; Auto-evaluación; Reflexión; Capacitación del profesorado.
Abstract: In this article, we justify the need to develop internal formative evaluation in Development Education and we present a proposal of a reflection tool aimed at teachers’ self-evaluation – the Portfolio – through which teachers may register and make explicit their concerns, doubts and questions on their pedagogical practices in Development Education.
We justify the criteria used in to construction of the portfolio and we also justify the relevance of critical reflection and self-evaluation, with the support of tools, in teacher’s empowering and development. We present descriptors, we suggest and we formulate questions on which teachers are expected to reflect critically and self-evaluate. We suggest clues to deepen self-assessment and action.
Keywords: Development Education, Self-evaluation; Reflection; Teacher’s empowerment.
Introdução
Promover a consolidação da Educação para o Desenvolvimento no sector da educação formal, ao nível do ensino e da formação, contemplando a participação das comunidades educativas, é um dos objetivos específicos da Estratégia Nacional de Educação para o Desenvolvimento (2010-2015).
A Educação para o Desenvolvimento, sendo uma dimensão da aprendizagem da cidadania ativa, é ou deverá ser uma componente curricular transversal a todo o currículo formal que todos os professores de vários níveis e áreas curriculares poderão desenvolver em articulação com as suas disciplinas e interesses. Sendo uma dimensão relativamente recente e consignada na Estratégia Nacional de Educação para o Desenvolvimento, os professores carecem de ofertas formativas que os capacitem na promoção da aprendizagem dos seus alunos e no seu crescimento e desenvolvimento profissional neste âmbito.
A avaliação em Educação para o Desenvolvimento, quer ela seja externa e executada por agentes independentes à própria ação ou interna e executada pelos próprios intervenientes envolvidos no processo de desenvolvimento, é um objeto de estudo essencial na garantia da coerência e da exequibilidade dos objetivos que se propõem atingir e dos produtos alcançados.
Há inúmeros instrumentos metodológicos para a avaliação externa cujo objeto são ações ou programas financiados na cooperação, no entanto, para a educação formal e para a formação de professores há poucos instrumentos de avaliação em ED.
No campo científico da formação de professores, há uma extensa evidência de que a avaliação formativa interna, executada pelos próprios professores e implementada no curso das suas ações pedagógicas e práticas, tem grande impacte no seu crescimento performativo e como tal, na sua capacitação enquanto educadores e professores.
Neste artigo, apresentamos uma proposta de um instrumento de reflexão e autoavaliação para professores – o portefólio reflexivo – sobre as suas representações em relação às problemáticas da ED e às práticas pedagógicas desenvolvidas pelos próprios.
Contextualizamos os critérios que presidiram à construção do portefólio, justificamos a relevância da reflexão crítica e da autoavaliação, com o apoio de instrumentos, no desenvolvimento profissional do(a) professor(a). Apresentamos descritores, sugerimos e formulamos perguntas sobre as quais se espera o exercício de reflexão crítica e autoavaliação do(a) professor(a). Sugerimos pistas para um aprofundamento da autoavaliação e propostas de ação.
Contexto e justificação
O portefólio reflexivo de autoavaliação em ED foi construído com base no quadro conceptual sobre definições e objetivos enunciados nos vários documentos nacionais e europeus de referência: a Estratégia Nacional para o Desenvolvimento (2010-2015), documentos anteriores basilares como os da Plataforma Portuguesa das OGND (2002), as propostas adiantadas pelo IPAD no documento “Uma visão estratégica para a cooperação portuguesa” (2005) e pelo Consenso Europeu sobre ED (2007).
A Educação para o Desenvolvimento é por natureza um conceito aberto e em construção. O mais importante não é criar uma única formulação mas compreender, identificar e partilhar o núcleo de ideias fundamentais que lhe dão corpo.
Podemos distinguir na ED quatro dimensões:
- A dimensão cultural, social, económica e política num contexto global, baseada na interdependência global, na solidariedade e na responsabilidade partilhada pelo planeta e pela humanidade: um processo de diálogo, compreensão mútua e de cooperação entre o Norte e o Sul, tendo em conta os discursos e as propostas que são feitos sobre e pelo Sul, mobilizador de transformação social para o futuro;
- A dimensão pedagógica: processo de aprendizagem dinâmico, crítico, interativo, participativo, comprometido com a mobilização da opinião pública;
- A dimensão ética: baseada em princípios que estão na base do pensamento, da ação e da responsabilidade dos cidadãos, fundados nos Direitos Humanos, na equidade e na justiça social. Uma disposição afectiva, cognitiva e valorativa de um sentido de pertença a mundo interdependente e solidário, e de uma vivência de estilo de vida pró-social;
- A dimensão metodológica: centrada na auto-reflexidade, na crítica informada, argumentativa e ética, no compromisso e na mudança da sociedade a nível global.
A aprendizagem das competências, que integram estas dimensões, centra-se num conjunto articulado, transferível e multifuncional de conhecimentos, capacidades, atitudes, disposições e valores, apropriados a situações possíveis de comportamentos de participação pró-ativa. É desejável que a aprendizagem seja conducente a um compromisso com a mudança do planeta e da humanidade, num mundo global e interdependente, contemplando simultaneamente a realização e o desenvolvimento individual.
A reflexão crítica e o desenvolvimento profissional
A reflexão sobre como ensinamos e como os alunos aprendem ao longo das nossas aulas é uma forma de nos desenvolvermos profissionalmente, mudarmos, melhorar formas de pensar e atuar na sala de aula e avaliar os efeitos da nossa ação nos nossos alunos.
A autoavaliação através da reflexão tem, no entanto, que ser apoiada com instrumentos que ajudam e guiam essa atividade, propondo focos e finalidades para essa autoavaliação.
Há autores que indicam várias categorias e tipos de reflexão, consoante a finalidade e o objeto da reflexão e da autoavaliação2. Essas categorias vão desde uma reflexão sobre as técnicas utilizadas nas aulas, como, por exemplo, o tipo de questionamento aberto ou fechado, sobre a comunicação entre alunos, até à reflexão crítica. A reflexão crítica incita a uma reflexão sobre os aspectos éticos, sociais e políticos das nossas práticas3. Tem, pois, o cariz de uma reflexão metacognitiva, isto é, do quê, como e porquê nós pensamos de um certo modo. O traço mais específico do processo de reflexão crítica é a tónica posta sobre a desocultação dos nossos preconceitos e ideias feitas sobre a realidade.
Há vários instrumentos para desenvolver a nossa reflexão crítica:
- a reflexão autobiográfica. Podemos tomar consciência das nossas experiências enquanto aprendentes ou professores através de um registo das experiências pedagógicas no sentido de descobrir ou desocultar os nossos preconceitos sobre metodologias, tipo de relação pedagógica que estabelecemos;
- a reflexão sobre nós próprios através dos olhos dos nossos alunos. Pode ser surpreendente, pois podemos descobrir que os nossos alunos interpretam os nossos atos não como desejaríamos que eles os compreendessem. Ficamos surpreendidos pela diversidade de significações que os alunos têm sobre as nossas palavras e os nossos atos;
- a reflexão sobre nós próprios através dos olhos dos nossos colegas é outra forma de proceder a uma reflexão crítica. Por exemplo, a opinião aos nossos colegas sobre as possíveis causas da resistência dos alunos à aprendizagem, aos modos como atuam, por exemplo, em relação a conflitos, permite respostas que sugerem novas interpretações sobre questões pedagógicas e formas de atuação;
- a reflexão sobre o confronto dos nossos pontos de vista, dos nossos pressupostos sobre, por exemplo, as causas e os efeitos das nossas práticas pedagógicas nos alunos, com o que a investigação apresenta, é um modo de “desocultar” ideias preconcebidas.
O trabalho de análise, de reflexão, de autoavaliação e de avaliação possibilita aos professores/formadores um crescimento constante nos processos de ensino. Quando para além ou em conjugação com autoavaliação há a partilha e o confronto com colegas, os professores podem melhorar muito o desempenho. Quatro questões clássicas e simples podem ser consideradas:
- O que procuro fazer ou ensinar?
- Como faço?
- Como posso saber se faço bem?
- Como posso melhorar?
A investigação evidencia que os professores que desenvolvem a reflexão crítica, por exemplo, demonstram4 que:
- “refletem sobre por que razão ensinam e por que razão ensinam de uma determinada forma;
- procuram fundamentar as suas práticas nos valores democráticos – justiça, equidade, compaixão. A partir destes valores eles extrapolem linhas de atuação no modo como se relacionam com os alunos e como organizam as aulas;
- têm consciência da comunicação que usam na sala de aula e estão preparados para modelar os seus próprios processos mentais. Tais processos podem incluir reflexão crítica, avaliação, partilha de experiências e saberes com os outros;
- têm consciência e modelam uma comunicação democrática. Dão oportunidades para a expressão livre de opiniões sobre questões politicas, sociais, eventualmente controversas;
- apresentam diferentes pontos de vista e perspetivas sobre uma questão. Dão o exemplo de desacordo respeitador e de critica construtiva;
- estabelecem regras do discurso democrático que permitam a análise e pôr em questão todas as ideias e preconceitos que se fazem sobre os outros e que são inevitavelmente importados da sociedade para a sala de aula;
- têm consciência das relações de poder na sala de aula e têm consciência dos efeitos nefastos que podem ter nos alunos. Sabem e têm consciência de que os seus atos podem reduzir ao silêncio os alunos ou encorajá-los a exprimirem-se. Escutam séria e atentamente o que os alunos têm para dizer;
- criam deliberadamente momentos de reflexão nos quais os alunos exprimem as suas preocupações sobre questões de cidadania, como comportamentos e valores;
- sabem como identificar estilos diferentes de aprendizagem e formas de pensar dos alunos;
- desenvolvem aulas que convidam à reflexão dos alunos e utilizam estratégias para fomentar o pensar dos alunos, como por exemplo, procura de sentido, criatividade, reflexão metacognitiva, contestação de ideias feitas e preconceitos”5.
Brookfield (1995)6 apresenta vários instrumentos, tais como o “Teaching log” e Teacher Learning Audit” de autoavaliação e reflexão critica.
O “Teaching log” é um registo pessoal escrito onde registamos, enquanto professores, semanalmente, os acontecimentos que mais vivamente nos impressionaram, de que temos consciência e de como os interpretámos. Estes acontecimentos podem revelar os valores que, de facto, nos regem em vez daqueles que pensamos que cultivamos. Quando revemos estes nossos registos autobiográficos, podemos verificar que estes revelam perfis constantes de preocupações, obsessões e de problemas frequentemente experienciados. Tomamos consciência dos nossos dilemas éticos e metodológicos assim como os períodos mais desgastantes emocionalmente. Tomamos consciência de como organizamos o ensino, o tipo de tarefas, o estilo de ensino.
Apresentamos exemplos de perguntas a que podemos tentar responder:
- Qual foi o momento(s) em que me senti mais envolvido ou afirmativo enquanto professor(a)?
- Será este momento o que revela o que é ser professor(a)?
- Qual o momento em que me senti menos envolvido, e aborrecido?
- Qual foi a situação que me causou mais ansiedade e que me fez sentir com vontade de desistir?
- Qual foi o momento que mais me surpreendeu? Porquê?
- De tudo o que aconteceu no meu ensino, o que faria de diferente se eu tivesse oportunidade de repetir esse acontecimento?
- De que me sinto orgulhoso nas minhas atividades de ensino esta semana?
O “Teacher learning audits” (verificação da aprendizagem do/a professor/a) parte do desenvolvimento do autoconhecimento profissional e passa por sabermos o que estamos a aprender sobre o ensino. Muitos professores pensam que não aprendem nada de novo no exercício da sua rotina profissional. No entanto, quando questionados explicitamente sobre o percurso de, por exemplo, doze meses, muitos ficam surpreendidos com o quanto aprenderam e experienciaram.
Apresentamos uma atividade de reflexão e alguns exemplos de como guiar essa reflexão.
Atividade de reflexão: Recorde o trimestre anterior no exercício da sua experiência docente e tente responder o mais sinceramente possível:
- Comparando o presente com a situação há X meses, eu agora sei que…
- Comparando o presente com a situação há X meses, eu agora sou capaz de…
- Comparando o presente com a situação há X meses, eu agora poderia ensinar e ajudar um colega meu como…
- A coisa mais importante que eu aprendi sobre os meus alunos no passado trimestre…
- A coisa mais importante que eu aprendi sobre o meu ensino …
- A coisa mais importante que eu aprendi sobre mim próprio …
- Os preconceitos que eu tinha sobre o ensino e aprendizagem que eu tenho confirmado mais foram…
Quando lemos as nossas respostas, podemos, por exemplo, organizá-las consoante os seguintes tipos de perguntas:
- Descreveu a sua aprendizagem prioritariamente em termos cognitivos ou emocionais?
- Falou principalmente sobre o desenvolvimento de “insights” pessoais? Ou realizações instrumentais e metodológicas?
- Quantas vezes desenvolveu assuntos extracurriculares, tais como questões éticas, políticas, desenvolvimento de redes de suporte e de colaboração?
- A aprendizagem que reportou não tem grande significado ou pelo contrário parece ser uma aprendizagem transformadora?
Proposta de um portefólio reflexivo centrado na Educação para o Desenvolvimento
Apresentamos de seguida uma proposta de um instrumento de reflexão e autoavaliação para o desenvolvimento da Educação para o Desenvolvimento.
O portefólio reflexivo do(a) professor (a) foi concebido para promover aprendizagem e o crescimento dos professores como pessoas e profissionais através da reflexão e autoanálise.
É um instrumento onde os professores podem registar e tornar explícitas as suas preocupações, dúvidas e questões sobre a Educação para o Desenvolvimento e sua implementação assim como evidenciar os seus progressos e resultados provisórios através de exemplos, documentos e observações. Poderão partilhar com colegas ou evidenciarem os seus próprios progressos e o desenvolvimento das suas competências.
O portefólio pretende:
- incentivar o(a) professor(a) a refletir sobre o conhecimento essencial e específico, sobre as habilidades e valores necessários ao estímulo da Aprendizagem na Educação para o Desenvolvimento;
- ajudar a avaliar as suas competências didáticas e pedagógicas, a fim de promover a aprendizagem do aluno;
- habilitar o(a) professor(a) a monitorar o seu progresso e a registar as suas experiências de ensino ocorridas não só na sala de aula, mas também na escola e na comunidade em geral;
- compartilhar e discutir práticas com colegas, formadores e mentores.
O objetivo geral do portefólio é promover a aprendizagem e o crescimento do(a) professor(a) como pessoa, como profissional e como cidadão(ã). A aprendizagem do(a) professor(a) é promovida porque o portefólio ajuda-o(a) a tornar-se mais competente em áreas como estratégias de ensino, gestão da sala de aula, avaliação e na construção de relações mais positivas com os colegas, alunos e pais. O crescimento pessoal e profissional é promovido porque o portefólio ajuda-o(a) tornar-se mais tolerante com a ambiguidade, mais humano(a) nas suas interações, melhor fundamentado(a) em princípios diante de dilemas éticos, mais flexível na capacidade de resolver os problemas humanos complexos7.
Quem é o público-alvo do portefólio?
Em primeiro lugar, este instrumento destina-se a ser utilizado por profissionais que pretendam desenvolver temas e problemáticas da Educação para o Desenvolvimento, enquanto componente curricular transversal, e que trabalham em qualquer das áreas curriculares do ensino básico – como Língua Portuguesa, Línguas Estrangeiras, História, Geografia, Educação Cívica, Matemática, Física e Química e Educação Artística. Significa, pois, que os professores podem usá-lo como um instrumento de autoajuda quer numa área curricular não disciplinar, como a Educação Cívica como noutras áreas curriculares disciplinares. Nesta última situação, os professores terão que integrar e desenvolver os conteúdos específicos da disciplina dentro da perspetiva e dos conteúdos da Educação para o Desenvolvimento. Esta abordagem será tanto mais eficaz quanto mais houver colaboração entre professores na integração de temas, atividades e num desenvolvimento interdisciplinar ou multidisciplinar, sempre que possível envolvendo a escola e a comunidade.
Em segundo lugar, outros educadores, como formadores na formação inicial e contínua de professores, poderão também usar este instrumento. Este poderá ajudá-los a refletir e a identificar as suas habilidades, bem como quaisquer questões e dúvidas que possam ocorrer ao longo da sua vida profissional e, assim desenvolverem o seu autoconhecimento profissional. Este instrumento também poderá sugerir uma melhor capacitação profissional, através de práticas de partilha, de trabalho colaborativo com pares e de hetero formação.
Quais são os domínios de reflexão, avaliação e autoavaliação do(a) professor(a) de ED?
A identificação dos domínios de reflexão e autoavaliação estão fundados no quadro conceptual do que é ou se deseja que seja a Educação para o Desenvolvimento. Podemos considerar que o objeto da reflexão e autoavaliação em ED é multifacetado: os temas e os conceitos-chave da ED, o(a) próprio(a) professor(a), o aluno(a), o clima da escola, a comunidade, o processo.
Um referencial de desenvolvimento curricular transversal em ED é uma tarefa inacabada e complexa, pois depende das orientações curriculares definidas, dos contextos curriculares disciplinares ou não disciplinares onde é, ou pode facultativamente ser desenvolvido, quer na sua totalidade ou parcialmente. Pressupondo um conhecimento partilhado com os leitores, assume-se que a Educação para o Desenvolvimento é uma das vertentes temáticas especificas da Educação para a Cidadania, comungando com esta última o objectivo de consciencialização de problemáticas do mundo contemporâneo, mas centrando a sua especificidade na compreensão das causas dos problemas do desenvolvimento e das desigualdades a nível global e tendo focos temáticos como o desenvolvimento, a globalização e a interdependência entre nações, os processos de cooperação, a pobreza extrema à escala global, a paz, a diversidade, cultural e religiosa, a justiça social e a urgência do desenvolvimento de competências de mudança para o futuro.
As competências são definidas, tal como referido anteriormente, como um conjunto articulado de conhecimentos, capacidades, valores e disposições. Muitos destes temas articulam-se com outros referenciais curriculares como, a educação para a cidadania europeia, a educação para os direitos humanos, a educação para a paz, a educação intercultural, entre outros.
Há vários pressupostos sobre os domínios nos quais poderá ocorrer o desenvolvimento profissional. Em primeiro lugar, os professores que desejam ou se sentem responsáveis pelo despertar de consciências para os problemas e temáticas globais da Educação para o Desenvolvimento devem integrá-los nas suas disciplinas e ter um conhecimento e uma compreensão sobre as seguintes múltiplas dimensões das temáticas da Educação para o Desenvolvimento necessárias para uma participação ativa, responsável e conhecedora da sociedade: (a) a literacia política e jurídica; (b) a literacia social e cultural; (c) a literacia económica; (d) a literacia europeia e global.
Tal como referem Brett, Mompoint Gaillard & Salema (2009)8:
- (a) a literacia política e jurídica refere -se aos direitos políticos e deveres em relação ao sistema político e ao Estado de Direito. Compreender o domínio político e legal implica o conhecimento e a compreensão dos direitos com base em quadros de referência internacionais, tais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), e no caso da cidadania Europeia, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (2000). Esta literacia baseia-se na ideia histórica da igualdade e dignidade de todos os seres humanos, independentemente de suas diferenças como sexo, raça, cor étnica, nacionalidade, região ou origem social e económica. Os professores devem conhecer os direitos humanos e os mecanismos para a sua proteção, bem como desenvolverem a habilidades e atitudes para aplicá-los diariamente.
- (b) a literacia social e cultural refere-se à relação entre os indivíduos na sociedade; a elementos, tais como os valores que compartilham, mundividências que têm e a forma como estabelecem as regras para a convivência. Os professores devem ter conhecimento de conceitos-chave tais como: diversidade social, a natureza dinâmica da cultura e da identidade. Devem refletir sobre os valores sociais e desenvolver competências interculturais, atitudes sociais e capacidades que promovam a inclusão social, a anti-discriminação e o anti-racismo.
- (c) a literacia económica refere-se à relação entre indivíduos e grupos, bem como a situação económica numa sociedade (…). Os professores devem conhecer e compreender como as economias funcionam, incluindo o papel das empresas, corporações e serviços financeiros; os direitos e deveres dos consumidores; empregadores e relações com os empregados; o consumo ético e seu efeito. Devem envolver os alunos em noções como os direitos humanos, o direito ao trabalho e a um nível mínimo de subsistência.
- (d) a literacia europeia e global (…) refere-se ao reconhecimento e à promoção da interdependência global, às questões de sustentabilidade e à preocupação com as gerações futuras. Os professores devem estar cientes da unidade e diversidade das sociedades europeias, entender o mundo como uma comunidade global e reconhecer as suas implicações políticas, económicas, ambientais e sociais. Devem ser capazes de ajudar os alunos a compreender a noção de globalização e interdependência, utilizando contextos familiares aos jovens e crianças.
Os professores devem compreender as dimensões sociais e culturais dos contextos educativos onde exercem a sua atividade e escolher situações adequadas para propor e promover atividades de aprendizagem aos seus alunos9. Os professores devem também ter um conhecimento pedagógico profundo, uma bateria de capacidades, valores e competências para apoiar e orientar a aprendizagem dos alunos. Os professores devem estar cientes de que conhecimentos, capacidades e valores são desenvolvidos através das lentes dos valores democráticos, dos direitos humanos, da interdependência global e da solidariedade entre os países. Os professores devem também preocupar-se com o seu desenvolvimento pessoal e ético, tendo em vista um compromisso com uma participação ativa, responsável e promotora da mudança.
De acordo com estes pressupostos, o portefólio do(a) professor(a) baseia-se nos seguintes quatro grupos de competências profissionais, correspondentes a questões e problemas que os professores enfrentam na sua prática.
Tabela adaptada de Brett, P., Mompoint-Gaillard, P. & Salema, M.H. (2009)10
Descritores gerais
Estas 4 categorias formam uma estrutura de várias competências que devem ser desenvolvidas e compreendidas como um processo contínuo e recursivo de aprendizagem e de desenvolvimento profissional. Esta estrutura não deve ser considerada como uma listagem linear e de verificação de competências ocorridas ou a desenvolver, mas antes deve atuar como um estímulo para os professores refletirem, discutirem, compartilharem e autoavaliarem as suas práticas e crenças ao longo de todo um processo de aprendizagem e de desenvolvimento profissional.
Enquanto instrumento dirigido à aprendizagem e desenvolvimento dos professores, a estrutura começa com uma reflexão sobre a própria visão e autorretrato do(a) professor(a) sobre a Educação para o Desenvolvimento e a percepção sobre as necessidades de formação sentidas. São portanto competências dirigidas ao desenvolvimento profissional.
Seguem-se seis temas chave da Educação para o Desenvolvimento: Desenvolvimento, Globalização e Interdependência, Diversidade, Pobreza e Desigualdade, Justiça Social e Paz. Esta categoria é explicitamente dirigida ao conhecimento e à compreensão de temas da ED. A reflexão dos professores incide sobre o conhecimento necessário para a compreensão dos alunos sobre a ED e sobre a forma pedagógica como promovê-la.
A estrutura exemplifica, em seguida, o tipo de questões sobre as quais o(a) professor(a) dever-se-à questionar sobre os vários contextos – disciplinar, interdisciplinar, escolar e comunitário – em que se poderão desenvolver atividades de ensino e aprendizagem.
Segue-se uma secção sobre metodologias de ensino, dirigidas explicitamente à aprendizagem de capacidades pertinentes para a tomada de consciência e para o exercício de uma cidadania global e responsável e como inspirar valores necessários para uma vivência e uma participação conhecedora, ativa e ética na sociedade. As metodologias de ensino foram escolhidas com fundo na pesquisa que colocou em evidência uma série de capacidades específicas e essenciais para a aprendizagem da cidadania. Também organismos internacionais como a OCDE (2007) consideraram capacidades essenciais para a Educação para o Desenvolvimento: o pensamento crítico, o pensamento sistémico, a resolução de problemas e a participação, capacidades estas adoptadas nesta estrutura. Assim no portefólio considerámos: a aprendizagem autorregulada; o pensamento crítico, o trabalho e a cooperação em grupos; a comunicação democrática; e a participação dos alunos.
Finalmente, o portefólio do(a) professor(a) sugere temas de reflexão para o desenvolvimento de competências de avaliação sobre a aprendizagem e de autoavaliação dos professores.
Como observação final sobre os processos de ensino e de aprendizagem, consideram-se que as capacidades, os valores e os conhecimentos dos alunos devem ser consistentes e interligados com os princípios democráticos e os Direitos Humanos. Tal como indicam Gollob e outros (2005)11, os conhecimentos e as capacidades são ferramentas que podem ser utilizados com qualquer finalidade. Eles não conduzem em si mesmos à prática de uma cidadania global e responsável. Levado ao extremo, estes conhecimentos e capacidades em cidadania global tanto podem ajudar o exercício de participação responsável local e global como podem ser transformados em armas para destruir os valores sobre os quais assenta a ED. O que é necessário é o desejo de participar de forma positiva na sociedade e a vontade de transformar este desejo em realidade. Isto mostra como a aprendizagem da cidadania global deve sempre incluir uma dimensão baseada em valores normativos. A essência das atitudes e valores democráticos é que a cidadania democrática não deve ser apenas entendida e exercida, mas também deve ser valorizada e apreciada e, se necessário, defendida contra o ceticismo e a autocracia. No entanto, embora seja perfeitamente legítimo que valores e atitudes sejam encorajadas nas escolas, elas não devem – ao contrário dos conhecimentos e habilidades – ser avaliadas formalmente.
Reflexões do(a) professor(a) e registos
Para cada um dos descritores das competências do(a) professor(a), apresentam-se exemplos de questões dirigidas à sua reflexão. É aconselhável que os professores registem as suas próprias perguntas, dúvidas e perplexidades.
Há também espaço para o registo de sugestões de procedimentos de como responder às auto-perguntas formuladas pelos docentes. É aconselhável os professores registarem as suas perguntas e as suas próprias soluções de respostas. Os professores poderão registar a data das suas ideias, propostas e soluções. Desta forma, poderão tomar consciência do seu percurso de desenvolvimento.
[1] Maria Helena Salema é Doutorada em Educação (1996), Mestre em Educação (1986), Licenciada em Filologia Germânica (1975) pela Universidade de Lisboa (UL). Exerce funções de professora e investigadora no Instituto de Educação da UL com publicações nacionais e internacionais nas temáticas de ED. Coordenação de projectos nacionais e internacionais do Conselho da Europa e da Comissão Europeia.
[2] Zeichner, K. (2001). The reflective practioner. In P. Reason & H. Bradbury (eds). Handbook of action research: participative inquiry and practice.
[3] Salema, M.H. (2010). Educação para o exercício de uma cidadania ética e responsável: competências de professores. Prima Facie. nº 6, 9-32. ISSN 1647 -1210.
[4] Brett, P., Mompoint-Gaillard, P. & Salema, M.H. (2009). Sarah Keating-Chetwynd (Editor). How all teachers can support citizenship and human rights education: a Framework for development of competences. Council of Europe. ISBN 978-92-871-6555-8.
[7] Reiman, A.J. & Thies-Sprinthall, L. (1998). Mentoring and Supervision for Teacher Development. Addisson Wesley Longman Inc. ISBN 0-8013-1539-5. p.2.
[8] Brett, P., Mompoint-Gaillard, P. & Salema, M.H. (2009). Sarah Keating-Chetwynd (Editor). How all teachers can support citizenship and human rights education: a Framework for development of competences. Council of Europe. ISBN 978-92-871-6555-8 pp.22-23.
[9] ICCS 2009 European Report Civic knowledge; attitudes and engagement among lower secondary students in 24 European countries. (Eds.) David Kerr, Linda Sturman, Wolfram Schulz & Bethan Burge. IEA.
[10] Reiman, A.J. & Thies-Sprinthall, L. (1998). Mentoring and Supervision for Teacher Development. Addisson Wesley Longman Inc. ISBN 0-8013-1539-5. p.2.
[15] ONU.1999, Declaração e Programa de Ação sobre uma Cultura de Paz.
Referências bibliográficas
- Bazzano de Oliveira, A. (2007). O Percurso do conceito de Paz: de Kant à atualidade. Comunicacão I Simpósio em relações internacionais do programa de pós-graduação em relações internacionais SanTiago Dantas, UNESP;UNICAMP; PUC-SP
- Brett, P., Mompoint-Gaillard, P. & Salema, M.H. (2009). Sarah Keating-Chetwynd (Editor). How all teachers can support citizenship and human rights education: a Framework for development of competences. Council of Europe. ISBN 978-92-871-6555-8
- Brookfield, S. D. (1995). Becoming a critically reflective teacher. San Francisco: Jossey Bass Publishers.
- Gollob, R., Huddleston, E. Kraft, P. Salema, M.H. & Spajic-Vrkas (2005). In E. Huddleston & A. Garabagiu (Eds). Tool on teacher for education for democratic citizenship and human rights education. Publishing Division, Communication and Research Directorate. Council of Europe
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