Diálogo entre Albertina Raposo1, Filipe Martins2, Teresa Gonçalves3 e Teresa Martins4
Por Cecília Fonseca5 & La Salete Coelho6
Transcrição e edição Cecília Fonseca, La Salete Coelho e Tânia Neves
Sinergias (S.) – Boa tarde. Obrigada por aceitarem o nosso convite para esta conversa. Pensamos este diálogo em torno da relação entre a Academia e a Comunidade, enquanto espaço social que envolve estas instituições, relação às vezes nomeada como “extensão universitária”. Enquanto docentes e investigadores/as de instituições de ensino superior, que tipo de relações podem identificar? Como veem esta questão em Portugal?
Albertina Raposo (AR.) – Eu creio que já é possível identificar algumas iniciativas nesse sentido em muitas instituições. Algumas podem ser casos pontuais, ligados a alguns docentes e envolvendo apenas algumas turmas. Também pode ser que surjam mais ligadas às especificidades de alguns cursos. Mas acho que, de um modo geral, essa preocupação começa a estar latente.
Teresa Martins (TM.) – A minha experiência diz-me que há essa preocupação. Estou de acordo que possa ser mais visível em alguns cursos do que outros, mas a verdade é que conheço melhor a minha área e não posso generalizar. É visível a consciência crescente de que esta ligação efetiva à comunidade é muito importante. Há cursos em que essa ligação à comunidade tem necessariamente de acontecer, nomeadamente através dos estágios.
Filipe Martins (FM.) – Para mim, tem de se começar a pensar de outra forma, porque, se virmos bem, é um facto que a comunidade já está dentro do Ensino Superior, nem que seja porque os estudantes, os docentes e os funcionários são membros de comunidades. Há uma diversidade enorme de atores, de pessoas com backgrounds e com experiências diferentes que podem ser aprofundadas, discutidas e partilhadas no próprio trabalho de ensino e de investigação que se faz nas universidades. Portanto, ao assumir que a comunidade já está dentro do Ensino Superior com os seus diferentes atores, vem imediatamente uma responsabilidade social da universidade porque ela acolhe estudantes de muitos sítios; acolhe docentes de muitas geografias e experiências e forma uma comunidade diversa. Depois existe esta relação mais instrumental, técnica, que às vezes se remete para o campo da extensão, que são as colaborações, os estágios, as avaliações, as supervisões. É uma dimensão muito específica da relação com a comunidade, mas importante também. No entanto, podemos pensar e trabalhar a comunidade a partir das aulas que damos, dos projetos de investigação que definimos e desenvolvemos. Se pensarmos assim a relação com a comunidade não fica só pelo estágio ou pela consultoria.
Teresa Gonçalves (TG.) – Eu creio que se verificam cada vez mais relações e que as instituições, até por sobrevivência, não podem estar, nem estão fechadas. Importa salientar que estas relações existem nos três domínios da intervenção no ensino superior, que são: a docência, ou ensino-aprendizagem, a investigação e a prestação de serviços. Estas continuam a ser as nossas linhas de ação fundamentais. No entanto, ainda é necessário trabalhar esta questão. Às vezes, a “extensão” não está incorporada como uma missão da instituição, não está no seu bilhete de identidade, sendo mais instrumental no sentido em que se faz porque tem de ser, porque precisamos de sobreviver, precisamos de financiamentos, precisamos de ligação à rede social. Acho que a grande mudança poderia passar por aí, falta melhorar e incorporar isto na nossa missão – a de sermos uma instituição que só existe, que só faz sentido, no serviço que presta à comunidade.
AR. – Eu vejo estas questões ainda muito ligadas à vontade e à “carolice” dos docentes, os mais preocupados em vestir a camisola da competência final do que em despejar conteúdos. O processo de reforma do ensino superior conhecido como “processo de Bolonha” poderia ter sido uma oportunidade para a institucionalização de um fazer diferente, mas “Bolonha” quase não passou do papel e por isso vamos fazendo isto a título avulso.
TG. – Sim, neste momento [com Bolonha] não é possível ter o desenvolvimento de um curso, de um projeto, sem ligação à comunidade. Começa por ser logo um pré-requisito.
TM. – Termos esta dimensão, quase obrigatória, que está subjacente e que conta agora nas propostas de avaliação dos docentes, pode ser, para algumas pessoas, um estímulo. Pode ser que isso ajude algumas pessoas a pensar: ‘talvez isto seja importante, pode valer a pena envolver-me em algumas coisas’. Depois, há os outros, os tais da “carolice”, que são os que estão sempre envolvidos em muitas coisas.
FM. – Creio que isso deveria ser um objetivo, ultrapassar a “carolice” do professor que tem esta sensibilidade e motivação e tornar a “extensão” uma experiência mais transversal à política da escola, faculdade ou até universidade. Há programas de voluntariado que são instituídos, são valorizados e são acompanhados pelos docentes, que permitem fazer uma reflexão sobre as aprendizagens, numa estreita relação com os conteúdos. Há iniciativas dos próprios estudantes, seja com questões ligadas aos migrantes, a dificuldades económicas, à diversidade cultural e género, e que são apoiadas pelas universidades. Estas lógicas têm que ser mais transversalizadas e integradas nas políticas estratégicas das universidades.
S. – Será essa então uma ideia-chave que gostaríamos de salientar? Que em Portugal é necessária uma maior institucionalização da “extensão”? Uma visão transversal e integrada, que não fique apenas dependente de iniciativas pessoais?
AR. – Sim, acredito que essa visão faz falta.
S. – Já agora, e como definiriam “extensão universitária” ou caraterizariam esta relação ensino superior-comunidade?
TM. – Eu sinto alguma dificuldade em limitar a “extensão” apenas a estágios pontuais. Muito provavelmente podemos estar a falar de coisas muito diferentes. Posso dar-vos um exemplo – no Politécnico do Porto foi criada há uns anos uma organização por docentes e funcionários que se chama “IPP Solidário”. Surgiu para responder a um problema concreto que muitos de nós fomos identificando na prática quotidiana das nossas escolas. Alguns estudantes que vinham dos PALOP e de Timor confrontavam-se com problemas muito concretos quando chegavam a Portugal em termos de subsistência e para os quais os serviços de ação social existentes tinham/ têm muitas dificuldades em dar resposta. Então, perante um problema concreto que estava à nossa frente, criámos esta organização. Talvez não lhe possamos chamar um projeto de extensão no sentido ‘clássico’, mas não fará sentido integrar-se neste “chapéu”?
AR. – O que caraterizará a extensão? Ser um projeto? Ser na sala de aula? O José Pacheco diz: “A escola não são as paredes. A escola são as pessoas”.
TM. – São as pessoas, exatamente. Muitas vezes, temos oportunidade, através dos estudantes, de fazer pontes interessantes. Fazer pontes com aquilo que são as realidades que eles conhecem, de onde vêm, nas quais trabalham e a partir daí temos tido realmente algumas experiências bastante interessantes na escola. Tenho alunos que nos trazem experiências muito concretas em que estão envolvidos, para apresentar nas aulas, para partilhar com os colegas. Quando há abertura e interesse deles para isto nós também devemos ter esta capacidade de o potenciar.
FM. – O rumo que a conversa seguiu está a fazer-nos questionar a extensão como algo à parte, segmentado, como uma terceira função [depois da docência e da investigação]. O que se está a perspetivar é que ela tem que estar na vida da própria docência e da própria investigação.
AR. – Para mim, a “extensão” é o esbater da fronteira entre a escola e a comunidade.
S. – Mas será essa a realidade a que assistem? Daquilo que conhecem, quais são as roupagens que hoje a “extensão” assume no ensino superior?
TM. – As consultorias, os projetos de investigação…
AR. – Os estágios. Mas atenção que há estágios que demoram 15 dias, ou um mês – é preciso que isso não seja o culminar da relação entre a instituição e a comunidade.
TM. – As prestações de serviços. Os projetos em que as instituições se envolvem, porque são convidadas e acabam por entrar como parceiros.
AR. – Os serviços de apoio à comunidade.
S. – Nesta relação, que vimos poder assumir diferentes formas, que aspetos positivos identificam? Quem beneficia e com o quê?
FM. – Creio que a relação com a comunidade pode estimular a aprendizagem e essa é uma grande mais-valia para as instituições de ensino superior.
AR. – Acho que há aí uma palavrinha que faz a diferença na forma de ver a “extensão” – o aluno não vai trabalhar para a comunidade, não vai ajudar a comunidade, mas vai inserir-se na comunidade, vai trabalhar com a comunidade. Aí desaparecem as fronteiras. É esse o grande desafio, que nós, enquanto docentes, sejamos capazes de proporcionar esse tipo de aprendizagem nas nossas turmas. O trabalho é, depois, muito mais compensatório – aumenta a motivação, realiza-se um trabalho útil e numa relação de aprendizagem win-win, porque é benéfica para ambos os lados.
FM. – Isto promove uma aprendizagem muito mais contextualizada e significativa. Em qualquer área.
AR. – A Universidade de Aveiro tem licenciaturas inteiras sem aulas, só com módulos práticos. Por exemplo, um professor chega à aula e diz: ‘o trabalho para este semestre é desenhar uma torradeira’. O aluno vai começando a pensar as situações reais e práticas e vai trabalhando a componente eletrónica de maneira a ter uma aplicabilidade e um resultado final. Quando for confrontado com um outro problema, num local de trabalho real, pode não ter nada a ver com a torradeira, mas será capaz de dar resposta a esse problema.
FM. – Na Educação Social nós também trabalhamos assim. Os estudantes vão para uma instituição, tentam identificar um problema, tentam caracterizá-lo e tentam encontrar alternativas.
TG. – Nos cursos de Educação Básica também.
AR. – Isso fá-los crescer para que se apropriem de um problema e o consigam resolver.
TM. – Esta questão relaciona-se com o que se entende por ciência e por investigação. A verdade é que nem todas as áreas de formação académica, nem todas as áreas de trabalho académico, têm que ter, na minha opinião, uma relação evidente com o mercado de trabalho. Esta é uma perspetiva que sei que não é consensual. Mas há muitas áreas que existem para fortalecer o conhecimento científico.
AR. – E melhorar a sociedade.
FM. – Concordo que a investigação ajuda a resolver problemas e a formação prepara para a empregabilidade, mas também considero que é preciso tentar conservar algum papel de liberdade, de desenvolvimento de ideias, de pensamento e das pessoas. Porque, às vezes, frequentar um curso superior é acima de tudo para crescer, enquanto pensamento do mundo, enquanto pensamento crítico.
TG. – A dimensão social está depois no colocar esse saber em prol das pessoas.
FM. – Sim, mas creio que pode não ser numa lógica de aplicação direta.
S. – Pelo rumo da conversa parecem existir também algumas contradições. Que tensões encontram nesta relação?
FM. – Neste processo há aspetos que podem ser vistos como perniciosos: por um lado, a visão mais instrumental da “extensão” universitária como uma estratégia de angariação de fundos das próprias organizações, como é o caso das consultorias, por exemplo. Os docentes são mesmo estimulados a encontrarem novas formas de financiamento. As próprias linhas de financiamento europeias estão cada vez mais viradas para investigação que resolva problemas. É que já não é só a “extensão” que tem que resolver problemas da sociedade, é a própria investigação. Portanto, a investigação tem que estar já muito orientada para problemas e para a mais-valia, para o impacto económico, social, coesão social. Isto é algo que faz arrepiar os académicos que podem ser chamados de mais “clássicos”. A um nível mais macro, principalmente nas ciências sociais e humanas, tem havido alguma crítica a esta visão muito instrumental da produção de conhecimento: o que é que aconteceu ao papel da universidade de fazer investigação fundamental, de fazer investigação e de produzir um conhecimento que se considera relevante pelo próprio desenvolvimento das suas áreas e disciplinas e não apenas para resolver problemas sociais?
Eu próprio, em relação a isto, tenho uma posição ambígua, porque se por um lado acredito que o conhecimento tem que se democratizar e tem que ser útil à melhoria da vida das pessoas, por outro também reconheço que a produção de conhecimento só para resolver problemas pode cair numa lógica muito imediatista e muito ortopédica de “tapar buracos”. Se por um lado este envolvimento com a comunidade é vital para a própria aprendizagem e desenvolvimento humano quer dos estudantes quer das comunidades, por outro lado também não vamos agora tornar as universidades um serviço de ação social e emergência social que resolve os problemas todos.
Muitas vezes as grandes descobertas e as grandes inovações foram ao acaso, ou foram fruto de pessoas que tiveram uma vida inteira para pensar numa só questão e sem a pressão de estarem a resolver um problema social premente. Quando perdes o espaço e o tempo para desenvolver conhecimento, de forma mais livre, também passas a desenvolver um conhecimento mais pobre.
TG. – Mas acredito que tenha de haver sempre uma dimensão social. Temos que pensar sempre nas possíveis aplicações mesmo da investigação fundamental. E essa dimensão social deve estar sempre lá.
FM. – O risco é quando ela se torna a força, a principal intencionalidade de tudo o que fazemos no universo académico. Creio que a academia enquanto espaço de produção e desenvolvimento de conhecimento, de pensamento, tem que ser de alguma forma preservada, o que não significa que ela não se envolva com as questões da contemporaneidade das quais falamos.
Isso não só é perigoso para o conhecimento como para os outros atores que também têm um papel não académico muito importante na resolução de problemas. Parece que só as universidades e o ensino superior é que sabem encontrar soluções para os problemas e que estamos a tirar lugar a outras forças das comunidades que têm outros saberes.
S. – Referiram os três campos principais da Academia – docência, investigação e “extensão”. Mas será que eles são assim tão estanques?
AR. – Enquanto docente não vejo isso assim. Posso, em termos metodológicos, optar por ficar na sala de aula com um PowerPoint a debitar matéria, ou inserir os alunos numa metodologia project based learning, programme based learning, com as competências finais que eles precisam e a partir daí chegar aos objetivos iniciais e aos conteúdos. Não acho que a escola ou a universidade carreguem a mochila de serem salvadoras da sociedade ou de resolver os problemas sociais. Não! Creio que é uma questão de dirigir o conhecimento de outra forma.
S. – Mas aí não estaremos a falar mais da área da docência?
AR. – Para mim é a mesma coisa. É ensinar-aprender, trabalhando com a comunidade.
TG. – As ligações entre as três dimensões podem ser facilmente feitas.
AR. – Têm que ser articuladas. Podem e devem ser articuladas.
TM. – Eu creio que esta articulação é uma mais-valia. Tenho muita dificuldade em pensar nisto de forma separada, mas admito que também tem a ver com o meu percurso, com a minha área de formação de base. Sou educadora social e para além do meu trabalho como docente na escola, uma parte pequena da minha atividade enquanto profissional, tenho desenvolvido muito trabalho de ligação com a comunidade. Um dia destes falava com a turma de Animação Comunitária sobre esta ligação, esta articulação entre o que faço nas aulas e o trabalho que faço fora, para além da escola, que me é muito natural. Muitas vezes passa por propor determinados desafios aos estudantes, levá-los a ter outras experiências, tendo também capacidade para os apoiar nesse processo, porque tenho, no meu trabalho quotidiano, muita ligação à comunidade. Penso que para colegas que estão a trabalhar exclusivamente numa instituição de ensino superior, e que não têm esta ligação à comunidade tão oleada, esta ligação poderá ser mais difícil de fazer. Até porque isto implica também uma abertura, uma mudança, uma predisposição, que nada tem a ver com o paradigma no qual algumas pessoas construíram a sua identidade docente.
S. – E, já que falamos de articulação, nos vários tipos de relação entre ensino superior e comunidade, essa é feita de forma interdisciplinar a partir das próprias instituições universitárias?
TM. – Esse é, na verdade, outro desafio.
TG. – Muitas vezes acontece nos estágios das licenciaturas.
FM. – Trabalhar em interdisciplinaridade ainda é um processo. Na ESE do Porto, onde estive, na Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica, onde estou agora, verifico muita esta interdisciplinaridade entre Educação e Psicologia. Mas são áreas que já cresceram e que se têm associado por tradição, até pelas formações que oferecem. Mas é menos comum vermos um sociólogo a trabalhar com um engenheiro.
TM. – Mas existem casos.
FM. – Existem, mas estas práticas não estão tão oleadas. Nas próprias universidades há muitos departamentos…
TM. – Inclusivamente há ofertas formativas que são pensadas com base nesse pressuposto. Estou a lembrar-me do programa doutoral que estou a frequentar, por exemplo, em Gerontologia e Geriatria, em que estão envolvidas pessoas de áreas muito diferentes – Sociologia, Medicina, Enfermagem, Engenharia, Tecnologias, Direito. Existem áreas onde já se percebeu que é impossível estudar um fenómeno sem o perspetivar com vários atores, a partir de vários olhares, como o envelhecimento.
S. – Falámos há pouco sobre a necessidade de abertura das instituições de ensino superior à mudança, nesta relação ensino superior-comunidade. Acham que ela existe?
TG. – Penso que a maioria das instituições não estaria muito disponível para colaborações do tipo horizontal onde perdesse o seu lugar de académicos e de liderança de alguns processos. Porque isso seria verdadeiramente assumir que é uma instituição da comunidade, como as outras. Penso que por instinto de sobrevivência, por herança, por tradição…
FM. – Por preservação de um espaço, de um estatuto.
TG. – A maioria não está muito disponível para abrir o peito e dizer: ‘estou aqui para o que vocês quiserem, vamos ver o que necessitam; sou mais um membro da comunidade para vir trabalhar convosco’.
TM. – Outra situação que pode ser enriquecedora é a abertura das instituições de ensino superior a pessoas [docentes] que não são exclusivamente académicas, com outro tipo de experiências, com outros trabalhos. O risco dessas situações é a precarização, o que por vezes não ajuda a sustentar determinadas práticas, determinados modos de fazer. Isso faz-nos sentir, muitas vezes, com um pé dentro e um pé fora, com pouca legitimidade para dar seguimento a algumas coisas que começamos ou desejávamos começar.
FM. – A precariedade é uma realidade em muitas organizações do ensino superior. E embora possa parecer uma mais-valia, contar com pessoas com experiências de fora, a verdade é que isso fragiliza a criação de dinâmicas mais consolidadas no tempo, até de abertura à comunidade. Porque esses professores vão, vêm, estão ali umas horas. Não participam nos órgãos, não tomam decisões estratégicas. O seu trabalho não se consolida.
S – E como veem, então, o contributo das instituições de ensino superior, e da própria “extensão”, para a transformação social?
TM. – Eu acho que todo o seu trabalho pode estar ao serviço da transformação social. Não colocaria o foco apenas na “extensão”.
S. – Mas, no seguimento daquilo que temos vindo a discutir, parece que a “extensão” ainda se baseia na operacionalização de estágios e de aprendizagem de competências, o que por si não traz a transformação social.
TG. – Creio que só pela questão de haver esta colaboração entre instituições de ensino superior e organizações da comunidade já aí temos todo um potencial para transformarmos a ideia que temos de conhecimento, transformar a ideia que temos da instituição de ensino superior como um lugar onde se pode ir buscar prazer e curiosidade em conhecer, mas também em encontrar ferramentas para agir. Acho que aí reside todo um potencial.
AR. – Posso dar um exemplo: este semestre vou ter sete unidades curriculares. Quando as estiver a preparar, o importante não vão ser os conteúdos. Antes, vou tentar perceber como comunicar com os estudantes e trabalhar competências naquelas sete valências diferentes. Pergunto-me: como é que os posso tornar mais autónomos? Como é que os posso tornar mais responsáveis? Como é que os posso tornar mais competentes nos seus desempenhos? E como é que os posso ajudar a serem felizes? Acho que isto passa por contribuir para essa transformação social.
TG. – O que estamos aqui a debater é um bocadinho contracorrente. Porque a corrente continua a ser avaliar o aluno pelo sucesso académico e este continua a ser avaliado, fundamentalmente, pelos conhecimentos. Ainda é minoritária a ideia do desenvolvimento global do estudante. Mas só quando começarmos a pensar nesses termos é que as questões da responsabilidade social, das atitudes e dos valores começam a ser chamadas para aqui.
FM. – Também tens uma corrente de pessoas na academia que se envolve politicamente em algumas questões, que investiga, sobre as quais ensina e assume uma componente de posicionamento e de contributo para debates políticos a partir da universidade. Acho isso virtuoso. Ou seja, acho que a universidade deve assumir que aquilo que faz, aquilo que ensina, aquilo que investiga é algo que tem significado político no sentido da mudança social, do pensamento social. Mas isto não é consensual entre todos os académicos. Há muitos académicos que consideram que o seu papel é a produção de um conhecimento quase neutro, assético. Há outros que não. Até tens exemplos de professores e de investigadores universitários que também estão envolvidos em movimentos, causas, partidos. Com tudo o que isso tem de bom e de risco. Mas a verdade é que é um risco que me parece que, às vezes, vale a pena correr. Porque quando pões a mão na massa para investigar, para ouvir pessoas, para conhecer problemas e realidades, isso não te pode deixar neutro.
TM. – Vai-te fazer perceber que tens mesmo que tomar uma posição.
FM. – Quando estás à frente de trinta ou quarenta pessoas a trabalhar sobre questões sociais e contemporâneas, não podes fingir que elas não têm importância política. Não podes fingir que é neutro estares a falar sobre envelhecimento como um problema que não é político e que não precisa de respostas políticas. Ou falares de diversidade cultural sem fingir que isso não tem a ver com desigualdades, com discriminação. Por isso pode significar que, quer no teu papel docente, quer até fora da universidade, participando em debates, indo à televisão, escrevendo para jornais ou indo a uma conversa de bairro, comunitária, isso também é contribuir para a transformação social. Essa é a lógica do papel de vanguarda do intelectual.
Outra possibilidade de intervenção é na linha da investigação participativa, do apoio a projetos. Podem ser projetos que estimulem a reflexão crítica das pessoas com quem trabalhas. Sais do paradigma positivista e passas para o paradigma sóciocrítico, que é um trabalho de investigação em que as próprias pessoas têm um papel muito importante, a definir os problemas, a analisá-los e a encontrar respostas. Acho que também aqui há lugar para a transformação social.
AR. – Ainda gostaria de voltar ao exemplo do estágio. Vamos supor um estudante que vai participar nas vindimas no Douro e a quinta é a 20km do Porto. Ele opta por vir para o Porto ao final do dia, toma o seu duche de água quente, vai ao ginásio, dorme confortável e no dia seguinte toma o seu pequeno-almoço e volta para a vindima. Imaginemos outro que opta por ficar na quinta, toma duche de água quente ou fria, dependendo das condições existentes para todos, partilha o chão com os trabalhadores, come o que houver para comer. Fica lá um mês, dois meses, e mexe-se naquele ambiente, com aquelas pessoas e numa realidade completamente diferente. Esse aluno ganha uma visão que lhe permite, de algum modo, sair desta experiência muito mudado, e acabará por mudar um pouco o mundo à volta dele. E o professor pode ter um papel nesse tipo de decisão, ou pode contribuir para isso.
FM. – Em diversas escalas vai-se transformando, desde a transformação pessoal até a um nível mais macro.
S. – Para terminar, como veem o futuro da “extensão” universitária em Portugal?
TM. – É inevitável que esta vertente se fortaleça. Mas uma coisa é certa, não vai acontecer só por decreto.
TG. – E terá de acontecer num processo de construção conjunta. Não são as instituições de ensino superior que sozinhas vão fazer isso. Também há uma grande responsabilidade da sociedade civil.
*Texto publicado originalmente na Revista n.º 6 – Relação entre Ensino Superior e Comunidade(s), janeiro de 2018.
[1] Docente do departamento de biociências do Instituto Politécnico de Beja (IPBeja) com interesse nas áreas: Educação para o desenvolvimento, Educação para a cidadania global, métodos e técnicas que promovam a aprendizagem colaborativa, ARAL- Action Research Action Learning
[2] Antropólogo, docente e investigador de pós-doutoramento em Pedagogia Social no Centro de Estudos em Desenvolvimento Humano da Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica, Porto.
[3] Docente da área científica de Educação e Ciências Sociais do Instituto Politécnico de Viana do Castelo (IPVC) com interesse nas áreas de Sucesso educativo, Educação inclusiva e Educação para a cidadania global.
[4] Docente na Unidade Técnico-Científica de Ciências da Educação da Escola Superior de Educação do Politécnico do Porto, com interesse em temáticas relacionadas com a participação cívica e política, relativamente a temáticas diversas e considerando um espectro amplo de grupos etários.
[5] Membro da equipa do CIDAC – Centro de Intervenção para o Desenvolvimento Amílcar Cabral.
[6] Investigadora e técnica de projetos de Educação para o Desenvolvimento no Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto (CEAUP) e na Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Viana do Castelo (GEED/ESE-IPVC).