Sandra Oliveira 1

Neste mundo acelerado e polarizado, uma questão tão velha quanto nós, humanos: a tecnologia vai ajudar-nos ou vai destruir-nos? Vai facilitar uma sociedade mais justa e de bem-estar ou vai continuar a polarizar e separar comunidades? Vai envolver ou afastar cidadãos? Procurámos trazer para debate as principais questões à volta da comunicação e da participação cívica.

Introdução

A análise dos desafios que se colocam hoje às sociedades humanas é complexa. A globalização e o desenvolvimento tecnológico abriram oportunidades enormes para o chamado ‘desenvolvimento humano’ e a construção de uma sociedade do bem-estar. Mas, em contrapartida, às desigualdades da estrutura económica entre países, regiões ou mesmo dentro das mesmas sociedades, juntam-se conflitos, alterações climáticas e crescentes movimentos migratórios – tudo isto é espelhado de forma polarizada nos média, nestas formas hibridizadas e em acelerada mutação com que comunicamos hoje.

É um teste à coesão social e ao trabalho em prol do bem comum, num tempo que, marcado pelo aumento da abstenção nas eleições e o desinteresse pela estrutura partidária tradicional, parece indicar que os cidadãos se sentem cada vez mais desligados da estrutura governativa e política. Fenómenos como a desinformação e as fake news misturam-se num espaço público carregado de comunicação violenta e com formas de desacreditação como o doxing ou o gaslinghting (assédio e descrédito online) – estratégia bem conhecida por regimes autoritários como forma de desacreditar a oposição – que é hoje usada por média de extrema direita em várias democracias Europeias.

Tudo isto se joga na mesa da chamada Literacia para os Média, que tomamos aqui como as novas formas de descodificar o mundo mediatizado em que vivemos, numa abordagem muito holística que toca, por exemplo, uma literacia para a participação democrática no espaço público. E este é um desafio que se coloca às políticas públicas, reguladores e governantes.

Como regular a tecnologia e usá-la para as finalidades fabulosas que se desenham, como no uso da inteligência artificial para formas de governação mais inteligentes e responsivas às necessidades dos cidadãos? Como apoiar os cidadãos para exercerem uma cidadania mais ativa, consciente, global?

Muito questionamento será apresentado nas páginas seguintes, incluindo alguma discussão sobre o potencial da tecnologia e os média cívicos 2 – não apenas no campo da regulação mas igualmente da educação para uma cidadania global.

Um hashtag não é um movimento social

No ciclo de tertúlias ‘A Cidade convida ao diálogo’ que o Orçamento Participativo da Câmara Municipal de Lisboa promoveu, a sessão com o tema ‘Qual a contribuição da tecnologia no exercício da democracia?’ levou a uma discussão interessante pois toca numa das questões que mais tem ocupado a área de projetos de cidadania e participação que coordeno na 4Change.

O foco interno deste trabalho como ONG tem permitido algo um pouco mais aprofundado: realizar investigação-ação na área do envolvimento de jovens cidadãos, da Educação para a Cidadania Global e do uso de ferramentas da Literacia para os Média e novas literacias – que mais não são que abordagens mais holísticas de uma literacia democrática. Holísticas aqui significa que incluem o uso de ferramentas, analógicas (como as metodologias não-formais e participativas) ou as digitais (como a produção audiovisual), que permitem incentivar a participação dos cidadãos na vida, na comunidade, no mundo.

No debate, decidi focar-me em centrar a conversa no factor chave crucial da discussão sobre tecnologia – que em qualquer época de acelerada inovação sempre suscitou muita especulação, paixão, polarização entre quem se proclama do lado dos ‘conservadorismos’ vs. ‘progressos’: é essencial não perder de vista o elemento humano, o lado analógico e basilar para uma sociedade democrática, seja ela 2.0 ou 5.0.

As TIC, as possibilidades da Inteligência Artificial e dos média digitais neste ecossistema globalizado de hoje, mexem com a ideia de uma dimensão supra-humana ou de uma vida humana muito próxima do que a imaginação de MacLuhan 3 descrevia como mediatizada por extensões tecnológicas do corpo humano – mas este domínio de tecnologias que as novas gerações facilmente alcançam, não é muitas vezes o mais importante. Eric Gordon 4 contextualiza: “Estas transformações tecnológicas são importantes mas não vão ao cerne da questão: na base de cada nova ferramenta ou tecnologia está uma série de decisões e negociações que levaram à sua invenção ou adoção. Eficiência optimizada nem sempre é o mais desejável quando a prioridade é assegurar que a voz de uma comunidade é escutada; que um processo é justo ou que os mais vulneráveis conseguem exprimir-se. Tornar claros os valores que presidem à inovação tecnológica é essencial para compreender a transformação cívica contemporânea. A Ciência de dados e as tecnologias smart são apenas parte da história.”

Isto conjuga-se com a resposta que daria à questão no debate do Orçamento Participativo de Lisboa: a Literacia para os Média tornou-se uma caixa de ferramentas essencial para garantir a participação cidadã em democracia e o elemento humano não pode ser perdido de vista. Aprender novas literacias e linguagens – como a da imagem vídeo ou da produção dos média digitais lado a lado com o controlo de casas inteligentes ou outras extensões tecnológicas – é essencial. Mas será suficiente? Se as novas ferramentas essenciais para envolver um cidadão ou uma cidadã forem apenas a app de nova geração ou a gamificação de qualquer atividade humana, como poderão os cidadãos descodificar o ecossistema mediático em que vivemos imersos, processar o tsunami de informação que recebemos – ou onde ganharão as competências para usar as ferramentas de uma democracia baseada em formas digitais? A responder em parte a esta dificuldade estão os chamados ‘média cívicos’, que incluem não apenas o interface tecnológico mas a estruturação, desenho e uso da tecnologia tomando como guia os valores como a acessibilidade e a inclusão – os Civic media que dão nome ao centro de investigação de Eric Gordon e Paul Mihailidis em Boston.

Mas como chama a atenção Danah Boyd, no artigo controverso e brilhante que arrastou a polémica no ano passado, a Literacia para os Média não é uma solução mágica, até porque apoiar e capacitar as novas literacias é diferente das práticas muito rudimentares de educação para os média existentes nas escolas hoje. Tal como é diferente das iniciativas políticas que pretendem tratar fenómenos e sintomas como as fake news ou o discurso de ódio online com medidas superficiais e ineficazes como as que vimos no início de 2019 multiplicarem-se em Portugal e sem grande seguimento concreto até esta data 6.

A Literacia para os Média, quando meramente reduzida a uma descodificação da informação recebida, uma check list prescritiva ou um conjunto de técnicas para dominar as últimas novidades tecnológicas, torna-se o que Zoë Druick 7 considera uma mera “‘tool competence’, an uncritical notion of technology as merely knobs and levers” (Hobbs, 1998; Hobbs & Jensen, 2009). Ninguém consegue analisar o mundo de forma perfeita e omnisciente e muito menos seguindo livros de instruções para descodificar os meios de comunicação. Talvez seja melhor apoiar uma navegação segura e consciente num mundo em complexa transformação tecnológica? É mais uma questão pertinente para quem trabalha ou investiga na área da Educação para a Cidadania Global e da Literacia para os Média.

Esta questão liga-se, curiosamente, com o que aponta Nanjala Nyabola na sua investigação sobre as eleições de 2017 no Quénia 8: “um hashtag não é um movimento social, não mais do que um lápis o era antes da era digital: um movimento online sem uma expressão analógica pode resumir-se apenas a… barulho!”

Parece sentir-se no ‘ar dos tempos’ uma grande desorientação sobre o que fazer com a tecnologia e os novos média, as redes sociais ou toda a inovação digital – este deslumbre, o ‘olhar fixo no ecrã’ que se multiplica à nossa volta, parecem perder de vista o elemento humano e relacional. Isto pode ser pressentido na desorientação de políticas sociais e de educação (como as medidas avulsas citadas acima, ineficazes contra as notícias falsas, que são apenas um dos sintomas do problema) ou nas estratégias de regulação dos média e as práticas políticas que toquem no cerne dos desafios que se nos colocam. Apontamos apenas um facto revelador: em 2019, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) ainda não aplica a sua atividade reguladora à internet ou meios digitais híbridos, mas apenas aos chamados meios de comunicação clássicos como a televisão, rádio e jornais.

Este exemplo da ERC, de uma instituição que não consegue acompanhar a evolução dos média que deveria regular, parece ser um sintoma de que vivemos uma mudança acelerada de paradigma, onde não se vislumbra uma estabilização das novas formas de comunicação e descodificação do mundo. Será a instabilidade e mutação dos média uma nova forma de comunicar?’ – talvez, isso tem consequências profundas na maneira como olhamos o mundo.

Democracias digitais, políticas analógicas e o preço de fomentar a descrença

As fake news (bem classificadas pela ERC 9 como desinformação, as no news) não são para Najala Nyabola mais do que sintomas de um ecossistema político populista que cada vez mais parece assentar nos mecanismos do rumor, do boato, da fraqueza humana. São as ferramentas digitais a serem usadas para nivelar por baixo, esquecendo as potencialidades de aproximação, diálogo e participação que podem trazer.

A realidade descrita por Najala Nyabola – assente na análise das últimas eleições nos Quénia – tem muitos pontos de contacto com a realidade política europeia, onde líderes populistas ‘cavalgam’ as redes sociais e dinâmicos fenómenos de propaganda lembram a agit prop soviético. A desregulação legal e mediática, o mercado comercial dos média que cria ‘desertos digitais’ 10 onde os média tradicionais fecham por não realizarem lucro, os hábitos de consumo intensivo criados pelos novos média digitais… são muitos os fatores que criam oportunidades para quem tem objetivos claros, sejam eles de ganhos económicos ou políticos.

Quando os piratas se tornam CEOs – é o interessante texto em que a investigadora e ‘tecno-guru’ de origem turca, Zeynep Tufekci reflete sobre a atual paisagem do que chama de ‘esfera pública digitalmente ligada’ ou os média à escala do globo 11. Zeynep descreve a mudança de uma esfera de comunicação moldada pelos média de massas clássicos – a TV, os jornais, a rádio – em que o acesso era reservado a muito poucas pessoas (gatekeepers ou literalmente, ‘porteiros’), para um acesso (quase) livre, descentralizado e uma possibilidade ilimitada de ligação e comunicação entre cidadãos numa paisagem mediática digital liberalizada.

Mas este acesso democrático e generalizado aos meios digitais que o desenvolvimento da invenção da internet, por Tim Berners-Lee, permitiu, criando uma inspiradora utopia de ligação global e democrática, está a dar lugar ao que Zeynep chama de um acesso gerido por plataformas digitais financiadas por anúncios, um mercado económico da informação. Considera Tufekci que os algoritmos que gerem as redes digitais produzem ‘invisibilidades e assimetrias de informação e opacidade’ na governação dos média e, por inerência ao poder exercido pelos novos média, na própria governação das sociedades democráticas.

É igualmente esta a visão meio otimista e meio apocalíptica do filósofo da globalização digital Evgeni Morozov 12: estarão a vender-nos ‘gato por lebre’? Ou seja, em vez das potencialidades maravilhosas que a inteligência artificial e a ciência de dados podem trazer para a transparência e eficácia das nossas democracias, vemo-nos reduzidos a consumidores – afirmava o autor num webinar recente promovido pela Fundação Bosch sobre as ameaças e as oportunidades da Ciência de Dados 13. Shoshana Zuboff 14 ironiza que “Steve Jobs prometeu-nos computadores como ‘bicicletas para o cérebro’; mas o que recebemos são apenas linhas de montagem para o espírito!”

Morozov considera que os Big Data ou a imensidão de dados que as ferramentas digitais produzem, fazem parte do património humano e deviam ser regulados e protegidos como ‘património da humanidade’ mas estão na mão de uma meia-dúzia de empresas, os gigantes tecnológicos como a Google ou a Huawei, como sumarizou no webinar. E isto criou um problema de governação à escala global, que não tem comparação na história humana para servir de referência. A inteligência artificial, a ‘internet das coisas’, os muitos usos tecnológicos da ciência de dados em áreas como a saúde e o poder de agência dos algoritmos em tantas áreas do nosso quotidiano, fazem com que tanto Morozov como Tufekci alertem para a necessidade de abrir um debate público e exigir participação cidadã para as novas formas de governação necessárias para lidar com estas questões.

Ao mesmo tempo, esta realidade provoca anticorpos nos cidadãos, nas novas gerações, nos novos ativistas e acentua uma descrença generalizada, um cinismo face às instituições. Tufekci aponta que encontrou uma relutância em tratar das questões governativas clássicas num ambiente tão carregado de cidadãos interessados como na Tahrir Square (Tufekci & Wilson, 2012) ou em Gezi Park (Tufekci, 2013): “Estas novas ferramentas que mais que nunca tornam possível a expressão individual, tornam mais difícil às instituições representarem tantas vozes dissonantes e diferenciadas? (…) as novas tecnologias alimentam uma nova política, num mundo em transição onde as velhas formas de governança ainda mandam no mundo – enquanto os novos cidadãos as desafiam, desencantados mas também empoderados” 15.

Ainda no polémico artigo citado, Danah Boyd chama a atenção de como o equívoco de servir a Literacia para os Média e o espírito crítico como panaceia global pode na verdade ser contraproducente por criar anticorpos contra as instituições como os média, por alimentar teorias da conspiração, por igualmente poder desacreditar factos, evidências e ciência. Todavia, o que nos interessa aqui não é “uma rebelião contra os média. Alimentar uma atitude niilista ou a maledicência de café não é o objetivo da Literacia para os Média: quando alguém afirma que ‘os jornalistas são todos mentirosos’ ou que ‘não leio jornais porque não acredito em nada do que escrevem’ não está a ter uma atitude proativa nem a aprender a ‘navegar’ nos e com os média. A Literacia para os Média surge no contexto de usufruto pleno das potencialidades dos média como veículo de informação, distração, entretenimento e, até, educação” 16.

Paradoxalmente, os dados citados por Danah Boyd afirmam que, quanto mais os cidadãos usam as plataformas digitais para comunicar, menos confiam nos conteúdos que veem e as apps de mensagens como o Whatsapp substituem cada vez mais, e de uma forma opaca (tornando possível a rápida propagação de notícias falsas ou desinformação sem qualquer tipo de moderação ou enquadramento, o puro mecanismo do rumor ou boato tornado digital), os meios de comunicação clássicos 17.

A tudo isto junta-se uma rápida deterioração do panorama jornalístico submetido às flutuantes regras do mercado; uma cada vez mais curta capacidade de atenção 18; um sistema educativo baseado na alfabetização clássica que parece tornar-se ineficaz para os chamados ‘nativos digitais’; a ascensão ou reforço de governos autoritários por todo o mundo e a relativização de valores como a democracia ou os direitos humanos no discurso dos líderes de democracias ocidentais, como são os Estados Unidos.

Qual é o potencial desta situação estar a levar a uma crise de confiança e de coesão social – uma polarização das sociedades, um agudizar dos problemas da participação política nas democracias? A escola de verão 2019 Salzburg Academy on Media & Global Change foi dedicado a este tema da crise de confiança: “O Custo do Descrédito – sociedades em fragmentação e a erosão da confiança” 19.

O tema não é novo mas agudizou-se desde as eleições presidenciais dos EUA, em 2017. Já no início do novo milénio o barómetro de confiança Edelman 20 indicava que a confiança nas instituições e governos era a mais baixa de sempre, mas desde a crise financeira de 2008 caiu a pique, arrastando também a confiança nos média para a mais baixa de sempre. A introdução em Salzburgo, por Paul Mihailidis, focou os trabalhos e discussões da Academia nas “plataformas tecnológicas que acentuam e perpetuam as divisões ideológicas entre comunidades” 21, chamando a atenção para as ‘arquiteturas fragmentadas dos média” que marcam o espaço público, político e jornalístico hoje.

Parecemos estar todos nós, cidadãos, à mercê de quem queira tirar vantagem desta fragmentação, destas estruturas quebradas que parecem caracterizar uma mudança de paradigma nos média, no espaço público e político – a forma populista de fazer política hoje aproveita estas brechas, alimentando polarizações e criando uma fratura na confiança – na ciência, no que é um facto, mas fundamentalmente na coesão social e cívica das nossas democracias. “Os nossos ecossistemas digitais estão no centro desta fratura”, aponta Paul Mihailidis. Os custos desta desconfiança serão lastro e criarão obstáculos para a construção de uma sociedade melhor, de comunidades mais solidárias e de uma cidadania global?

Como facilitadores, praticantes e investigadores de uma Educação para a Cidadania Global 22 queremos acreditar que a chave continua a estar na educação e na transformação social: na abertura do sistema político dada não pela tecnologia mas pelo uso que dela se faz para criar verdadeiros mecanismos de escuta do cidadão. Esta crença está em sintonia com o foco da Academia de Salzburgo: não na inovação tecnológica per se mas em trazer criativos, fazedores de média, contadores de histórias digitais, facilitadores que imaginem “futuros especulativos focados em novas infraestruturas dos média que possam renovar a confiança, re-imaginar o envolvimento de comunidades e inspirar novas normas para as plataformas de média” 23, em suma, que apoiem o envolvimento e participação reais dos cidadãos na vida quotidiana das sociedades.

Neste sentido, quaisquer ferramentas, sejam os sistemas complexos de votação multi-meios dos orçamentos participativos ou um aplicativo ou uma plataforma digital para recolher opiniões dos cidadãos em tempo real, têm não apenas de usar mecanismos de ‘facilitação’ da participação para chegar mais diretamente aos cidadãos, mas necessitam igualmente de criar e manter espaços de diálogo, manter a interação e estarem prontas para permitir e para gerir a apropriação pelos cidadãos. E, claro, vigiar e gerir a governação e intervir no desenho, na base da conceção da tecnologia, para que os novos media possam realmente ser os ‘média cívicos’ (civic media) de que Paul Mihailidis e Eric Gordon falam.

Eric Gordon indica 24 claramente modos de avaliação das ferramentas de participação cívica e igualmente dos fatores que têm de fazer parte do processo de desenho, conceção e implementação destes chamados civic media: a ‘construção da rede’, o ‘manter e criar de espaço de discussão’, a ‘distribuição do poder/apropriação’ e uma ‘retroação permanente’. Só levando a sério estes fatores e integrando-os na construção de qualquer inovação tecnológica que se apresente como ferramenta de governação em democracia, podemos falar de verdadeiros instrumentos da democracia.

Aqui, como no estudo de David Buckingham sobre a participação cívica dos jovens e as ferramentas digitais 25, não basta inventar um novo mecanismo e depois criticar os cidadãos se não participarem – é preciso que os mecanismos de democracia direta sejam efetivos, escutem a realidade dos cidadãos, apostem mais no lado humano. Desde a invenção da roda que a tecnologia nunca bastou. A solução para gerir a tecnologia nunca foi menos humanidade, só pode ser mais humanismo.

Gerir a transformação através da cidadania global

Que soluções e recomendações finais para o impasse, aceleração e paradoxo onde estamos hoje? Para uma primeira ideia-chave, voltamos ao início deste texto: o mundo é complexo, a análise dos média e da forma como comunicamos não é simples, as soluções não são binárias. A tecnologia não vai salvar a democracia – mas também não vai acabar com ela. Mas se há algo essencial, é promover esta Educação para a Cidadania Global que “pretende ser transformativa, envolvendo os alunos na construção de conhecimentos, capacidades, atitudes e valores basilares para a promoção do respeito pelos direitos humanos, justiça social, paz, diversidade, igualdade de género e sustentabilidade ambiental” 26. Olhamos por isso para a necessidade de formar cidadãos, mas também as classes dirigentes, os cientistas, os técnicos e facilitadores desta educação para a cidadania que tem de ser global, neste mundo em que tudo cada vez mais é ligado, esquadrinhado, revolvido.

Como segunda ideia-chave fica a convicção de que é necessário mais, não menos, elemento humano. Só com mais regulação, mais intervenção, mas também mais abertura, mais escuta, pode ser encontrado um terreno comum, fomentado o diálogo, feitas as trocas locais e estabelecidas as ligações – a dimensão humana numa comunidade global. Muitos são os atores que procuram contribuir para encontrar uma forma de ligação e comunicação mais humanas e centradas em valores democráticos e nos direitos humanos.

Para finalizar, e como terceira ideia-chave, ficam os cinco princípios que Eric Gordon, Paul Mihailidis e a sua equipa de investigação afinaram: uma ética de relacionamento com os outros no mundo; uma consciência crítica; a imaginação para pensar alternativas; a persistência no ecossistema mediático acelerado de hoje e a emancipação.

Estas recomendações nasceram do projeto do Emerson College de trabalhar as novas tecnologias usando a criatividade máxima e uma ética transversal para desenhar ‘médias cívicos’ efetivos e eficazes. Como as respostas das instituições à falta de confiança e ao descrédito dos cidadãos passam muitas vezes por investimentos em mais tecnologia, com melhores algoritmos, com novas ferramentas digitais – “from reporting platforms to data visualization tools, technology is embraced as a solution to organizational deficits” 27 – é preciso que esse investimento seja eficaz.

Paul Mihailidis traz para a mesa esta Literacia para os Média com intencionalidade 28, uma ‘literacia cívica para os média’ para responder ao problema de confiança e de descrédito: assente em valores, em trabalho colaborativo, em envolvimento criativo das comunidades 29, indo beber a Paulo Freire e à Educação Popular, toca os pontos basilares de uma Educação para a Cidadania Global. Identificamo-nos com estas cinco recomendações porque vemos a Literacia para os Média já como uma literacia democrática e da agência de um cidadão global.

Por último, partilho três exemplos concretos, de ações que decorrem, para além dos centros de investigação já citados: primeiro, as iniciativas ligadas ao jornalismo e cidadania para contrariar os chamados de ‘desertos de informação’ e que podem ser sementes para uma refundação do dos média e do jornalismo como valor comunitário e solidário 30; segundo, um projeto como o ‘Finding Common Ground’ que junta órgãos de comunicação e jornalistas da Europa e Estados Unidos a investigadores e facilitadores para pesquisarem “novas formas de diálogo que ultrapassem a polarização social, estimulem a partilha dentro das comunidades locais e reforcem a confiança nos média (projeto apoiado pela Fundação Bosch e a News Integrity Initiative) 31; em terceiro, o trabalho da 4Change. Na nossa organização também acreditamos no potencial de novas formas colaborativas de trabalhar iniciativas cívicas e juntámo-nos à Fundação Cromo da Hungria como parceiros do projeto piloto, apoiado pela Fundação Bosch, que investiga o potencial de comunidades online para se tornarem iniciativas cívicas e vice-versa: como as organizações não governamentais usam os meios digitais e analógicos para fortalecer a sua base social ou apoiar movimentos sociais de base, fora da lógica do ciclo de projeto; ou como comunidades espontâneas se organizam e/ou se tornam instituições. Em dezembro de 2019 teremos os primeiros resultados desta procura de fatores de sucesso, através de estudos de caso nacionais ligados a movimentos sociais de base.

 


[1] Membro fundador da 4Change, onde desenvolve projetos na área da literacia para os média, integra também a equipa de apoio ao programa DEAR – Development Education and Awareness Raising da Comissão Europeia.

[2] O termo ‘média cívicos’ foi cunhado por Henry Jenkins como “qualquer uso ou meio que apoia ou alimenta o envolvimento cívico” (http://henryjenkins.org/blog/2011/10/what_is_civic_media_revisited.html) – mas Eric Gordon e Paul Mihailidis chamaram Civic Media a “qualquer prática de mediatização que permite a uma comunidade imaginar-se ligada, não para alcançar algo mas pela ideia de agir em prol do bem comum” – in Civic Media – Technology, Design, Practice (2019), coord. Gordon, E. e Mihailidis, P., Cambridge, Cambridge, Massachusetts: The MIT Press.

[3] Escutar Marshall McLuhan em várias peças áudio em http://www.marshallmcluhanspeaks.com/index.html.

[4] Gordon, E. & Mugar, G. (2018). CIVIC MEDIA PRACTICE – Identification and Evaluation of Media and Technology That Facilitates Democratic Process, No. 01, Boston: Emerson College.

[5] Artigo de Dana Boyd e resposta à polémica lançada com o título provocador e, aparentemente, anti-literacia para os Média https://points.datasociety.net/you-think-you-want-media-literacy-do-you-7cad6af18ec2.

[7] Druick, Z (2016). The Myth of Media Literacy. The International Journal of Communication, 10, consultado em https://ijoc.org/index.php/ijoc em 30/7/2019.

[8] “A hashtag is no more a movement than a pencil was prior to the digital age; an online movement without an offline component can often stop at just noise”, citação retirada da recensão crítica do livro ‘Digital Democracy, Analogue Politics’ publicada no Blogue da London School of Economics. 20/5/2019.

[9] http://www.erc.pt/pt/noticias/vice-presidente-da-erc-apresenta-no-parlamento-o-estudo-a-desinformacao-contexto-europeu-e-nacional, consultada em 31/07/19.

[10] Os chamados ‘desertos digitais’ são comunidades inteiras que não recebem informação ou têm acesso facilitado à internet (como no Brasil, onde quase um terço das cidades não têm qualquer média local – em https://knightcenter.utexas.edu/blog/00-20370-almost-third-brazilian-cities-are-danger-become-news-deserts-according-new-survey).

[11] Tufekci, Z. (2016). As the Pirates Become CEOs: The Closing of the Open Internet. Daedalus, 145(1), 65–78. http://doi.org/10.1162/DAED_a_00366.

[12] Ver um exemplo da perspetiva de Evgeni Morozov na crónica para o jornal The Guardian: https://www.theguardian.com/commentisfree/2019/feb/27/left-radical-big-tech-moderate-solutions

[13] Webinar de 27 de Março 2019 em https://www.boschalumni.net/networks/events/15746 com o tema “The big tech giants as the new governments: What is the impact of big data?”

[14] Na entrada do blogue https://shoshanazuboff.com/, consultado em 20/07/19.

[15] Tufekci, Z. (2014), Algorithmic Harms beyond Facebook and Google: Emergent Challenges of Computational Agency. Journal on Telecommunication & High Technology Law, Colorado:  JTHTL [PP.203].

[16] Oliveira, S. (2017). Literacia para os Média e Cidadania Global: caixa de ferramentas”, Lisboa: projeto ‘Acima da Média’, pp. 22.

[17] A Reuters e o Oxford 2018 Digital News Report indicam que o “WhatsApp is now used for news by around half of our sample of online users in Malaysia (54%) and Brazil (48%) and by around third in Spain (36%) and Turkey (30%).” – ver http://www.digitalnewsreport.org/survey/2018/overview-key-findings-2018/.

[19] “The Cost of Disbelief – Fracturing Societies and the Erosion of Trust” foi o tema da SAC13: programa e atas podem ser consultadas em https://www.salzburgglobal.org/justice/2010-2019/2019/sac-13.html.

[20] Ver artigo de Uri Friedman Trust is collapsing America, sobre a crise de confiança nas instituições na Revista The Atlantic, de Janeiro 2018 – https://www.theatlantic.com/international/archive/2018/01/trust-trump-america-world/550964/ consultada a 13/07/2019.

[21] Na nota conceptual da Academia de Salsburgo, “The Cost of Disbelief – Fracturing Societies and the Erosion of Trust” Paul Mihailidis e Megan centra logo na página 1 o foco “on how platform technologies perpetuate ideological divides among communities. Globally, journalism and public information exist across broken media architectures. Citizens are at the mercy of those eager to take advantage of platform infrastructures in which access, quality and diversity varies so wildly. Increasingly, politicians are taking advantage of these platform architectures to position people against one another. The result is a fracturing of belief, where truths splinter and trust erodes. Our digital environments are at the center of this fracturing, and our social and civic cohesion is at risk.”

[22] Como definida pela UNESCO (2015).  Global Citizenship Education: Topics and learning Objectives. Paris: UNESCO. Disponível em http://unesdoc.unesco.org/images/0023/002329/232993e.pdf, consultada em 13/07/2019.

[23] Nota conceptual da Academia de Salsburgo: “bringing together emerging media makers and storytellers to create speculative futures focused on media infrastructures that can renew trust, re-imagine community engagement, and inspire new norms for media platforms that support meaningful engagement  in daily life.”

[24] In Gordon, E. & Mugar, G. (2018). CIVIC MEDIA PRACTICE – Identification and Evaluation of Media and Technology That Facilitates Democratic Process, No. 01, Boston: Emerson College – “a method of process evaluation that allows practitioners to measure their progress along two central axes: social infrastructure and objective. Civic media practice is always striving towards strong social infrastructure and longevity. As a means of measuring progress along these axes, we identify four activities that can be tracked”.

[25] Banaji, S. & Buckingham, D. (2010). Young People, the Internet, and Civic Participation: An Overview of Key Findings from the CivicWeb Project. International Journal of Learning and Media, Capítulo 2(1).

[26] Em UNESCO (2015).  Global Citizenship Education: Topics and learning Objectives. Paris: UNESCO. Disponível em http://unesdoc.unesco.org/images/0023/002329/232993e.pdf, consultado em 30/07/2019.

[27] Gordon, E.& Mugar, G. (2018). CIVIC MEDIA PRACTICE – Identification and Evaluation of Media and Technology That Facilitates Democratic Process, No. 01, Boston: Emerson College.

[28] No artigo de Mihailidis, P. (2018). International Journal of Learning and Media, vol.1, Nr.3, Massachusetts: The MIT Press. https://www.academia.edu/5537084/Beyond_Cynicism_How_Media_Literacy_Can_Make_Students_more_Engaged_Citizens?email_work_card=view-paper; e na apresentação https://docs.google.com/presentation/d/161ZIulvDBjIGq9gI7NNhq_5VIqHBfUy_sGCULzfJl6Q/edit#slide=id.g4e37bdd17b_0_54, ambos consultados a 30/07/2019.

[29] Ver o trabalho por exemplo de Sangita Sheresthova, que investiga novos métodos de facilitar o diálogo intercultural e dirige atualmente o projecto de investigação ‘@CivicPaths’, na Universidade do Sul da Califórnia. O projeto dá corpo ao conceito de ‘Civic Imagination/imaginação cívica’ ou como ‘imaginar uma visão coletiva para um futuro melhor’ para apoiar comunidades diversas a canalizar a sua energia coletiva em prol de uma mudança real no mundo.

[30] Tufekci, Z. (2014). The Medium and the Movement: Digital Tools, Social Movement Politics, and the End of the Free Rider Problem, Policy & Internet, Vol. 6, Issue 2, pages 202–208.

[31] Mais informações sobre o projeto da Agora Journalism Center for Innovation and Civic Engagement da Universidade de Oregon em https://www.bosch-stiftung.de/en/project/finding-common-ground/details.

 

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