Se, na verdade, não estou no mundo para simplesmente a ele me adaptar, mas para transformá-lo; se não é possível mudá-lo sem um certo sonho ou projeto de mundo, devo usar toda possibilidade que tenha para não apenas falar de minha utopia, mas para participar de práticas com ela coerentes. Me parece fundamental sublinhar, no horizonte da compreensão que tenho do ser humano como presença no mundo, que mulheres e homens somos muito mais do que seres adaptáveis às condições objetivas em que nos achamos (Freire, P. 2000:33).
Celebra-se este ano o centenário do nascimento de Paulo Freire, um dos pedagogos que mais tem inspirado educadores e educadoras por todo o mundo. A afirmação de que toda a educação é política e de que os processos educativos não devem perder de vista os contextos em que as pessoas vivem, foram dois postulados fundamentais de Paulo Freire. Deste modo, chamou para a educação a reivindicação da transformação social, sempre com o envolvimento daqueles e daquelas que são os e as protagonistas das suas próprias realidades. O desenvolvimento da capacidade e atitude crítica através da educação, a qual nos permite refletir e agir sobre o nosso próprio mundo, é uma das heranças de Paulo Freire que temos procurado pôr em prática através da revista Sinergias.
Neste número da revista Sinergias, queremos celebrar Paulo Freire, o seu legado e as aprendizagens que continuam até hoje a inspirar educadores e educadoras de todo o mundo, com um compromisso com a Educação para o Desenvolvimento, a Educação para a Cidadania Global e/ou a Educação para a Transformação Social.
Este número 13 da revista torna evidente que (re)ler Paulo Freire é estabelecer diálogos, sempre novos, com as problemáticas do mundo de hoje. Negar a desproblematização do futuro, é prescindir do sonho, da utopia e da esperança… O futuro não nos faz, somos nós que nos refazemos na luta para transformá-lo [1].
Celebremos! E que nesta celebração sejamos, também, expressão viva de Paulo Freire: “Que a leitura do mundo preceda [sempre] a leitura da palavra” (p.9) [2].
Procurámos receber contributos individuais e/ou coletivos, com características e configurações distintas, desde artigos resultantes de trabalhos de investigação a reflexões teóricas ou relatos sobre práticas ou experiências que, de algum modo, refletissem os contributos da pedagogia freiriana para a educação na atualidade.
O Caderno Temático deste número abre com o artigo Freire: O/Um educador social rebelde de Ivaneide Mendes, no qual se reflete sobre os princípios de uma educação que se quer política, ética e estética, que promove novas relações sociais e que tem como fundamento capacitar os sujeitos para a criação de alternativas às realidades socialmente injustas. Neste caminho, a autora revisita conceitos-chave da obra de Freire que norteiam a formação de educadores/as sociais.
No artigo de Andrea Bullivant, From Freire’s Theory to Knowing Practice, é explorada a relação entre o pensamento de Paulo Freire, a Educação para o Desenvolvimento e Aprendizagem Global e a teorização da prática, apoiando-se na investigação e na perspetiva da prática desenvolvida pelos Centros de Educação para o Desenvolvimento e Aprendizagem Global em Inglaterra. Destaca-se, ao longo do artigo, a reflexão sobre a relação entre a teoria e a prática, a forma como os/as profissionais traduzem as ideias de Freire na e através da prática.
Giannis S. Efthymiou e Maayke de Vries, apresentam-nos o artigo Teachers reflecting on teaching global issues: “Because I’m also part of the problem”. Com este artigo pretendem advogar o papel dos/as professores/as enquanto agentes de mudança, apresentando um estudo piloto no qual, através de uma metodologia de investigação-ação/participação, se acede às conceções dos/as professores/as sobre a aprendizagem da transformação social num mundo globalizado. A filosofia de Paulo Freire aparece como fundamento teórico e metodológico de todo o trabalho desenvolvido.
Através do artigo Paulo Freire na Guiné-Bissau: um olhar sobre a Escola de Formação de Professores Combatentes da Liberdade da Pátria – Centro Máximo Gorki, Antónia Barreto e Clara Carvalho recordam o papel de Paulo Freire na criação dos quatro Centros de Educação Popular Integrada (C.E.P.I) na Guiné-Bissau entre 1977 e 1982, cuja finalidade foi acelerar, através de uma escolarização adaptada à diversidade cultural deste país, o processo de desenvolvimento das comunidades e, através destas, da Nação.
O artigo de Valéria Araújo Sousa, Educação para o Desenvolvimento Sustentável: saberes e fazeres na pré-escola – um olhar freiriano, apresenta uma revisão da obra “Pedagogia da Autonomia – saberes necessários à prática
educativa”, procurando construir uma (re)leitura desta, destacando os saberes essenciais a uma prática pedagógica fortalecedora da Educação para o Desenvolvimento.
Monique Leivas Vargas e Alejandra Boni Aristizábal escrevem o artigo Educación liberadora: opresiones y capacidades para la liberación epistémica en la educación superior e, através dele, exploram a experiência da “Aprendizagem em Ação”, uma inovação educativa que faz parte do currículo do Mestrado em Cooperação para o Desenvolvimento da Universidade Politécnica de Valência (Espanha). Esta iniciativa, que já leva cinco anos de experiência, tem como principal finalidade implementar a perspetiva da educação libertadora, proposta por Paulo Freire.
Segue-se a secção de Práticas, na qual o Programa de Mobilidade Académica Paulo Freire: um desafio ibero-americano, da responsabilidade da Organização de Estados Ibero-americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura (OEI), é apresentado por Ana Paula Laborinho e Ana Ribeiro Alves.
Procurando valorizar outras linguagens, apresentamos o poema DevCo da autoria de Lucas Novais aka Professor Phil, que nasceu de um olhar crítico sobre o Desenvolvimento. A par do poema, apresentamos Carta a Paulo Freire por Ocasião de seu Centenário ou A Hidra das Sete Cabeças de Tania Ramalho. Juntos compõem a secção Debate.
Na Entrevista poderá ver e ouvir o diálogo entre Jorge Cardoso, José Nunes, Luísa Teotónio Pereira, Miguel Filipe Silva, Oscar Jara e Tania Ramalho, membros do Coletivo Sinérgico Internacional e da Comunidade Sinergias ED. Dois eixos estruturam este espaço de diálogo, ambos à luz da inspiração de Paulo Freire: a relação universidade-sociedade e a relação Europa-África-América Latina.
O Documento-chave apresentado é o relatório Reimagining our futures together: A new social contract for education, da responsabilidade da UNESCO, para o qual a Comunidade Sinergias ED reuniu contributos que emergiram de um espaço de reflexão coletiva facilitado no quadro da iniciativa global Futuros da Educação: Aprender a Transformar-se, que teve como objetivo reexaminar e repensar a maneira como a educação e o conhecimento podem contribuir para o bem comum mundial.
Segue-se a Recensão Crítica, realizada por Teresa Martins, ao filme Prazer Camaradas!, de José Filipe Costa, que nos transporta para processos de educação popular que decorreram em Portugal nos anos 70.
Na secção Publicações Recentes, damos a conhecer nove publicações de diferentes áreas temáticas e formatos: três recursos pedagógicos, um dicionário, duas séries de podcast, uma série de três vídeos animados, uma sistematização de aprendizagens e uma compilação de ensaios escritos e visuais. Estas publicações foram elaboradas por Organizações da Sociedade Civil e Instituições de Ensino Superior.
Ao encerrar este número 13 da Revista Sinergias, contamos com a habitual seção Resumo de Teses onde se divulgam duas dissertações de Mestrado e três de Doutoramento na área da ED/ECG.
Por fim, gostaríamos ainda de partilhar que a Comunidade Sinergias ED, nomeadamente o Grupo de Trabalho Colaborativo dedicado especificamente à Revista, tem vindo a refletir sobre várias questões levantadas nos últimos anos sobre o conhecimento e os seus processos de produção, validação e disseminação. Nesse processo, têm sido identificados diversos pontos de reflexão, dois dos quais originaram mudanças integradas já neste número da revista.
Por um lado, e como poderão verificar, este número da revista integra linguagens pouco presentes em publicações científicas – um poema, uma carta e um vídeo – que, acreditamos, enriquecem a comunicação científica, dando-lhe maior diversidade e promovendo uma maior acessibilidade.
Por outro lado, o processo de Revisão por Pares também sofreu algumas alterações. De acordo com os princípios da Revista, numa perspetiva de Ecologia de Saberes, decidimos convidar duas pessoas para o processo de revisão, vindas de campos de ação distintos – da academia e da sociedade civil –, para uma visão mais complementar. Para além disso, e porque nos assumimos num processo de aprendizagem e de facilitação de aprendizagens, e porque vemos a relevância e o potencial de incluir contribuições de autores e autoras menos experientes na escrita científica, abrimos no processo de revisão uma terceira possibilidade (para além da aceitação e da rejeição): a de propor, para alguns textos, um acompanhamento por “um/a amigo/a crítico/a” na reformulação do texto, para poder vir a ser aceite para publicação.
Este número da revista é, assim, de alguma forma, um pouco experimental…bem ao gosto de Paulo Freire!
[1] Freire, P. (2000) Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Editora UNESP.
[2] Freire, P. (1989) A importância do Ato de Ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Autores Associados.