Florentino Maria Lourenço[1]Doutorando em Educação pelo Programa de Pós-Graduação Processos Formativos e Desigualdades Sociais da Faculdade de Formação de Professores da UERJ/RJ/Brasil. Integrante do Grupo de Estudos e … Continue a ler
[o]estabelecimento de uma paz duradoura é o objeto mesmo da educação, a responsabilidade da política não é mais do que nos preservar da guerra (Montessori, 2014, p.14)
Nos tempos de crises parece fundamental (re)ler a escrita de Maria Montessori em especial o livro Educação e Paz que, ao longo das suas 148 páginas, revela extrema preocupação com a questão da educação para a Paz. A abrir sua abordagem, a primeira parte, designada Alicerces para a Paz, é composta pelos capítulos “A Paz”, “Pela Paz” e “Educar para a Paz”. O segundo capítulo Educar para a Paz apresenta o texto: Sexto Congresso Internacional Montessori, composto por sete documentos apresentados nas várias conferências: Conferência de abertura do congresso; Pode a educação hoje exercer influência sobre o mundo, e por quê?; Segunda conferência; Para que a educação ajude nosso mundo atual; O necessário acordo universal para que o homem esteja moralmente armado para defender a humanidade; Quinta conferência; Conferência de encerramento do congresso; e, por fim, Meu Método. Numa base dialogante, estabelece-se uma comunicação com o terceiro capítulo “A importância da educação na edificação da Paz”, cujos tópicos são: Primeira conferência; Super natureza e Nação Única e a educação do indivíduo; e, a fechar o livro, Discurso na fraternidade mundial das crenças, com o tópico educar a médica e educadora para a Paz.
O livro reúne textos escritos nas décadas trinta e quarenta do século XX. A sua primeira publicação ocorre quatro anos depois do fim da segunda Guerra Mundial, reunindo desta forma reflexões que a autora proferiu em conferências a nível mundial sobre a importância da educação para a Paz. No que concerne ao dados bibliográficos, Maria Montessori (1870-1952), nascida em Chiaravalle, Itália, prémio Nobel da Paz em 1949-1950, tornou-se uma das maiores pesquisadoras do século XX no campo da educação, tendo publicado vários textos que dão centralidade à educação e à Paz. Médica italiana, psiquiatra e educadora mundialmente conhecida por ter desenvolvido o método Casas dei Bambini que pensa e concebe a educação das crianças enquanto espaço de desenvolvimento da cultura de Paz. Nela a educação para a paz é vista como ciência, arte e cultura que se ensina e apre(e)nde no cotidiano das escolas desde a pequena infância até a sua fase adulta.
Antes de nos aprofundarmos no livro em causa importa registrar o movimento académico e intelectual que atravessa a autora e que, de certo modo, cria bases para a seu pensamento. Ela assiste, em 1919, à criação da Sociedade das Nações, cujo principal objetivo era (re)estabelecer a Paz, prevenir a humanidade dos futuros conflitos, fortalecendo as relações pacifistas entre a humanidade. Todavia, este órgão não foi capaz de desenvolver ações pedagógicas capazes de lutar pela Paz. O “fracasso” deste organismo, em 1923, imperou que se aprovassem medidas que instassem aos governos dos Estados membros a desenvolverem ações que possibilitassem às crianças e jovens tomarem consciência dos seus objetivos. Desta forma são desenvolvidas várias atividades envolvendo professores e cientistas que estimulam trocas e debates nas escolas e, por conseguinte, os conteúdos sobre a Paz ganham maior relevo, fazendo com que em 1926 se constitua a Oficina Internacional de Educação, onde a expressão Educação para a Paz foi amplamente difundida a partir do Instituto Genebrino Jean Jacques Rousseau.
Mas seria Maria Montessori a grande ícone da Educação para a Paz, com o seu projeto pedagógico interdisciplinar direcionado às crianças, cuja missão utópica era desconstruir as memórias de conflitos num período em que se experimentava a quebra da identidade, a ordem nacionalista e consequente mergulho em guerras entre povos e Nações. Desta forma, convoca-nos a olharmos para a educação como “salvação”, acredita que “a educação não apenas vai de encontro às leis da ciência, mas ainda é contrária às carências sociais de nossa época” (Montessori, 2014, p.21, grifos nossos).
Adentrando no livro, a autora, num diálogo entre Educação e Paz, revela que a visão capitalista fez com que as tensões entre as Nações se agudizassem, afirmando que nenhum Estado investiu tanto na educação como acompanhou a evolução tecnológica na área do armamento e que as políticas esqueceram-se que a prevenção das guerras reside na educação das pessoas, pois ela é
pedra angular da Paz, não pode apenas consistir em tentar evitar a fascinação das crianças pela guerra. Não basta impedir as crianças de se divertirem com brinquedos representando armas e parar de lhes ensinar a história da humanidade como uma sucessão de grandes feitos de exércitos e de lhes apresentar as vitórias alcançadas nos campos de batalha como uma grande honra. Não basta tampouco lhes inculcar o amor e o respeito a todos os seres vivos e a tudo o que os homens construíram ao longo dos séculos (Montessori, 2014, p.50).
No século XXI a mensagem de Maria Montessori se atualiza, o seu método desenvolvido inicialmente na Casa dei Bambini (Casa das Crianças), onde trabalhou com crianças que tinham sido impedidas de evoluir na educação “coerciva” formal e nas famílias, se torna um imperativo, visto que a escola é chamada a estar aberta a novas abordagens que ultrapassam a dimensão da educação formal, com vista a captar as potencialidades e as necessidades das crianças para dar a virada do paradigma escolar – onde são analisadas as relações entre os sujeitos numa perspetiva de produção de novos processos de convivência social.
Ao escrever a sua experiência parte de um mundo real, onde observa que para se viver em Paz, os Estados se sentem forçados a negociações e memorandos que são assegurados por trocas de interesses económicos. É desta realidade que a autora pensa na Paz, não como produto de negociação, mas sim de um projeto de construção da Nação, cuja educação é chamada a desenvolver a “Ciência da Paz” (Montessori, 2014), que começa nas mais ínfimas relações entre as pessoas, na família, no quintal, na comunidade, na escola, até atingir a Nação. Seria assim a família um espaço para se começar a conquistar a liberdade e a escola o lugar de aprofundamento das relações sobre o reconhecimento do outro como sujeito igual e digno da sua existência.
A autora afirma que as instituições de ensino se encontram numa crise epistemológica, não conseguem se posicionar com projetos e práticas escolares que concorrem para a transformação dos cidadãos, não preparam “suficientemente o homem para sua vida de cidadão. Não existe nenhuma organização moral das grandes massas humanas. Os homens estão habituados, por sua educação, a se considerar indivíduos isolados, em concorrência uns com os outros para a satisfação de suas necessidades imediatas” (Montessori, 2014, p.19).
Diante deste cenário, procuramos compreender as possíveis pedagogias outras que se podem traçar a partir do pensamento de Maria Montessori, num cenário em que muito se tem falado da necessidade de a educação transitar da teoria para a prática e discursivamente se tem atribuído a importância de seu caráter interdisciplinar, onde a história, a antropologia, a filosofia e a sociologia se desdobram em incorporar nos seus currículos a componente da paz, numa abordagem holística que, na maioria das vezes, fica no campo teórico e não transita para a práxis escolar.
Para este diálogo, Fazenda (2001) refere que a interdisciplinaridade é a pedagogia que nos ajuda a identificar o vivido e o estudado, permite a construção de um conhecimento a partir das relações de múltiplas e variadas experiências. Nesta aceção, podemos questionar: como as escolas e os currículos se posicionam perante a necessidade da educação para a Paz e interdisciplinar?
A violência cultural e económica movida pela política capitalista neoliberal disfarçada na globalização (Montessori, 2014) servem de alicerces para o surgimento de sistemas educacionais fechados e focados para o mercado. Fazenda (2001) desafia a ampliação do ensino interdisciplinar a fim de abordar novas experiências, nos desafiando a uma indução ao trabalho coletivo entre professores e alunos e, por conseguinte, um esforço em tornar a ação educativa mais produtiva e atuante. Para tal, os currículos, enquanto instrumentos ideológicos e políticos, precisam integrar conteúdos socialmente relevantes.
Montessorri (2014) critica a educação interdisciplinar do seu tempo ao referir que não se baseia na assunção da tolerância como principal fundamento da cultura de Paz. Aqui compreendemos a tolerância como atitude de aceitar “forçosamente” o outro. Aceitar o outro não pode significar apenas uma atitude tolerante, mas a incorporação do espírito de respeito de que o outro tem igual dignidade de vida como eu. Ainda, aponta que nas escolas, através dos currículos, e os Estados na sua maioria, quando abordam a questão da Cultura de Paz e sua relação com a educação, recorrem a atos solenes que se traduzem em orações, soltar pombas brancas, danças, mensagens políticas, encenações teatrais, entre outras práticas. No entanto, educar para a Paz remete-nos a atividades e ações pedagógicas que têm como foco a redução das práticas da violência “educação para a Paz é um campo de ensino que pode e precisa ser estudado, devidamente articulado com a Cultura de Paz, para que sejam definidos seus aspetos básicos, devidamente claros e dotados de perspetiva e possibilidades para pensar o universo educacional” (Salles Filho, 2016, p.14).
Montessori nos lembra que é preciso destacar as experiências, uma vez que ocupam um espaço premiado no processo de ensino-aprendizagem e contribuem para uma formação mais humanizada. Todavia, os currículos atuais se mostram estáticos, focados no mundo neoliberal em grande medida, transformam a escola em um espaço de segregação, de intolerância e competição, alimentando nos alunos o espírito competitivo que toma o outro como um alvo por abater. Assim, a autora lança as bases para o que Delors (2003) viria mais tarde designar por educação para a fraternidade enquanto uma utopia necessária em todo planeta para transformar a ambição humana em virtude, a competição e exibição em cooperação e incorporação, e também sugere possíveis respostas às inúmeras questões que se colocam no quotidiano escolar: seremos nós capazes de transformar o planeta em um lugar tranquilo e fraterno? Qual é o caminho a seguir?
Uma verdadeira e poderosa organização da humanidade não se improvisa da noite para o dia. Eis aí um fato de grande importância prática. O trabalho de base necessário para tal organização deve começar na infância, no início mesmo da vida. Em resumo, a sociedade só pode se organizar se a educação oferecer ao ser humano uma série de experiências sociais progressivas à medida que passa de um estágio a outro da vida (Montessori, 2014, p.54).
Assim, apontamos que a educação do século XXI precisa construir a ciência da Paz, a escuta ao outro, combater a barbárie, através de práticas quotidianas dos professores que conduzem a educação para o diálogo, a escuta e a fraternidade, desenvolvendo a emancipação crítica sobre o ser social no mundo. É preciso virar o paradigma mais do que uma aposta no investimento económico (infra-estruturas, material escolar, apetrechamento institucional). Montessori nos revela outro tipo de investimento na educação, a ética e moral desde a pequena infância.
A construção de um sistema de educação num mundo situado nas margens do capitalismo periférico, em constante processo de mundialização, ocorre sob várias matizes e modelos, no entanto, estas transfigurações não se configuram como possibilidade de incorporação dos valores da Paz, nem do cultivo da ética e da moral. A educação tem sido absorvida pelos sistemas de mercado neoliberais que buscam criar novos seres orientados para o consumo e competição, forçando a noção de uma sociedade universal. A preocupação central da ideia de educação apresentada no livro pressupõe a promoção de debates para tornar a educação um parceiro da Paz. Trata-se de um movimento que define a pedagogia comprometida com a Paz, equilíbrio social e bem-estar da humanidade. Este pressuposto requer sistemas educativos que valorizam as identidades culturais, as convicções políticas, as ideologias dos vários povos reconhecendo a heterogeneidade na globalização, uma vez que “neste período particular da história, a educação assume uma importância considerável. Insistimos assim cada vez mais sobre sua utilidade prática, que podemos resumir em uma frase: a educação é a melhor arma para a Paz” (Montessori, 2014, p.49).
Encontramos em Maria Montessori um grande e esquecido referencial teórico que nos mostrou, a partir de nossa pesquisa, o caminho para encontrar “novas ciências (…), novas disciplinas capazes de evidenciar os novos ideais e de disseminá-los da maneira como as ideologias em conflito fizeram sua propaganda (Montessori, 2014, p.87).
Diante de uma sociedade consumida pelo capitalismo periférico, voltar-se para a escola e atribuir essa perspetiva de construir uma cultura de Paz nestes tempos sombrios de refluxo da pandemia da Covid-19 pode parecer utópico, mas não impossível, porque ela tem a missão transformadora das realidades sociais. A escola posiciona-se como espaço de prevenção e resolução de conflitos, pois nela os conflitos e tensões de um mundo em aberto não podem ser abordados como negativos, mas como momentos de reflexão e de busca de novos caminhos.
Com olhos postos na prospetiva de uma educação para a Paz, a médica e educadora Montessori alerta-nos para a necessidade de uma educação voltada para a reconciliação e consciencialização dos homens, para o cultivo do bem-estar social e antecipa uma crise dos modelos do (re)produtivismo baseados no consumo e egocentrismo. Desafia a educação para não se limitar em narrar as experiências de conquistas advindas dos conflitos militares como feitos heroicos ou bravura, mas como impossibilidades de um diálogo e como consequências das políticas mortíferas dos Estados.
Referências
- Delors, Jacques (2003). Educação um tesouro a descobrir. São Paulo: Cortez Brasília, DF: MEC/UNESCO.
- Fazenda, Ivani (2001). Conversando Sobre Interdisciplinaridade à Distância. PUCSP/UNCID.
- Salles Filho, Nei Alberto (2026). Cultura de Paz e Educação para a Paz: Olhares a partir da Teoria da Complexidade de Edgar Morin. [Tese de doutorado] Universidade Estadual de Ponta Grossa.
- Montessori, Maria (2014). Educação e a Paz. Sónia Maria Alvarenga Braga [Trad.]. Capinas: Papirus.
1 | Doutorando em Educação pelo Programa de Pós-Graduação Processos Formativos e Desigualdades Sociais da Faculdade de Formação de Professores da UERJ/RJ/Brasil. Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas da(s) Infância(s), Formação de Professores(as) e Diversidade Cultural (GIFORDIC-FFP/UERJ). Mestre em Pedagogia e Didáctica pela Universidade Metodista Unida de Moçambique. Licenciado em Ensino de Português pela Universidade Pedagógica de Moçambique. florentinomarialourenco@gmail.com. |
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