Luiza Cunha[1]Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, Porto, Portugal. Autor para correspondência; email: luizabezerra9@hotmail.com; ORCID: 0000-0002-5653-5480. & Valéria Sousa[2]Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, Porto, Portugal.
Resumo:
No intuito de promover a participação de jovens, enquanto atores sociais, uma intervenção realizada no Brasil optou pela utilização do teatro do oprimido, técnica do teatro-fórum desenvolvida por Augusto Boal, caracterizada por seu criador como possibilitadora de transformação da realidade. Com base na leitura deste projeto de intervenção, o objetivo deste artigo é aprofundar tópicos da referida proposta de intervenção destacando elementos que favoreceram o processo de construção do protagonismo juvenil e como estes dialogam com os princípios freirianos. Para tanto, este percurso será traçado a partir de um prisma sobre os seguintes princípios: diálogo, conscientização, coletividade e transformação social. Estes são elementos considerados pertinentes para compreensão da função social do teatro, o qual se mostrou, na intervenção, uma ferramenta para o desenvolvimento de uma reflexão crítica acerca do cotidiano, situações e problemas vivenciados, onde jovens puderam se apropriar do teatro como instrumento de expressão e mudança.
Palavras-chave: Teatro do Oprimido; Diálogo; Protagonismo Juvenil; Coletividade; Transformação Social.
Abstract:
In order to promote the participation of young people as social actors, an intervention carried out in Brazil opted for the use of the theater of the oppressed, a forum theater technique developed by Augusto Boal, characterized by its creator as enabling the transformation of reality. Based on the reading of this intervention project, the objective of this article is to deepen the topics of the aforementioned intervention proposal, highlighting elements that favored the process of construction of youth protagonism and how these dialogue with Freire’s principles. Therefore, this path will be traced from a prism on the following principles: dialogue, awareness, collectivity, and social transformation. These are elements considered relevant for understanding the social function of theater, which proved to be, in the intervention, a tool for the development of a critical reflection about everyday life, situations, and problems experienced, where young people were able to appropriate theater as an instrument of expression, and change.
Keywords: Theater of the Oppressed; Dialogue; Youth protagonism; Collectivity; Social Transformation.
Resumen:
Para promover la participación de los jóvenes como actores sociales, una intervención realizada en Brasil optó por el uso del teatro del oprimido, técnica de teatro foro desarrollada por Augusto Boal, caracterizada por su creador como posibilitadora de la transformación de la realidad. A partir de la lectura de este proyecto de intervención, el objetivo de este artículo es profundizar temas de dicha propuesta de intervención, destacando elementos que favorecieron el proceso de construcción del protagonismo juvenil y cómo estos dialogan con los principios de Freire. Por tanto, este camino se trazará desde un prisma sobre los siguientes principios: diálogo, conciencia, colectividad y transformación social. Estos son elementos considerados relevantes para comprender la función social del teatro, que demostró ser, en la intervención, una herramienta para el desarrollo de una reflexión crítica sobre la vida cotidiana, las situaciones y los problemas vividos, donde los jóvenes lograron apropiarse del teatro como instrumento de expresión y cambio.
Palabras clave: Teatro del Oprimido; Diálogo; Protagonismo juvenil; Colectividad; Transformación Social.
1. Introdução
O objetivo deste artigo é aprofundar tópicos da proposta de intervenção apresentada no artigo “Teatro do oprimido e Terapia Ocupacional: uma proposta de intervenção com jovens em situação de vulnerabilidade social” (Alves et al., 2013), cuja operacionalização foi pautada nas atividades teatrais propostas por Augusto Boal (1991, 2009) em consonância com a técnica do teatro-fórum. Para efeito, buscou-se destacar elementos que favoreceram o processo de construção do protagonismo juvenil e como estes dialogam com os princípios freirianos. Esta intervenção, desenvolvida e implementada no Brasil, no interior do estado de Minas Gerais, promoveu atividades teatrais em uma instituição filantrópica com 11 jovens que se inscreveram voluntariamente para oficinas de teatro. Os indivíduos podem, através de uma participação ativa, discutir e elaborar estratégias de enfrentamento aos problemas e questões vivenciadas no âmbito de sua comunidade.
Tomando como ponto de partida as concepções teóricas e metodológicas que abrangem o Teatro do Oprimido, proposto por Augusto Boal, este percurso será traçado a partir de um prisma sobre os seguintes princípios: diálogo, coletividade, conscientização e transformação social.
Estes são elementos considerados pertinentes para compreensão da função social do teatro, o qual se mostrou na intervenção, uma ferramenta possibilitadora do desenvolvimento de uma reflexão crítica acerca do cotidiano, situações e problemas vivenciados, onde jovens puderam se apropriar do teatro como instrumento de expressão e mudança.
Desta forma, a prática do Teatro do Oprimido no processo de intervenção apresenta-se como atividade preponderante pois contempla dois aspectos: o primeiro aspecto aflora a dimensão estética propriamente dita; já o segundo, propicia uma reflexão crítica a respeito do cotidiano que o circunda contribuindo, desta maneira, para o processo de ação-reflexão-ação num contínuo que aponta para a transformação social.
2. Contextualização da intervenção
A proposta de intervenção foi realizada em uma instituição de caráter filantrópico localizada numa comunidade de moradores em situação de vulnerabilidade social em um município do interior de Minas Gerais, Brasil. A instituição em questão possui colaboração técnica com a Universidade Federal do Triângulo Mineiro para realização dos estágios em terapia ocupacional, apresentando a demanda específica para se trabalhar com o público em questão, em virtude da exposição dos jovens a um bairro que apresenta condições sociais marcadas pela desigualdade que gera problemáticas como violência, drogas e rede de prostituição.
Definiu-se como público-alvo da intervenção, jovens, com faixa etária média de 15 anos – sendo estes 7 do gênero masculino e 4 do gênero feminino, os quais realizaram suas inscrições voluntariamente na oficina de teatro. A atividade em questão mostrou-se relevante para este público que demandava ao setor de terapia ocupacional por oficinas que envolvessem expressão corporal. Neste sentido, ela se apresenta por atender a uma necessidade da comunidade e não apenas como algo instituído por aquele que intervém. A pesquisa intencionava descrever e analisar a utilização do teatro como recurso terapêutico ocupacional junto a jovens em situação de vulnerabilidade social num processo de conscientização e protagonismo juvenil para resolução de problemas, diálogo com comunidade e possibilidade futura para que possam exercer sua cidadania e usar sua voz.
No tocante ao procedimento metodológico adotado, parte-se de uma abordagem qualitativa, a partir da qual utilizou-se fundamentos práticos das técnicas do Teatro do Oprimido de Augusto Boal (1991, 2009). A aproximação com o público durante as oficinas e a forma de condução dos debates transcorridos a partir dos jogos teatrais, como dramaturgia simultânea e debates das experiências retratadas nas dramatizações realizadas pelos participantes também se alinham à proposta de Paulo Freire (1987, 2001, 2006). Para tanto, elaboraram-se 10 intervenções nesta instituição filantrópica, a qual possui “colaboração técnica” (Alves et al., 2013, p. 328) com a universidade onde as autoras desenvolveram o projeto. As oficinas possibilitaram a partir de práticas e experiências teatrais, debates e surgimento de temas, durantes as oficinas, que se aproximavam da realidade dos jovens participantes.
Em adição às oficinas desenvolvidas, a metodologia da intervenção das autoras engloba também uma apresentação teatral para a comunidade a partir da técnica do teatro-fórum, a qual está inclusa na técnica do teatro do oprimido de Boal (1991, 2009). Esta apresentação foi realizada posteriormente às intervenções. As oficinas e a apresentação abordaram situações de conflito relatadas espontaneamente durante os jogos teatrais, as quais intencionavam um incentivo ao enfrentamento das situações de vulnerabilidade social construídas no coletivo do grupo e da comunidade durante a aplicação da técnica, a partir da metodologia adotada.
Para coleta dos dados foram utilizadas as filmagens das intervenções, anotações em diário de campo e um grupo focal com os jovens ao final das intervenções. Para a condução do tratamento dos dados obtidos, foi utilizada a análise de conteúdo temática a partir dos autores Minayo, Deslandes e Gomes (2007). Estes foram referência para condução da análise.
No âmbito das questões éticas que perpassam o processo de intervenção, foram adotadas, de acordo com o artigo, as seguintes medidas de modo a procurar garantir anonimato e confidencialidade dos participantes: i) por se tratar de jovens, foi necessário a assinatura do termo de Consentimento Livre Esclarecido por parte dos pais; ii) os espectadores da comunidade foram informados sobre o caráter da pesquisa, aceitando a participação durante o teatro-fórum; iii) a relevância do retorno à comunidade. A mesma foi convidada a assistir à peça de teatro do grupo, a partir da técnica de teatro-fórum (Boal, 1991, 2009) que colocou em debate os temas gerados no decorrer das oficinas, subsidiando, deste modo, a construção coletiva de estratégias de enfrentamento aos problemas vivenciados pela comunidade – drogas, violência e prostituição.
A partir do artigo, infere-se que as investigadoras apreenderam, por meio da intervenção, comportamentos variados, tanto como aproximação, quanto afastamento dos outros, analisados como consequência da própria adolescência. O tamanho pequeno do grupo permite uma maior possibilidade da pesquisadora conhecer melhor os participantes, podendo assim, formar laços de confiança e deixar os participantes mais à vontade para se expressarem. Outra vantagem do pequeno número de participantes pode também ser uma ferramenta de compreensão das ações do grupo, cujo comportamento pode ser diferente do que é esperado por ela, de maneira imprevisível, às vezes não conciliável, orientado por uma visão de mundo (Freitas, 2015) e cultura particulares.
Dentre os elementos importantes para análise de conteúdo temática (Minayo; Deslandes; Gomes, 2007) utilizada para a etapa de análise de dados coletados, podem ser destacadas as gravações realizadas durante as conversas em grupo. Estas podem fornecer mais dados à pesquisadora, pois está ligada a um alto grau de revelação da vida cotidiana pelos participantes, podendo assim, fazer com que ela tenha maior conhecimento do grupo, parte da comunidade, objetivando, planejar as próximas etapas de sua investigação. De caráter qualitativo, o papel da investigadora se apresenta nos grupos de discussão de maneira neutra (Flick, 1998), permitindo que os jovens se sintam mais à vontade para se expressar.
Sua intenção estava no âmbito do surgimento espontâneo de temáticas que fossem próximas a eles e o importante é que esses temas não foram criados ou questionados pela pesquisadora, o que poderia criar uma barreira comunicativa, diminuir interesse e comprometer os dados obtidos. A superação de barreiras sociais, como a timidez, a criação do laço de confiança entre as partes demanda tempo e é essencial para que esse objetivo seja atingido.
As etapas do trabalho de aproximação, desenvolvimento de temas, problemáticas próximas a realidade dos jovens para depois haver um debate entre eles, possibilitou avançar para próxima etapa do projeto: o enfrentamento das situações de vulnerabilidade por parte dos jovens. Esses fatores na intervenção são essenciais, pois é importante ouvir, perceber as pessoas e contextos, para depois sabermos por elas qual problema e situação enfrentam e que estão dispostas a trabalhar e resolver.
Entre os principais temas gerados durante a intervenção, as autoras apontam como principais: droga, violência, relações com a polícia, sexualidade e relacionamentos interpessoais (Alves et al. 2013, p. 329), destaca-se algumas falas dos participantes em relação à família e droga, como:
É, as pessoas “oferece”, mas ele só fuma se ele quiser, depende das amizades. Se eu “tiver” fumando maconha e chegar nele, “nóis tem” amizade, se eu chegar nele e falar “quer fumar um brown aí irmão?”, ele vai e fuma (J.11).
Tem muitos “pobrema” em casa, “pobrema” na rua. Aí pode ser que ele “quer” superar isso tudo. Briga de mãe, de pai, de irmão enche seu saco, muitas coisas […] ele quer um pouco de paz na vida (J.9).
Interessante destacar a estratégia adotada de uma conversação, aparentemente em tom mais informal, para que os jovens pudessem se expressar acerca do que foi trabalho nas oficinas e posteriormente aprofundado no estudo desenvolvido e discutido com a comunidade. A verbalização das situações de opressão por parte dos jovens a partir dos grupos de discussão, jogos teatrais, dramatizações, entre outros anteriormente mencionados se faz importante para o estudo, o qual intencionava utilizar o teatro como ferramenta não apenas para expressão dos cotidianos dos jovens, como também para conscientização e protagonismo deles (Alves et al., 2013).
A reflexão após cada sessão e o trabalho final, com o teatro-fórum, puderam ser percebidos como essenciais para oferecer condições para que eles desenvolvam e expressem suas perspectivas e necessidades sobre a comunidade, e pode atingir, além da proposta do caráter terapêutico da pesquisadora, promover maior participação dos jovens nas suas comunidades (Menezes e Ferreira, 2014).
O objetivo da intervenção propunha a contribuição do trabalho desenvolvido para futuras intervenções na área de terapia ocupacional junto a jovens em situações similares, assim como fomentar o debate do tema, o qual se mostra bastante pertinente para discussão de estratégias mesmo após 10 anos de publicação da pesquisa. Por exemplo, podem ser mencionados os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ONU, 2015). Dentre os 17 objetivos, há diversas propostas que refletem uma preocupação, por exemplo, no que se refere à erradicação da pobreza, fome, promoção de educação de qualidade e redução de desigualdades (apresentados respectivamente nos objetivos 1, 2, 4 e 10). Estes objetivos podem ser percebidos, em maior ou menor dimensão, nesta intervenção a partir do próprio artigo e discurso dos jovens da intervenção, os quais vivem com escassez de recursos e qualidade de vida.
3. Teatro do Oprimido: Teatro-Fórum
De acordo com Boal (1991) o teatro possui uma característica política, haja vista que toda atividade do homem pode ser também ser assim percebida. Esta componente filosófica da teoria do teatro do oprimido permite que o teatro possa ser apreendido como uma ferramenta essencial de libertação do indivíduo e do coletivo no qual ele está inserido. Ou seja, a partir da transformação interna do sujeito ele é capaz também de transformar a esfera exterior a ele. Há diversas formas de representação do teatro do oprimido, onde podemos citar por exemplo, o teatro invisível, teatro imagem e teatro-fórum (Paulos, 2015).
O teatro-fórum, utilizado na intervenção analisada propõe uma participação ativa dos espectadores, os quais deixam de ser passivos diante da representação teatral de uma determinada realidade de opressão (Silva & Costa, 2020). Isto pode ser melhor compreendido nesta técnica de Augusto Boal (1991), a partir das seguintes etapas abordadas por ele:
1ª – Conhecimento do corpo: representa a dimensão do eu, a partir do conhecimento dos limites e possibilidades do corpo, procurando posteriormente ultrapassar barreiras de expressão do indivíduo. Exemplo: corrida em câmera lenta.
2ª – Tornar o corpo expressivo: jogos são utilizados como uma manifestação externa do eu para auxiliar a expressão corporal do ator.
3ª – Teatro como linguagem: ferramenta de libertação e expressão os atores e espectadores possuem um papel dinâmico, ativo, na representação teatral. Os espectadores podem intervir nas cenas, sendo eles também sujeitos ativos da ação.
4ª – Formas pelas quais o teatro pode ser representado pelos espectadores-atores.
Estas ferramentas são importantes para que os espectadores possam se apropriar da produção teatral, possibilitando retratar, refletir e discutir problemas do cotidiano, situações de opressão, visando a emancipação do que foi retratado a partir de uma mobilização coletiva para além do palco. Nesta modalidade, procura-se retratar situações em que haja o opressor e o oprimido (protagonista), por meio de uma representação de relações de poder (Silva & Costa, 2020). A ação representada procura mobilizar a superação da situação de opressão sofrida pelo ator. Exemplo: teatro-fórum.
Estes elementos podem ser percebidos no artigo Teatro do oprimido e Terapia Ocupacional: uma proposta de intervenção com jovens em situação de vulnerabilidade social (2011) cuja intervenção está sendo, no presente artigo, possibilitadora de uma maior discussão sobre o tema de protagonismo juvenil. A intervenção utiliza de diversos elementos da técnica de Augusto Boal, abordados acima para a elaboração das oficinas de teatro, de modo a procurar se aproximar dos jovens e proporcionar um ambiente para expressão de suas realidades, como foi abordado anteriormente, a partir dos grupos de discussão, jogos teatrais e o teatro-fórum (Alves et al., 2013).
Este último elemento da intervenção foi utilizado tanto durante as intervenções quanto na apresentação final para a comunidade (ibidem). No que se refere a 4ª etapa, a qual engloba meios pelos quais o teatro pode ser representado (Boal, 1991), encontra-se presente o teatro-fórum. Os participantes utilizaram desta técnica para elaborar uma esquete teatral a partir das situações de vulnerabilidade abordadas por ele durante a realização da intervenção. Nesta esquete apresenta-se uma situação de opressão a partir de dois elementos essenciais para a representação: opressor e oprimido.
Contudo, na apresentação não há meramente uma relação ator e espectador, mas os espectadores podem intervir na situação, de modo a procurar soluções para o problema representado pelos jovens. Este elemento possibilita que questões do cotidiano da comunidade possam ser além de apresentadas, também, discutidas e trabalhadas de maneira coletiva, procurando uma solução ou maneiras de pensar e enfrentar o cenário ali abordado (Alves et al., 2013).
Para que seja possível a participação do espectador, apresentando sugestões e reflexões, por exemplo, é preciso que o tema seja de envolvimento geral do coletivo (Bertão et al., 2017). As sessões são conduzidas por um curinga, o mediador, o qual incentiva a mobilização do espectador para mudanças do desfecho do personagem (Silva & Costa, 2020). Sua participação é essencial para possibilitar um entendimento amplo do problema que está a ser retratado, onde os espectadores não apenas contemplam, mas podem contribuir para mudanças que possam vir a ser uma transformação do real e libertação da realidade de opressão (Boal, 2009).
4. Protagonismo juvenil – entre a participação e o diálogo
Debruçar-se sobre os processos sociais nos quais os jovens se inserem, remete olhar os mesmos enquanto sujeitos sócio-históricos. Neste sentido, essas três proposições – o que são, por que são e como atuam – são reveladoras de sua participação enquanto protagonistas de seu processo de desenvolvimento.
Partindo desse pressuposto, a participação deve ser compreendida como uma ação compartilhada, em que todos os sujeitos possam expressar sua voz e intervir em diferentes níveis de poder, tendo o dever de não se omitir. Corroborando este princípio, Paulo Freire expressa sua concepção dessa importante categoria:
Para nós, a participação não pode ser reduzida a uma pura colaboração que setores populacionais devessem e pudessem dar à administração pública. […] Implica, por parte das classes populares, um “estar presente na História e não simplesmente nela estar representadas”. Implica a participação política das classes populares através de suas representações, no nível das opções, das decisões e não só do fazer o já programado. […] Participação popular para nós não é um slogan, mas a expressão e, ao mesmo tempo, o caminho para a realização democrática da cidade (Freire, 2001, p. 75).
A participação, conforme aponta Freire, ultrapassa um fazer do que já está estabelecido, ao contrário, ela envolve representações – opções e decisões. Portanto, um fazer com, pautado numa relação dialógica, e não fazer para. Concepção semelhante é apresentada no documento Guia para a participação no IX Fórum de juventude da UNESCO, o qual compreende participação como: “envolvimento ativo, informado e voluntário das pessoas na tomada de decisões e na vida de suas comunidades (tanto local quanto globalmente). Participação significa trabalhar com e por pessoas e não apenas trabalhar para elas. […]” (UNESCO, 2014, p. 18).
Nesta lógica, Costa (2000) adjetiva que o protagonismo envolve uma participação ativa e construtiva assim o caracterizando como:
modalidade de ação, criação de espaços e condições capazes de possibilitar aos jovens envolverem-se em atividades direcionadas à solução de problemas reais, atuando como fonte de iniciativa, liberdade e compromisso. O cerne do protagonismo é a participação ativa e construtiva do jovem na vida da escola, da comunidade ou da sociedade mais ampla (Costa, 2000, p. 179).
Isto posto, é possível inferir que as conceções apresentadas convergem para um protagonismo juvenil pautado na participação e no diálogo cuja tônica evidencia o desenvolvimento social, culminando, portanto, em um ato de transgressão onde os protagonistas são capazes de observar, decidir, comparar, intervir, romper, optar, escolher, avaliar.
5. Diálogo, conscientização, coletividade e transformação social
Os princípios elencados são considerados pertinentes para compreensão da função social do teatro, o qual se mostrou na intervenção, uma ferramenta possibilitadora do desenvolvimento de uma reflexão crítica acerca do cotidiano, situações e problemas vivenciados, onde jovens puderam se apropriar do teatro como instrumento de expressão e mudança. Atentando para esta condição, à luz das categorias de análise elencadas no Quadro 1, a saber, o teatro como instrumento de expressão das condições de vulnerabilidade dos jovens, o teatro e o microcosmo social do grupo e da família e teatro-fórum e elaboração de estratégias de enfrentamento, pretende-se construir uma intersecção entre estas e os princípios freirianos que as sustentam.
Categorias de análise | Princípios |
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O teatro como instrumento de expressão das condições de vulnerabilidade dos jovens |
Conscientização – consciência-mundo Implica que ultrapassemos a esfera espontânea de apreensão da realidade, para chegarmos a uma esfera crítica na qual a realidade se dá como objeto cognoscível e na qual o homem assume uma posição epistemológica (Freire, 2006, p. 30). A conscientização não pode existir fora da práxis, ou melhor, sem o ato de ação-reflexão. Esta unidade dialética constitui, de maneira permanente, o modo de ser ou de transformar o mundo que caracteriza o homem (Freire, 2006, p. 30). A conscientização não está baseada sobre a consciência, de um lado, e o mundo, de outro; por outra parte, não pretende uma separação. Ao contrário, está baseada na relação consciência-mundo (Freire, 2006, p. 31). |
O teatro e o microcosmo social do grupo e da família | Diálogo – reflexão e ação
O diálogo é uma exigência existencial. E, se ele é o encontro em que se solidarizam o refletir e o agir de seus sujeitos endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado, não pode reduzir-se a um ato de depositar ideias de um sujeito no outro, nem tampouco tornar-se simples troca de ideias a serem consumidas pelos permutantes. Não é também discussão guerreira, polêmica, entre sujeitos que não aspiram a comprometer-se com a pronúncia do mundo, nem a buscar a verdade, mas a impor a sua (Freire, 2004, p. 79). Coletividade Será a partir da situação presente, existencial, concreta, refletindo o conjunto de aspirações do povo, que podemos organizar o conteúdo programático da Educação ou da ação política (…) O que temos de fazer, na verdade, é propor ao povo, através de certas condições básicas, sua situação existencial, concreta, presente, como problema que, por sua vez, o desafia e, assim, lhe exige resposta, não só no nível intelectual, mas no nível da ação (Freire, 1987, p. 86). |
O teatro-fórum e elaboração de estratégias de enfrentamento |
Transformação social – denúncia da situação e anúncio da superação Uma das questões centrais com que temos de lidar é a promoção de posturas rebeldes em posturas revolucionárias que nos engajam no processo radical de transformação do mundo. A mudança do mundo implica a dialetização entre a denúncia da situação desumanizante e o anúncio de sua superação, no fundo nosso sonho (Freire, 1996, p. 31). |
Quadro 1 – Categorias de análise e princípios freirianos.
Fonte: Categorias de análise (Alves et al., 2013) e Princípios freirianos (1987, 1996, 2004 e 2006).
A primeira categoria, o teatro como instrumento de expressão das condições de vulnerabilidade dos jovens, trouxe à tona temas que denunciam o contexto de vida e a situação de vulnerabilidade social na qual estes estão inseridos: drogas, sexualidade, violência e relações interpessoais.
O enfoque a considerar, transcende a denúncia da realidade na qual os jovens estão inseridos e se insere no processo de ação-reflexão pontuado por Freire (2006), onde “Esta unidade dialética constitui, de maneira permanente, o modo de ser ou de transformar o mundo que caracteriza o homem” (p. 30). Desta maneira, foi a ação, a partir dos jogos teatrais, que promoveu uma reflexão em torno do contexto social de inserção dos jovens, especificamente, neste primeiro momento, nos seus “modos de ser” ou de “estar no mundo”.
No tocante à segunda categoria, o teatro e o microcosmo social do grupo e da família, remete-nos aos princípios freirianos da coletividade e diálogo – reflexão e ação. O primeiro, a coletividade, convida os jovens a repensar sua condição existencial na qual estão imersos, e, mediada pelo encontro com o outro, encontrar respostas para a mesma. Neste sentido, a coletividade mantém uma relação com o diálogo, dado que o fim maior prenuncia a transformação e humanização do mundo, ou seja, da realidade que o circunda.
Por fim, a terceira categoria, o teatro-fórum e elaboração de estratégias de enfrentamento, em consonância com o princípio freiriano da transformação social, evidencia a busca pela superação do contexto de vulnerabilidade. Assim, transcende a denúncia pela “denúncia”. Ampara-se na compreensão do ato denunciado, sua superação e mudança (Freire, 1996).
6. Conclusão
Este artigo teve como foco principal uma releitura da intervenção denominada Teatro do oprimido e terapia ocupacional: uma proposta de intervenção com jovens em situação de vulnerabilidade social (Alves et al., 2013). Para tanto, evocaram-se os princípios freirianos, cujo objetivo foi fornecer um outro olhar à referida intervenção realizada, procurando mostrar a importância da técnica do Teatro do Oprimido como elemento possibilitador de transformação e libertação social.
A pesquisa realizada no interior de uma região brasileira, valorizou o alcance e importância da técnica do Teatro do Oprimido, sendo esta, atualmente, uma ferramenta utilizada em diversos tipos de intervenções no contexto global (Paulos, 2015). O teatro, neste sentido, pode ser compreendido como um meio a partir do qual os indivíduos em situação de opressão podem não apenas representar sua realidade, como também discutir, aprender na coletividade e pensar na mudança social.
Ao trazer esta intervenção para uma reflexão pautada nos princípios freirianos – diálogo, conscientização, coletividade e transformação social, destaca-se sua relevância no fornecer de uma perspetiva de atuação a partir do Teatro do Oprimido em futuras intervenções não apenas com jovens, como também para a comunidade, de maneira geral. Assim, as limitações deste trabalho se impõe visto que a correlação entre categorias de análise e princípios freirianos não foram evidenciados durante o processo de intervenção.
Referências
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