La Salete Coelho1, Carolina Mendes2 e Teresa Gonçalves3

Resumo: Num tempo marcado por desafios como a globalização, a crise económica e financeira, as desigualdades sociais, os problemas ambientais, entre outros, o nosso estudo dedicou-se a analisar conceitos e práticas que propõem mundivisões alternativas – a teoria das Epistemologias do Sul e a Educação para o Desenvolvimento ou para a Cidadania Global. É com base neste quadro teórico que se analisa a experiência levada a cabo na ESE de Viana do Castelo, que se refere à integração da ED na formação inicial de professores, relacionando-a com a visão alternativa do mundo proposta pelas teorias de Boaventura de Sousa Santos. Esta experiência enquadra-se no âmbito do projeto “Capacitação da ESE-IPVC em matéria de ED e em matéria de planeamento, acompanhamento e avaliação da ENED 2010-2015”, que visa especificamente contribuir para a Medida 2.1 da Estratégia Nacional de ED em Portugal.

Ao longo do artigo identifica-se um conjunto de evidências que poderão contribuir para a formulação de respostas às seguintes questões: Será que os futuros docentes capacitados em ED acreditam que, na realidade, «outro mundo é possível»? Que caraterísticas, que atitudes, que valores tem um professor consciente desta diversidade epistemológica?

Palavras-chave: Epistemologias do Sul; Educação para o Desenvolvimento; Educação para a Cidadania Global; Formação de Professores.

Resumen: En una época marcada por desafíos como la globalización, la crisis económica y financiera y las desigualdades sociales, entre otros, este estudio se dedica a analizar conceptos y prácticas que proponen visiones del mundo alternativas: la teoría de las Epistemologías de Sur, de Boaventura de Sousa Santos, y la Educación para el Desarrollo o para la Ciudadanía Global. Al final se presenta una experiencia educativa de la Escuela Superior de Educación del Instituto Politécnico de Viana do Castelo, que trata de combinar estas dos propuestas.

Palabras-clave: Epistemologías de Sur; Educación para el Desarrollo; Educación para la Ciudadanía Global; Formación Profesores.

Abstract: In a time marked by challenges such as globalisation, economic and financial crises and social inequalities, amongst others, the present paper deals with concepts and practices that propose alternative visions of the world: Epistemologies of the South, theory of Boaventura de Sousa Santos, and  Development Education (ED) or Global Citizenship Education. These concepts are analysed within a case study of an educational project run at the Higher School of Education of the Polytechnic Institute of Viana do Castelo that combines the two proposals.

Keywords: Epistemologies of the South; Development Education; Global Citizenship Education; Global Education; Teachers Education.

 1. A globalização hegemónica: conceitos, assunções e consequências

A globalização marca estes primeiros anos do século XXI de forma inequívoca, de modo que é impossível analisar qualquer fenómeno social, económico e cultural contemporâneo sem nos referirmos a ela.

Para Thomas Friedman a globalização é o sistema organizativo das relações internacionais, no momento presente, tendo substituído o sistema da Guerra Fria, findo com a queda do Muro de Berlim, em 1989. Ainda segundo o mesmo autor, este sistema é um processo dinâmico que “envolve a inexorável integração dos mercados, nações-Estados e tecnologias num grau nunca antes visto” e cuja “ideia-motora” é o capitalismo de mercado livre. “A globalização significa a generalização do capitalismo de mercado livre a praticamente todos os mercados do mundo” (Friedman, 1999:33).

Bernard Charlot utiliza as palavras de David Dollar, Diretor das Políticas de Desenvolvimento no Banco Mundial, para afirmar que a globalização é “a crescente integração das economias e das sociedades no mundo, devido aos fluxos maiores de bens, de serviços, de capital, de tecnologia e de ideias” (2007:132). Apesar de ser um fenómeno essencialmente económico, a globalização também se tornou um fenómeno político, diz-nos Charlot, uma vez que propõe modelos de desenvolvimento – centrados na lei de mercado e, portanto, liberta de regulamentações estatais – amparados pela ideologia neoliberal do chamado Consenso de Washington, formulada pela primeira vez em 1989, por economistas do FMI, do Banco Mundial e do Departamento do Tesouro dos EUA, para definir a política a ser aplicada na América Latina (2007:132).

Para além do cariz económico e político, a globalização também tem um cariz cultural, uma vez que se tem pautado pela sobreposição de umas culturas sobre as outras, “aun cuando la globalización capitalista ha permitido multiplicar – es cierto – las posibilidades de expresión y comunicación al alcance de las culturas minoritarias, parece claro que mueve con mucha mayor intensidad y soltura el carro de una cultura, la occidental, (…) que responde indeleblemente a atávicos impulsos coloniales y a subterráneos intereses comerciales” (Taibo, 2009:227, 228). Nas palavras de Friedman, “ao contrário do sistema da Guerra Fria, a globalização tem a sua própria cultura dominante, e é por isso que tende a ser homogeneizadora” (2000:33, 34).

Parece inegável que a Globalização tem vindo a marcar o mundo contemporâneo, especialmente nos ditos países desenvolvidos – a facilidade de contacto e de relação entre os diferentes pontos do globo, sejam eles realizados de forma física, através da acessibilidade cada vez maior de viajar, seja através dos meios de comunicação virtuais, sobretudo através da internet, está a potenciar o surgimento de ideias que se aceitam e validam como universais, tendendo a gerar uma uniformização cultural.

O mundo está, hoje, interligado, não podendo nós, cidadãos, deixar de olhar para os fenómenos na sua globalidade. Anthony Giddens chama a nossa atenção para o facto de a globalização não dizer apenas respeito “à criação de sistemas em larga escala”, como Friedman apontava anteriormente, “mas também à transformação de contextos locais, e até pessoais, de experiência social” uma vez que todas as nossas atitudes influenciam e são influenciadas por “eventos que ocorrem do outro lado do mundo” (1997:4).

Podemos dizer que os problemas que antes eram mais circunscritos, tinham causas facilmente identificáveis e, por essa mesma razão, propostas de solução também localizadas, hoje são um desafio, no sentido em que já não nos é permitido olhar para eles com esta visão local, uma vez que é provável que as causas desses problemas não se restrinjam a fatores caraterizados pela proximidade geográfica e, consequentemente, as soluções não sejam de fácil alcance. Boaventura de Sousa Santos traduz, da seguinte forma, esta ideia: “a nossa situação é um tanto complexa: podemos afirmar que temos problemas modernos para os quais não temos soluções modernas. E isso dá ao nosso tempo o caráter de transição: temos de fazer um esforço muito insistente pela reinvenção da emancipação social” (2007:19).

De facto, os desafios do nosso tempo são imensos e é necessário não parar de procurar respostas para os mesmos. É este o tempo de transição a que Boaventura de Sousa Santos se refere, uma transição que deve ser marcada pela procura de modelos diferentes, pela procura de alternativas que se apresentem para responder às especificidades de cada região, de cada cultura, de cada indivíduo.

Boaventura de Sousa Santos alerta-nos para o “desperdício” em que se incorre na assunção desta posição: “o primeiro desafio é enfrentar esse desperdício de experiências sociais que é o mundo; e temos algumas teorias que nos dizem não haver alternativas, quando na realidade há muitas alternativas” (2007:24), afirmando não acreditar ser possível uma epistemologia geral que possa abarcar a diversidade de realidades do mundo (2007:39).

Assim, para procurarmos, neste mundo globalizado, as causas, as hipóteses e as soluções, o citado autor apresenta duas dificuldades – uma visão muito curta do presente, que tem originado uma miopia face às alternativas e que tem reforçado as teorias e modelos hegemónicos, e uma visão extremamente alargada do futuro onde, como nada é previsível e tudo acontece, sobretudo nos tempos atuais, a um ritmo vertiginoso, nada se pode preparar e reforçar.

Neste sentido, e para combater estas duas dificuldades, Boaventura de Sousa Santos apresenta dois caminhos: i) dilatar o presente – através da Teoria da Sociologia das Ausências; ii) contrair o futuro – através da Teoria da Sociologia das Emergências.

É esta a teoria que apresentaremos em seguida, baseada nos conceitos de Monoculturas – a cultura dominante, hegemónica, que cria ausências e silêncios – e de Ecologias – a visão global, onde existem várias realidades a ter em conta e, que devem emergir do silêncio para o qual foram relegadas.

No quadro abaixo (Tabela 1) podemos observar o que Boaventura de Sousa Santos considera Monoculturas e Ecologias. Às Monoculturas o autor liga o conceito de Colonialismo, significando “todas as trocas, todos os intercâmbios, as relações, em que uma parte mais fraca é expropriada de sua humanidade” (2007:59), e às Ecologias, o conceito de Emancipação, como um reconhecimento de diversas formas de saber, em pé de igualdade.

 

Tabela 1: Monoculturas e Ecologias. Fonte: Santos, B. S. 2007. Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social, São Paulo: Boitempo Editorial: 32. Adaptado.

 

Como podemos observar na tabela 1, o autor identifica que existem cinco monoculturas com caráter hegemónico que se sobrepõem a todas as outras. Estas monoculturas estabelecem o que deve ser aceite, o que é válido e bom e estigmatiza tudo aquilo que existe, paralelamente, acusando-o de não “ser uma alternativa crível às práticas científicas avançadas, superiores, globais, universais, produtivas” (2007:32).

Assim, Boaventura de Sousa Santos continua, afirmando que esta visão curta das Monoculturas cria um conjunto de tipologias estereotipadas com que se olha o outro, diminuindo-o: a monocultura do saber cria a imagem do ignorante, daquele que não acede ao conhecimento científico e que valoriza outros saberes; a monocultura do tempo linear cria a imagem do atrasado, aquele que não segue o processo considerado natural e superior; a monocultura da naturalização das diferenças, da classificação assimétrica, cria a imagem do inferior, catalogando os indivíduos sempre em comparação uns com os outros e atribuindo-lhes uma hierarquia de valor; a monocultura da escala global cria a imagem do local, do particular, como algo com menor valor, uma vez que não pode ser aplicado na globalidade, algo considerado superior; por fim, a monocultura da produtividade capitalista gera a imagem do preguiçoso e do improdutivo, atribuída a tudo o que não esteja alinhado com o conceito de produtividade reconhecido4.

Em oposição a esta visão das Monoculturas, o autor propõe a emergência de cinco Ecologias que reabilitam os silêncios, as ausências provocadas pela hegemonia já citada. O grande desafio reside, nesta Teoria da Sociologia das Emergências, em estabelecer diálogo entre todas as diferentes culturas existentes no mundo. A este respeito, Boaventura de Sousa Santos propõe um “procedimento de tradução”, ou seja, um processo intercultural e intersocial que traduza saberes em outros saberes, que traduza sujeitos e práticas de uns aos outros; que procure buscar a inteligibilidade, mas evitando a canibalização, a homogeneização, a supremacia de umas culturas sobre as outras, nomeadamente do Norte sobre o Sul.

Perante as consequências da globalização, Charlot apresenta-nos três atitudes: “a dos que querem manter a posição atual”, defendendo as suas vantagens e privilégios e fechando-se à “figura do Outro”; a dos que aderem “à atual globalização neoliberal, em nome da iniciativa, da eficácia, da liberdade, da concorrência, etc.” e uma terceira, que engloba, por exemplo, “o movimento ‘altermundialista’ (….), que recusa ao mesmo tempo o mundo atual e a globalização neoliberal e argumenta que ‘um outro mundo é possível’” (2007:135).

É neste contexto, de necessidade de procura de modelos diferentes e alternativos, que inserimos os conceitos de Epistemologias do Sul (ampla teoria de Boaventura de Sousa Santos, que engloba o que apresentamos) e a Educação para o Desenvolvimento.

2. A Educação para o Desenvolvimento: cidadãos em construção

Falar de Educação para o Desenvolvimento (ED) implica necessariamente uma incursão pela evolução histórica do seu conceito e das suas práticas de forma a melhor se poder definir o que ela representa no presente para os diversos atores que nela intervêm. Manuela Mesa propõe um modelo de cinco gerações da ED5, onde analisa as alterações de conceitos e de práticas da ED ao longo da sua existência, caraterizando cada uma delas.

A autora inicia o percurso nas décadas de 1940 e 1950, onde encontra os antecedentes da noção de ED, ainda que numa fase muito inicial que denomina de “caritativa-assistencial”. Neste período, o conceito de ED não é utilizado, aplicando-se os termos de ajuda humanitária, assistência ou beneficência. A segunda geração, desenvolvida nos anos 60, é denominada de “ED de cariz desenvolvimentista”, uma vez que assenta na crença inabalável de que é possível todos os países atingirem o desenvolvimento, cuja fórmula tinha sido encontrada pelos países do Norte, numa visão muito eurocêntrica. Nos anos 70 surge, segundo a autora, a terceira geração da ED, que denomina de “ED crítica e solidária”. Nesta fase, o conceito espelha as heranças do processo de descolonização e dos movimentos sociais e intelectuais do final da década de sessenta. A ED que se difunde é agora muito baseada na crítica ao passado colonial e à pesada herança que este deixa nos países do Sul e centrada na autonomia política e financeira. Uma quarta geração de ED carateriza a década de 1980, com a ideia inovadora de “ED para o desenvolvimento humano e sustentável”, com enfoque nas questões ambientais e na inclusão social. Por fim, a década de 1990 traz-nos a quinta geração, a geração da “ED para a cidadania global”6,fundamental no entendimento atual que se tem da ED. A globalização e a privatização da economia mundial, e os consequentes fenómenos de exclusão, trazem grandes desafios para o setor social, vindo exigir das sociedades uma atitude de compromisso, de empenhamento cívico, de grande ativismo, de influência política, de uma democracia mais forte, onde os cidadãos sejam atores empenhados e comprometidos.

Tentando fundamentar o modelo da ED como o vê a quinta geração, como educação para a cidadania global, ou cosmopolita, Boni e Pérez-Foguet (2006) propõem o modelo que apresentamos na tabela 2:

Tabela 2: Fundamentação da Educação para o Desenvolvimento. Fonte: Boni, A. & Pérez-Foguet, A. (Coord.) 2006. Construir la Ciudadanía global desde la universidad. Propuestas pedagógicas para la introducción de la Educación para el Desarrollo en las enseñanzas científico-técnicas. Intermón Oxfam, Ediciones e Ingenieria Sin Fronteras: 48. Adaptado.

Segundo os autores, a fundamentação ideológica, baseia-se no modelo de desenvolvimento à escala humana, de Max-Neef, que tem uma visão universalista do desenvolvimento e dos direitos humanos. A fundamentação axiológica tem a sua raiz nos valores da Declaração Universal dos Direitos do Homem. A fundamentação pedagógica constrói-se a partir dos escritos de Paulo Freire sobre a educação popular e sobre a educação como prática social e crítica da sociedade, educações que têm em vista a emancipação das pessoas a quem se dirige. A fundamentação psicológica encontra a sua raiz nas teorias do desenvolvimento do juízo moral, de Kohlberg, que defende que o indivíduo possui um sistema de regras morais, a consciência moral, que evolui de estádios mais básicos para estádios mais complexos no âmbito da justiça moral, e nas teorias, tal como a de Vigotski, que defendem uma perspetiva socio construtivista da aprendizagem.

Este processo não se baseia, assim, num conteúdo técnico, mas num enfoque para o conjunto de todo o curriculum. Não estamos a falar apenas de uma modalidade educativa, mas de uma “conceção geral da educação” (ACSUR, 1998:19) que implica, da mesma maneira, a mobilização de conhecimentos, competências e atitudes/valores.

Como temos vindo a refletir, a ED não é um processo acabado, não é um processo com “receitas”, mas antes uma busca, uma atitude perante o mundo, desconstruindo preconceitos e estereótipos, para, desta forma, melhor nos podermos posicionar perante ele e melhor podermos perceber diferenças, desigualdades e conflitos e melhor podermos intervir na sua prevenção e resolução.

Neste artigo, referimo-nos à ED enquanto «processo dinâmico, interactivo e participativo que visa: a formação integral das pessoas; a consciencialização e compreensão das causas dos problemas de desenvolvimento e das desigualdades locais e globais num contexto de interdependência; a vivência da interculturalidade; o compromisso para a acção transformadora alicerçada na justiça, equidade e solidariedade; a promoção do direito e do dever de todas as pessoas, e de todos os povos, participarem e contribuírem para um desenvolvimento integral e sustentável» (Despacho n.º 25931/2009, p.48395).

Na atualidade, investigadores nas áreas de estudos pós-coloniais vêm alertar para um perigo que a ED pode correr – o de, na sua análise do mundo, apenas o olhar do ponto de vista ocidental, menosprezando toda a sua complexidade, e, com um toque de superioridade disfarçado, considerar que encontrou a solução para os problemas do mundo. Esta forma de pensamento pode, rapidamente, e como denunciam diversos autores, tornar-se uma nova forma de colonialismo camuflado sob um espírito de solidariedade desequilibrado (Andreotti, 2006; Andreotti & de Souza, 2011; Bourn, 2008).

Andreotti e de Souza expressam desta forma o seu temor:

Some of these initiatives to produce global subjectivities tend to prescribe the adoption of strategies that very often foreclose the complex historical, cultural and political nature of issues, identities and perspectives embedded in global/local processes and events and in the production of knowledge about the self, the other and the world. In spite of the complexity of contemporary globalization, many of these initiatives seem to echo the simplistic us/them, here/there binarisms that have been denounced and addressed by postcolonial critiques (2011:1).

Para estes autores, um dos grandes focos da ED deve estar na assunção de que todo o conhecimento é parcial e incompleto, baseado nas vivências pessoais de cada um e que, por essa razão, cada cidadão deve estar preparado para assumir as limitações da sua visão do mundo, para se questionar, para “desaprender” (unlearning) e transformá-las no contacto com os outros. Andreotti (2006) cria o conceito de soft global citizenship education e critical global citizenship education dizendo que a primeira tende a ser uma visão “curta” sobre os fenómenos mundiais caindo, muitas vezes, em leituras reducionistas das realidades, propondo, assim, também, soluções ou atitudes redutoras que, muitas vezes, tendem a fazer perpetuar as realidades que tentam combater, enquanto a segunda tende a procurar as causas estruturais e complexas e a ter uma atitude de procura de espaços que permitam a compreensão e o surgimento de novas leituras do mundo.

Este é um desafio para todos e todas que dedicam o seu trabalho à ED, seja em instituições dedicadas ao desenvolvimento, como as ONG, por exemplo, seja as entidades educativas que trabalham diretamente com estudantes ou na formação de professores.

3. A Educação para o Desenvolvimento na Formação Inicial de Professores: uma experiência inovadora

O Instituto Politécnico de Viana do Castelo (IPVC) elegeu a área da ED como sendo parte integrante do seu Plano Estratégico no quadro do Eixo Relações com a Sociedade e Internacionalização. A Escola Superior de Educação (ESE-IPVC), enquanto instituição pública de ensino superior que forma professores e educadores, assumiu que a área de ED deve, conforme os princípios orientadores emanados da cooperação portuguesa e de organismos internacionais, ser uma aposta fundamental para a compreensão das questões complexas do desenvolvimento, tais como: a divulgação e discussão dos conceitos, princípios e competências para a Cidadania Global junto da comunidade escolar; a implementação de práticas de Educação para a Cidadania Global e a apresentação de propostas para a revisão dos programas da formação inicial, em serviço e contínua de professores e educadores.

A criação do Gabinete de Estudos de Educação e Desenvolvimento (GEED), gabinete do IPVC que privilegia na sua ação a área de ED, foi uma das grandes faces visíveis deste envolvimento do IPVC. Através deste seu gabinete, o IPVC, como já referido, foi convidado pelo IPAD para o planeamento, acompanhamento e avaliação da ENED, fazendo ainda parte deste projeto a capacitação da ESE na área de ED (protocolo assinado em julho de 2011 e em vigor até junho de 2016).

É fundamental reconhecer o papel das Escolas Superiores de Educação, dado o facto de assumirem, em Portugal, grande parte da formação inicial de professores do ensino básico e um papel cada vez mais relevante no que respeita à promoção de ações de formação e de produção de conhecimento no domínio da ED.

O público do ensino superior – estudantes, futuros professores, formadores e investigadores – e a comunidade educativa dos agrupamentos de escolas – professores, direção e associação de pais – são considerados públicos privilegiados uma vez que se aponta para uma educação integral do indivíduo.

As escolas desempenham um papel primordial no desenvolvimento do conceito de ED, devendo preparar-se para estar à altura do desafio que lhes é pedido, o de ajudarem a educar cidadãos atentos ao Outro e ao mundo que o rodeia, cidadãos participativos que se empenhem na construção de relações mais justas e fraternas, que possam, de facto, intervir e alterar a ordem atual. As temáticas de ED devem ser trabalhadas de forma transversal em todas as áreas letivas e não letivas e cabe à própria escola ter uma atitude global assente nestes princípios, que inspire e instigue os alunos no seu dia-a-dia.

Neste contexto, a ESE-IPVC optou por introduzir esta temática na sua Unidade Curricular – Iniciação à Prática Profissional 3 (IPP3), da licenciatura em Educação Básica, contribuindo para a Medida 2.1 da Estratégia Nacional de ED, que se refere à integração da ED na formação inicial que profissionaliza para a função docente. Sendo uma licenciatura dentro dos critérios do denominado processo de Bolonha, a licenciatura de Educação Básica lança, nos seus três anos, as bases para que os alunos possam ter informação e experiências suficientes que permitam alicerçar a escolha da especialidade de ensino que pretendem seguir no Mestrado, e optarem por prosseguir para o 2º ciclo de estudos – o ensino pré-escolar, o 1º ciclo do ensino básico (1º ao 4º ano) e/ou o 2º ciclo do ensino básico (5º e 6º ano).

A Iniciação à Prática Profissional pretende, ao longo dos três anos, oferecer um espaço de “(…) trabalho de campo em escolas cooperantes que inclui observação e colaboração em situações de educação (…)” (Programa da Unidade Curricular Iniciação à Prática Profissional III, 2010/2011, p.1). No último ano da licenciatura, o terceiro, a Unidade Curricular (UC) organiza-se em torno do conceito de estágios trimestrais nos já referidos três níveis de ensino.

No programa de IPP3 são propostos os objetivos da Unidade Curricular, sendo de salientar o de Desenvolver o conhecimento sobre a Educação Básica e, mais especificamente, sobre os níveis da educação pré-escolar, 1º ciclo do EB e 2º Ciclo do EB, nas dimensões organizacional, curricular e pedagógica (Programa da Unidade Curricular Iniciação à Prática Profissional III, 2010/2011, p.2).

O GEED foi chamado a colaborar na referida Unidade Curricular, tendo ficado responsável por desenvolver os conteúdos de ED no estágio relativo ao 2º ciclo do Ensino Básico.

O objetivo era a dinamização de nove blocos letivos de 2 horas cada para os cerca de 75 alunos (distribuídos pelos três trimestres, cerca de 25 alunos por trimestre).

No processo de pensamento sobre a metodologia de inserção dos conteúdos de ED, incidiu-se, sobretudo, nas necessidades dos públicos-alvo: os estudantes da licenciatura de Educação Básica, mas também os alunos do 2º ciclo com quem iriam trabalhar, ao intervir em sala de aula.

O modelo escolhido pressupunha a eleição, por trimestre, de um tema de ED que fosse trabalhado pelos futuros professores. Como critério de seleção para o tema trimestral optou-se por, no ano letivo 2011/12, procurar no calendário de direitos humanos da ONU uma data cujo tema fosse atrativo e cuja data fosse conveniente para o calendário escolar. Nos seguintes anos (2012/13 e 2013/14), uma vez que já existiam pontos de contacto entre a ESE e as escolas-cooperantes, foi pedido às escolas que sugerissem temas de interesse e a equipa da ESE foi responsável pela seleção dos temas, sempre com base no calendário dos direitos humanos da ONU e cruzando com os temas sugeridos pelas escolas.

Tabela 3: Temáticas Trabalhadas no âmbito da ED, nos 3 anos

 

Após se ter pensado neste formato para os estágios do 2º ciclo, desenvolveram-se encontros com os seis agrupamentos de escolas potenciais cooperantes, localizados no concelho de Viana do Castelo, com o objetivo de apresentar a proposta. Dos seis agrupamentos, cinco aceitaram o desafio e tornaram-se parceiros no processo nos anos letivos de 2011/12 e 2012/13. No ano letivo 2013/14, foram novamente contactados os seis agrupamentos e todos acederam ao convite, tendo o projeto sido alargado. As direções das escolas comprometer-se-iam a encontrar professores disponíveis para integrar nos tempos letivos da disciplina de Formação Cívica as intervenções dos alunos estagiários.

A ESE comprometeu-se em envolver os professores das escolas-cooperantes no processo de idealização dos projetos por parte dos alunos estagiários, de forma que estes as validassem antes da sua execução. Esta atividade foi, então, pensada e elaborada pelos alunos estagiários, validada pelos responsáveis da UC e pelas escolas cooperantes e, por fim, implementada nas turmas pré-definidas.

O desafio lançado aos futuros professores foi o de, com estes temas em mente, prepararem três intervenções a acontecer nas escolas cooperantes: as duas primeiras na sala de aula e uma última que fosse a apresentação de uma atividade final que envolvesse mais públicos para além da própria turma.

Podemos analisar a estrutura final do módulo, por trimestre, no quadro seguinte:

Tabela 4: Estrutura trimestral do módulo IPP3-2º ciclo.

 

De uma forma geral, ao longo dos 3 anos letivos do projeto, a estrutura global das sessões manteve-se. No entanto, sentiu-se a necessidade de manter uma certa flexibilidade para proceder a adaptações necessárias quer aos tempos letivos das escolas-cooperantes quer da própria ESE, sem a qual o processo poderia ter ficado comprometido.

4. Metodologia de avaliação do projeto

Na ESE-IPVC, no ano lectivo 2011/12 ficou estabelecido que a temática de ED seria integrada na UC de IPP3 e que paralelamente ao acompanhamento aos estágios, o GEED desenvolveria a avaliação do respetivo processo. Para tal, foram sendo aplicados questionários ao longo dos três anos, aos 234 futuros professores que frequentaram esta UC, aos 40 professores cooperantes e, por fim, aos 16 diretores das escolas que cooperaram neste processo, tal como poderemos ver no seguinte quadro:

Tabela5: Público Alvo do Estudo

 

Foram entregues questionários de tipo misto, caracterizados por questões fechadas onde os respondentes teriam que avaliar a questão e responder de acordo com uma escala de intensidade onde o número 1 representava pouco e o 5 representava muito e por questões abertas onde o inquirido poderia responder livremente (Ghiglione & Matalon, 1992). Os questionários dirigidos aos futuros professores foram entregues no final de cada trimestre, enquanto os dirigidos aos professores coooperantes e aos diretores apenas foram entregues no final do processo, ou seja no final do ano letivo. A resposta ao questionário é facultativa e, portanto, como se pode observar na tabela 1, nem todos os participantes deste processo entregaram o questionário devidamente preenchido, no entanto, é de referir que a taxa de resposta é de 68,8% para os estagiários, de 70% para os docentes e de 50% para as direções das escolas cooperantes.

5. Apresentação e discussão de resultados

No sentido de se avaliar a intervenção em ED no âmbito da unidade curricular de IPP3, o questionário aplicado aos futuros professores incidiu, por um lado, de uma forma quantitativa, na avaliação global do módulo, dos conteúdos, do tempo usado durante as atividades e da equipa formativa, por outro, de uma forma mais qualitativa, nas principais aprendizagens efetuadas no decorrer do módulo que serão úteis para a vida profissional do futuro docente, no que deveria ser alterado e, por fim, na recolha de outros comentários e/ou sugestões.

Neste artigo optou-se por analisar essencialmente o resultado das perguntas abertas, nomeadamente, as respostas relativas: (1) aos conteúdos e (2) à caraterização da função de professor em temáticas de ED.

A referida eleição prende-se com o desejo de analisar o modo como os estudantes do ensino superior, participantes na experiência de IPP3, entendem as temáticas de ED e como estas têm impacto sobre a sua visão do mundo, alargando o seu olhar para a «ampla diversidade epistemológica» (Santos, 2010) que apresentamos no início do artigo.

Será que os futuros docentes capacitados em ED acreditam que, na realidade, «outro mundo é possível»? Que conhecimentos, que competências, que valores/atitudes é que estes professores conscientes desta diversidade epistemológica, possuem?

Nas respostas relativas à avaliação dos conteúdos em ED os futuros professores consideram que estes conhecimentos:

  • promovem o «despertar» dos indivíduos para o mundo e a sociedade que os rodeia;
  • são extremamente importantes para formar melhores cidadãos, ativos, informados e responsáveis;
  • dotam os cidadãos de ferramentas que lhes permitem converterem-se em agentes de transformação;
  •  enriquecem a formação de professores atual.

Desde já poder-se-á evidenciar que os conhecimentos em ED concorrem para o procedimento de tradução que Boaventura de Sousa Santos refere, pois despertam os indivíduos para a realidade envolvente, permitem a formação de melhores cidadãos (ativos, informados e responsáveis) e dotam-nos de instrumentos para se tornarem agentes de transformação intercultural e intersocial, traduzindo saberes e práticas e procurando a intelegibilidade sem imposição.

Considerando o papel do futuro professor, optou-se por questionar os estagiários no sentido de que estes registassem algumas das competências que os próprios consideram importantes para desempenhar a sua função. Reuniram-se as seguintes opiniões:

  • o futuro professor deve, a um nívelpessoal, ser uma pessoa ativa e sempre disponível para aprender mais e expor-se (4), desenvolver espírito crítico e capacidade de análise (6), ter uma perspetiva alargada e aberta sobre o mundo (2), ter capacidade de inovação (3), ter sentido de cooperação (2), demonstrar empatia, colocando-se no lugar do outro (3), possuir capacidade de improviso (3), de mediação e exposição das ideias em grande grupo (4), ter consciência do mundo que o rodeia não esquecendo a sua realidade local, deve possuir capacidade de pesquisa e manter-se bem informado e atualizado (6), , ser coerente e flexível no que faz (2), compreensivo (2), responsável (1), disponível para com o próximo (1), equilibrado (1), sensível e justo no tratamento para com as pessoas (1); necessita ainda de conhecer e trabalhar as dinâmicas sociais e económicas, as culturas de cada nação, os problemas globais (2), incentivar o pensamento, a reflexão e a discussão de ideias sobre a realidade educativa do mundo e a importância da escola na vida de cada um (6). Ao nível da comunidade, deve envolver a comunidade educativa (1), possibilitando o alargamento da educação a todos (1).
  • o futuro professor a nível pedagógico, para além de se basear no domínio dos conteúdos temáticos (27), deve sensibilizar os alunos para a importância de práticas de cidadania global (23), preocupar-se em motivar os alunos (16), escutando-os, falando com eles, respeitando as suas opiniões e estimulando as discussões (7).

No que se refere a atitudes/valores os futuros professores consideram importante ter uma atitude dinâmica (4), ser um exemplo para os alunos, demonstrando atitudes e práticas de civismo para com os outros (5), possuir e demonstrar valores (9), como espírito solidário, justiça e inclusão (5), para poder formar bons cidadãos, ativos e conscientes dos seus direitos e deveres (16).

Desta feita, o papel do professor fundamenta-se desde logo pelas posturas, atitudes, valores e visão que poderá ter face à realidade complexa que o rodeia, quer a nível local quer a nível global. Tal como Boaventura de Sousa Santos refere ao enunciar a ecologia da transescala, evidencia-se que o professor capacitado em ED deverá sentir a necessidade de articular as escalas locais, nacionais e globais ao desenvolver o processo de ensino-aprendizagem.

Ao longo dos questionários foram surgindo palavras que pretendiam descrever as competências de quem pretende desenvolver atividades e conteúdos de ED, tais como: vontade, interesse, participação, empenho, entusiasmo, coesão, eficácia, inovação, perseverança, autoavaliação, solidariedade, cidadania, organização, carisma, inovação e pró-atividade. São palavras de cariz motivacional intrínseco, que levam à ação, à procura e abertura à “figura do Outro”.

Em suma, o professor capacitado em  ED seria alguém com uma visão alargada sobre o desenvolvimento humano, alguém muito consciente dos valores que legitimam os direitos universais do homem, alguém que fomenta a liberdade de pensamento, que vê a educação como uma prática social e como uma crítica da sociedade, utilizando o seu exemplo para motivar e capacitar os seus estudantes civicamente e promover a respetiva emancipação. Seria alguém com uma consciência moral mais desenvolvida, mais complexa, alguém em procura constante de aprendizagem e de atualização dos seus conhecimentos, competências, atitudes e/ou valores. Citando um dos alunos, o professor deve ser capaz de “consciencializar os alunos para alguns dos paradigmas presentes em pleno séc. XXI”.

Os futuros professores consideram que este módulo lhes permitiu ter consciência de que a temática de ED é fundamental não só para a sua formação profissional mas também para a formação de melhores cidadãos. Assim, a formação inicial em ED permitiu uma maior abertura de pensamento sobre o mundo, assim como uma maior consciência e comprometimento com a transformação social, seja nos estudantes – futuros professores, seja nos alunos do ensino básico.

Para além das opiniões dos estudantes da IPP3, foram recolhidas as opiniões dos professores e diretores das escolas cooperantes, elementos chave no desenvolvimento deste processo, a fim de compreender como estes avaliariam este processo. Nestes questionários há que sublinhar as respostas acerca da disponibilidade da colaboração na UC de IPP3 num novo ano académico: a totalidade dos professores e dos diretores responde que o processo de ensino-aprendizagem sai muito enriquecido com a intervenção de outros educadores; com a diversificação de conteúdos e estratégias utilizados pelos estudantes (1), destacando as temáticas e os conhecimentos construídos através de uma abordagem construtivista do saber (1), para além do seu alinhamento com valores que figuram no Plano Anual de Atividades das escolas.

Um dos desafios que este processo teve de vencer no ano letivo de 2012/13, foi o de encontrar um espaço de ação nas escolas, uma vez que houve a supressão da hora letiva atribuída à Formação Cívica7, passando este tema a ser tratado de forma transversal por todas as disciplinas, o que poderia ter sido um entrave no desenvolvimento de todo este processo. No entanto, nos cinco agrupamentos que acompanham o processo desde 2011, o tempo reservado à “oferta de escola”8  foi atribuído às questões da Cidadania, o que possibilitou a manutenção da colaboração (aliás, a existência do trabalho conjunto com a Escola Superior de Educação foi fundamental para esta opção das escolas). Esta opção, por um lado, reafirma a crença no papel das escolas enquanto locais privilegiados para a formação integral dos alunos e, por outro, reafirma o papel fundamental da colaboração entre o ensino superior e a educação básica em projetos “ecológicos” conjuntos, lembrando, mais uma vez, as Epistemologias de Boaventura de Sousa Santos.

6. Lições aprendidas e considerações finais

Esta experiência, consolidada em três anos letivos, permite já uma análise de dados e de resultados crítica, a partir dos quais se podem tirar conclusões, retirar lições e entrever adaptações a serem feitas.

Todos os participantes, tais como: estagiários, professores cooperantes e membros das direções dos agrupamentos consideram que os conhecimentos construídos em ED são úteis, tanto para a formação de futuros professores, como para a formação dos alunos do ensino básico. Este é um fator que consideramos muito importante num momento de reformas educativas como a atual que insiste nas áreas ditas científicas e técnicas e aposta menos nas áreas relacionadas com a formação humana dos estudantes como futuros cidadãos.

De referir ainda algumas dificuldades sentidas, devidamente refletidas, com a finalidade de identificar e combater as “visões limitadas” das Monoculturas, reforçadas pela visão hegemónica da globalização, propondo, em sua substituição, a visão mais ampla das Ecologias:

  • a dificuldade sentida na mudança de discurso e de comportamentos dos alunos estagiários. Veja-se o exemplo da multiculturalidade. Talvez devido ao pouco tempo dedicado à exploração dos conteúdos com os estagiários, antes de estes partirem para as sessões nas escolas, ou devido à formatação preconceituosa a que todos estamos sujeitos, não foi fácil abandonar uma linguagem baseada em estereótipos, enraizada em posições de monoculturalismo ou de multiculturalismo conservador/eurocêntrico. Inicialmente, os estagiários apresentaram propostas de tratamento do tema muito baseadas em categorias com caraterísticas pré-definidas, em vez de trabalharem com os seus alunos o mais importante – a destruição destes estereótipos, quase sempre construídos sobre assunções erradas sobre os outros. Este facto, ainda que negativo, permitiu gerar uma verdadeira discussão de multiculturalidade. Nesta exploração os estudantes puderam ganhar consciência sobre a multiplicidade de culturas em presença na própria escola (Banks, 1997; Stoer & Cortezão, 1996). A este propósito Stoer e Cortezão falam de daltonismo cultural do professor quando este revela insensibilidade à heterogeneidade cultural dos seus alunos. Deste modo, estudantes estagiários, alunos e professores das escolas cooperantes puderam explorar uma maior abertura à “diversidade epistemológica do mundo” (Santos, 2010).
  • a dificuldade em explorar alguns conteúdos e a respetiva construção de conhecimentos numa vertente de Educação para o Desenvolvimento, ficando, algumas vezes, apenas por uma abordagem de cidadania local, sem a perspetiva global. Veja-se, por exemplo, o tema do diálogo intergeracional, que apenas foi explorado localmente, não se considerando como este tema poderia ser abordado em outros países, outras culturas. Ou, por exemplo, como é que este tema poderia ser potencializado no sentido de ser um tema ED na sua globalidade, através da análise dos fenómenos demográficos, políticas de natalidade, etc. As articulações entre o local e o global constituem uma outra fonte a explorar para a construção de uma cidadania global. Em ED interessa pensar o desenvolvimento da cidadania em múltiplas escalas (local, nacional, global) e a sua articulação, utilizando o conceito de “transescala” de B. S. Santos.

A um nível metodológico, sentiu-se que a (1) aposta na metodologia de projeto foi a mais acertada, tendo em conta as suas potencialidades para a construção de conhecimento realizada pelo próprio aluno, o desenvolvimento da autonomia e a formação de sujeitos mais críticos (Leite, Malpique & Santos, 1988). Simultaneamente, considerando o curto tempo de permanência dos estagiários nas escolas, esta metodologia permitiu que a intervenção fosse pensada como um todo, que tivesse um sentido, uma direção, “um princípio, um meio e um fim”. O trabalho de projeto, gerado a partir de problemas ou questões, é uma abordagem que potencia a abertura da escola ao real (Kilpatrick, 1970; Leite, et al. 1988). Conseguiu-se desta forma minimizar o risco de a ida dos estagiários às escolas poder acabar por ser uma experiência fragmentada e avulsa, sem possibilidade de aprendizagens consolidadas para todos os intervenientes. Outro fator muito referido pelos inquiridos, naturalmente associado à metodologia de projeto adotada, foi o facto de os orientadores, durante o processo de planificação, insistirem na (2) utilização de metodologias ativas, dinâmicas, inovadoras, cativantes da atenção dos alunos; metodologias baseadas nas experiências anteriores dos alunos e centradas na própria construção do saber. Estas metodologias recorrem a abordagens construtivistas, nas quais os alunos são colocados no centro do processo de aprendizagem, como autores da construção do seu próprio conhecimento, na interação com o mundo real ou das ideias (Piaget,1980), e as abordagens socio construtivistas, nas quais a interação social no grupo é mediadora no processo de construção de conhecimento (Vigotski, 1994). Os professores das escolas cooperantes reconhecem que aprenderam muito com os estagiários ao nível das metodologias utilizadas. Saliente-se, ainda, a grande (3) aprendizagem sobre a valorização dos processos, em detrimento da avaliação dos resultados. Este ponto é essencial quando se trabalham temas ligados à ED ou à Cidadania porque estes não se podem medir nem avaliar predominantemente por resultados, por produtos, por indicadores exclusivamente quantitativos, mas representam muito quando inspiram mudanças, quando permitem experimentar novas realidades, quando despertam atitudes e valores. No texto de uma das reflexões de uma das estagiárias, evidencia-se esta preocupação:

“(…) no final da segunda sessão, já tínhamos a resposta se a nossa intervenção na escola tinha sido marcado pelo sucesso ou pelo insucesso porque independentemente da forma como iria correr a apresentação final o nosso principal objetivo era o de contribuir para criação nos alunos de uma mentalidade de cidadãos globais. (…) A avaliação ficou concluída quando no final da segunda sessão surgiu um problema por algumas raparigas também quererem cantar a parte “a solo” e os rapazes não aceitarem muito bem. Rapidamente a reação da restante turma foi dizer: “Oh, professora, isto também é uma discriminação”, foi aí que percebemos que o conceito de discriminação tinha ficado bem consolidado (…). A situação acabou mesmo por ser resolvida de forma autónoma pelos alunos sem a nossa intervenção. Decidimos atribui-lhes essa responsabilidade (…)” (estagiária, 2011/12).

Salientam-se as principais vantagens atribuídas a este processo, referidas pelos diversos respondentes aos inquéritos:

  • a possibilidade de uma grande interação entre diversos atores da comunidade educativa, o que se revelou uma aprendizagem para todos;
  • o reconhecimento das temáticas de ED e de cidadania global como fundamentais para as escolas, no sentido de formar melhores cidadãos, ativos, informados e responsáveis;
  • a identificação e valorização de ferramentas imprescindíveis para a profissão, como a planificação, por exemplo, bem como de metodologias e práticas educativas diversificadas e desafiadoras;
  • a centralidade colocada na metodologia de projeto, que potencia o trabalho em grupo, a participação dos alunos e a cooperação entre todos os atores da comunidade educativa;
  • a possibilidade de centrar as aprendizagens no desenvolvimento humano dos alunos, bem como de centrar as reflexões nos processos e não nos resultados.

Por tudo isto, poder-se-á concluir que a experiência do módulo de IPP3 está a contribuir para que os estudantes da licenciatura em Educação Básica da ESE de Viana do Castelo, futuros professores, tenham, em linha com a teoria das Epistemologias do Sul e da Educação para o Desenvolvimento, uma formação integral para que possam descobrir todo o potencial de uma educação emancipadora, que busca a transformação social, uma educação que forme cidadãos capazes de enfrentar os desafios da sociedade contemporânea, para si mesmos e para os seus alunos.

 

[1] Colaboradora do Gabinete de Estudos para a Educação e Desenvolvimento da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Viana do Castelo (GEED/ESE-IPVC) e investigadora do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto (CEAUP).

[2] Doutoranda em Ciências de Educação, especialidade em Administração e Gestão Educacional, na Universidade Católica Portuguesa e investigadora do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto (CEAUP).

[3] Docente da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Viana do Castelo (ESE-IPVC), doutorada em Psicologia e investigadora do Centro de Psicologia da Universidade do Porto (FPCEUP).

[4] Conferência de abertura proferia na Escola de Verão “Learning from the South: towards intercultural translations”, Curia, 30 de junho de 2014.

[5] Baseada no modelo das três gerações de análise das ONGD de David C. Korten e em outras, posteriores, que lhe acrescentam uma quarta e quinta geração (Mesa, 2000). Existem, neste momento, algumas variações deste modelo de ED, propostas por diversos autores (ver Argibay & Celorio, 2005).

[6] Ainda que não exista um consenso entre os autores, as autoras, nesta linha de Manuela Mesa, utilizam, neste artigo os conceitos de Educação para o Desenvolvimento e de Educação para a Cidadania Global como similares, representando um mesmo conceito educativo.

[7] Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho.

[8] Tempo que cada escola pode utilizar para oferecer as temáticas que considere mais importantes, reforço de disciplinas como Matemáticas ou Português, por exemplo, ou outras.

Referências bibliográficas

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