Luísa Teotónio Pereira 1

Tem-se escrito, especulado, discutido muito como é que será o tempo pós-pandemia. Por vezes, com afirmações definitivas como “tudo mudou” e “nada ficará igual”. Sendo perita em coisa nenhuma, tentarei partilhar algumas pistas que fui configurando nas últimas semanas.

A ideia que gostaria de explorar neste texto é a de que, para além de termos muito mais incertezas do que certezas, nem tudo ficará igual, como nem tudo mudará. Depende dos níveis de análise e de como eles se entrecruzam. Depende das ações de diferentes atores, da sua preparação e das suas formas de atuação. Depende da relação de forças. Nada está determinado. Sem dúvida que algumas coisas mudarão. A pergunta crucial é: terão a capacidade de desafiar e romper com a máxima “É preciso que alguma coisa mude, para que tudo fique na mesma”?

“Tudo”, aqui, significa repartição de riqueza e poder, em formas de organização social sem fronteiras de tempo nem de espaço.

Não sabendo qual a resposta, tenho duas convicções: já era urgente, e é uma oportunidade.

Sentindo como o sismógrafo

Todos sentimos o abalo e as suas mil réplicas. Cada um/a de maneira diferente. Do epicentro para cada vez maiores lonjuras, em ondas sucessivas, irreprimíveis e imprevisíveis. Viajando de centro em centro, alastrando pelas semi-periferias, aterrando nas vastas periferias do mundo, indo e vindo, com avanços e recuos.

Criando novos tipos de epicentros. A emergência sanitária obrigou a mudanças de vida quotidiana, que implicaram a paralisia de muitas atividades económicas, que redundaram em nunca vistos níveis de desemprego e perda de atividade em poucas semanas, que provocaram impossibilidades de pagamento de bens essenciais, como a alimentação, de consumos de água, gás e eletricidade, de prestações ou rendas das habitações. 

As medidas de confinamento ditaram a alteração da mobilidade, o que fez emergir e revalorizou as iniciativas e os protagonistas de proximidade, enquanto interrompia cadeias de escoamento de todo o tipo de produtos, o que criou problemas de armazenamento, indo desde o petróleo até aos cabritos da Páscoa, levando a incomensuráveis estrangulamentos económicos em certos países e numa série de empreendimentos, ao mesmo tempo que reduzia a poluição atmosférica e sonora.

E sucessivamente.

Vendo com os nossos próprios olhos

Muito fomos desvendando (de teoria passou à realidade) e apreendendo em pouquíssimo tempo:

  • como se tornaram visíveis muitas pessoas e profissionais indispensáveis, socialmente pouco consideradas, em geral mal pagos, frequentemente precários, às vezes mesmo desempregados;
  • como tantas pessoas e profissionais enfrentam diariamente riscos e medos, individuais e familiares, para salvar vidas da doença, da solidão e da pobreza, e para que haja sempre acesso a bens de primeira necessidade;
  • como há milhares e milhares de pessoas desprotegidas, desde as que não têm abrigo, as que vivem em casas, em bairros e em zonas sem condições de habitabilidade, em lares ou em prisões sobrelotadas, às que tentaram fugir da fome, da guerra, da perseguição, da vida sem dignidade, às que são doentes ou têm incapacidades específicas, às que estão envelhecidas e /ou sozinhas, às que vivem do ganho mensal ou diário e não sabem o que será o mês ou o dia seguinte…
  • como foram surgindo iniciativas solidárias, de entre-ajuda, de procura de respostas a novas e urgentes necessidades, incluindo de reorganização social e produtiva;
  • como os serviços do Estado e as políticas públicas são fundamentais, são o esqueleto de uma sociedade – e não só ao nível da saúde – mas também da educação, da segurança social, da justiça, dos transportes seguros e não poluentes, da habitação…;
  • como o material médico e sanitário de primeira necessidade era inexistente localmente e teve de ser importado, percorrendo milhares de quilómetros e gerando disputas e golpes baixos na competição para o obter em tempo útil;
  • como tanto quanto a necessidade de uma vacina, há uma imensa preocupação com o acesso universal à vacina;
  • como a informação se tornou um bem essencial, mas também como podemos “apanhar o vírus” através dela, de tal modo está por vezes centrada nele, obliterando tudo o resto;
  • como turistas em todo o mundo foram propositadamente resgatados pelos respetivos governos, enquanto os migrantes estrangeiros ou internos foram deixados à sua sorte, quando não violentamente reprimidos;
  • como alguns poderes, e os seus correligionários, em todos os continentes,  têm aproveitado o momento para culpabilizar quem não tem culpa, para cercear direitos estabelecidos, para fazer avançar políticas securitárias e de vigilância das e dos cidadãos, para militarizar respostas e situações;
  • como as guerras e conflitos, e presumivelmente as vendas de armas, não pararam, ainda que alguns tivessem abrandado.

Entre outras coisas.

Socorrendo-nos do binóculo

Para compreender tanto que registamos, precisamos de olhar de novo, com mais atenção, para o que já sabíamos antes de ter eclodido a pandemia. Porque afinal muito não é novo, só se tornou mais visível, condensado e intenso.

Vivíamos em crise, em estado agudo de emergência climática, que se tornou incontornável a seguir a uma crise  financeira transformada em crise económica e social, de grande envergadura à escala mundial, mas com repercussões mais drásticas nos países do centro, já que a periferia tinha passado por situações semelhantes duas ou três dezenas de anos antes, e estava depauperada e dependente.

Por causa dos remédios aplicados nestas circunstâncias, aprofundou-se, ao longo das últimas décadas, uma brutal crise de desigualdade global, tal como se demonstrou em diversos estudos e dados estatísticos, mas também nas realidades da vida nas grandes cidades e em muitas regiões esvaziadas, assim como na crescente precarização do trabalho.

Uma crise particular atingiu os serviços públicos, que foram alvo de cortes de investimento assinaláveis, tendo como consequência o aumento da desproteção, da fragilização de laços de pertença, de sentimentos de abandono, angústia e revolta.

Nesta vertigem, criaram-se condições para crises políticas que jogaram com os medos, incertezas e desorientação das pessoas, levando-as a acreditar nas vantagens do pensamento único e do poder forte, a privilegiar o seu bem-estar contra o dos outros, e a apoiar propostas populistas e radicalmente anti-democráticas.

Os avanços educacionais, científicos e técnicos, as promessas de cooperação internacional no quadro dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável ou dos Acordos de Paris sobre o combate às alterações climáticas, a solução pontual de alguns conflitos, não conseguiram contrariar a dinâmica das crises que se seguiam umas às outras, enrolando-se umas nas outras – antes se subordinaram a ela. Vivíamos numa crise sistémica.

Nada disto acabou, nem ficou em suspenso com a pandemia. Simplesmente, a crise sanitária juntou-se e interage com todas as outras, passando a fazer parte do sistema existente. No entanto, a sua magnitude provoca grandes desequilíbrios e não sabemos como vão ser os desenvolvimentos seguintes.

Este panorama configura-se desta maneira porque acelerámos um processo de globalização à escala mundial, “através do qual um dado fenómeno ou entidade local consegue difundir-se globalmente e, ao fazê-lo, adquire a capacidade de designar um fenómeno ou uma entidade rival como local”, como diz Boaventura de Sousa Santos. 2 Isto significa que uma forma específica de organizar a sociedade, que começou há alguns séculos numa parte específica do mundo, foi conquistando territórios, se foi impondo, e vigora hoje em todo o planeta. Constituiu-se em sistema praticamente único (houve quem anunciasse o “fim da História”!), ainda em guerra com as bolsas que lhe escapam: culturas “locais” (ou  “minoritárias”), e natureza. É um sistema que se considera “vencedor” (e divide a comunidade humana entre “vencedores” e “perdedores”), e se pensa como sendo capaz de dominar todas as esferas da vida e todos os desafios da natureza.

O que talvez se tenha tornado muito mais claro, com a presente pandemia, é a noção de “limite”, há muito afastada do nosso léxico cultural, económico e político. Ao querermos sempre mais, ao querermos que tudo cresça sempre, ao querermos dominar a matéria, a natureza, os processos, as relações (de poder), fomos ignorando e tentando apagar os limites, as imperfeições, as fragilidades, as incompletudes com os quais sempre estamos confrontados. Já as alterações climáticas nos chamavam a atenção há muito tempo, mas agora, de repente, recebemos um lembrete iniludível.

Viajando num barco oceanográfico

Parecendo já um panorama tão denso, talvez estejamos ainda à superfície. Perceber o que move e com que linhas se cose esta crise sistémica em modo de globalização é mais difícil, porque é necessário mergulhar em águas profundas e descobrir movimentos transversais e subterrâneos. Vou referir alguns escritos perturbadores, mas que me parece, contribuem para nos guiar nesta procura, porque a ignorância ou a ingenuidade nunca foram boas conselheiras.

Em 2007 a jornalista e ensaísta Naomi Klein (1970-) publicou A doutrina do choque: a ascensão do capitalismo de desastre. 3 Após uma investigação em que estudou situações ocorridas em diferentes países ao longo de várias décadas (desde o golpe de estado de Pinochet e o que se seguiu no Chile, até à guerra do Iraque, passando pela guerra das Falkland/Malvinas, a passagem da União Soviética para a Rússia, a crise financeira no sueste asiático, em 1997, e o furação Katrina, entre outras) chegou a duas conclusões principais: ora houve um planeamento para provocar uma situação de “choque e pavor” da qual tirar partido, ora houve um aproveitamento de uma situação inesperada de choque e tragédia. Numa entrevista dada a um jornal brasileiro, na altura, explicou: “Esse choque pode ser uma catástrofe económica. Pode ser um desastre natural. Pode ser um ataque terrorista. Pode ser uma guerra. Mas, a ideia é que essas crises, esses desastres, esses choques abrandam sociedades inteiras. Deslocam-nas. Desorientam as pessoas. E abre-se uma ‘janela’ e a partir dessa janela se pode introduzir o que os economistas chamam de ‘terapia do choque económico’. (…) A doutrina do choque como todas as doutrinas é uma filosofia de poder. É uma filosofia sobre como conseguir seus próprios objetivos políticos e económicos. É uma filosofia que sustenta que a melhor maneira, a melhor oportunidade para impor as ideias radicais do livre-mercado é no período subsequente ao de um grande choque. 4 ” 

Ou seja, há uma concentração de dinheiro e poder, e também de conhecimento (algumas universidades, centros de investigação, think tanks), que se organiza, deliberadamente, para criar crises, ou para aproveitar-se delas, de modo a impor uma ordem política e económica neoliberal, na qual os grandes negócios, e não as pessoas, são a prioridade.

Uma socióloga holandesa, Saskia Sassen (1949-), reconhecida pela sua investigação sobre a globalização e sobre as migrações, avança pelo mesmo caminho, mas vai mais longe. Numa obra publicada em 2014, intitulada Expulsions, brutality and complexity in the global economy 5, depois de ter analisado igualmente uma grande quantidade de situações em todos os continentes, particularmente a partir de 1980 (“um período de mudança crucial tanto no Sul como no Norte, nas economias capitalistas, como nas economias comunistas”), escreve: “extremando, [podemos estar perante] a pauperização e a exclusão de um número crescente de indivíduos que deixam de ter qualquer valor, seja enquanto trabalhadores, como enquanto consumidores.6” (…) “O movimento que vai do keynesianismo à era global das privatizações, da desregulação e da abertura das fronteiras implicou a passagem de uma dinâmica que integrava os indivíduos para uma dinâmica que os exclui”. (…) Para além da sua grande diversidade social e das suas diferentes manifestações exteriores, “estas tendências, que vão do reforço do poder da empresa global ao enfraquecimento da democracia local, são moldadas por uma dinâmica muito elementar, baseada na procura do lucro sem entraves e na indiferença relativamente ao ambiente”. (…) “Estas tendências não são anormais, como também não são o resultado de uma crise: fazem parte do aprofundamento sistémico das relações capitalistas em curso”.

Não sendo possível aqui expor como a autora demonstra esta tese, penso que há duas  ideias que a percorrem que vale a pena reter. Uma é a de “tendências subterrâneas”, quesão difíceis de identificar, entre outras razões porque muitas categorias que utilizamos (fronteiras, Norte global e Sul global, rural e urbano, ricos e pobres, bons ou maus usos da tecnologia, etc.) as obscurecem, mas que “anunciam efetivamente acelerações ou ruturas que produzem novos significados”. (…) “Concetualmente, tentei compreender a existência de tendências transversais muito vastas que revelam a situação planetária – expulsão das pessoas, das economias, dos espaços vivos. As nossas divisões em países e em setores ainda são úteis para explicar uma parte do que se passa, mas já não têm qualquer utilidade para tratar da situação planetária mais vasta que emergiu”.

Outra é o facto de os mecanismos que produzem estas expulsõesserem muitas vezes duma complexidade que contrasta com os resultados que são frequentemente muito elementares”. (…) “Quanto mais o sistema é complexo, mais difícil é de compreender, mais difícil é identificar as responsabilidades, mais difícil é para qualquer um sentir-se responsável no quadro do sistema”. (…) [Vejo] “um desenvolvimento de formas complexas de poder e de criatividade que são acompanhadas, demasiadas vezes, para além de sólidos lucros, por brutalidades extraordinariamente primárias”.

Historiador e sociólogo norte-americano, Immanuel Wallerstein (1930-2019) propôs a seguinte leitura 7: “O moderno sistema-mundo é uma economia mundo-capitalista que funciona no quadro de um sistema inter-estatal. Este sistema existe desde há cerca de 500 anos. Tem sido um sistema particularmente bem sucedido em termos do que é o seu objetivo, que é a acumulação infinita de capital. No entanto, tal como todos os sistemas, desde o maior (o universo) até ao mais pequeno nano-sistema, este é um sistema histórico, e por isso tem três fases: a sua criação, o seu período mais longo que eu chamo  de “normal”, durante o qual funciona de acordo com as regras que governam o sistema, e a sua crise estrutural. Eu argumento que o sistema-mundo está agora na sua terceira fase, a da crise estrutural”. (…) “Uma  crise estrutural não é uma recessão cíclica, com a qual é regularmente confundida, por causa da forma pouco precisa como utilizamos a palavra ‘crise’. É muito mais do que isso. É o ponto em que o sistema já não consegue voltar ao equilíbrio e começa a flutuar desordenadamente. Isto só pode acontecer uma vez na vida de um sistema histórico. Quando a crise estrutural começa, o sistema bifurca. Para os cientistas das ciências exatas, a bifurcação significa que há duas soluções diferentes para a mesma equação, algo que supostamente não seria possível. (…) Numa bifurcação, temos a certeza de que o sistema não pode sobreviver. No entanto, temos igualmente a certeza de que é intrinsecamente impossível saber que ramo da bifurcação vai prevalecer, dando assim origem a um novo sistema histórico (ou sistemas).

O que caracteriza esta fase de “flutuação desordenada” de fim de sistema é o caos, que pode durar dezenas de anos, explica Wallerstein. E acrescenta que, nesta altura, a situação se torna mais complexa porque ao que foi descrito se soma, no mesmo tempo, uma luta pela hegemonia mundial (bem explícita nos últimos meses entre os EUA e a China).

A nossa viagem fica por aqui, porque é preciso acabar o artigo, que já vai longo.

Pondo as mãos na massa

Durante o pouco tempo que dura esta pandemia temos aprendido imenso sobre o funcionamento do corpo humano, de vários órgãos em particular, sobre vírus e epidemias, sobre infeções e imunidades. Tudo porque se tornou imperioso compreender este novo corona e como interage com os seres humanos, de modo a encontrar estratégias de proteção da vida pessoal e coletiva.

Assim as pistas de leitura das realidades partilhadas nos muitos parágrafos anteriores. Necessitamos dessas múltiplas propostas para compreendermos melhor o mundo em que vivemos, nos situarmos e decidirmos que contributos queremos dar às mudanças que consideramos essenciais e prioritárias.

O panorama não parece brilhante, e sentimo-nos muitas vezes impotentes perante a magnitude das forças que concentram cada vez mais riqueza e poder. Mas aduzo duas observações.

Dentro da sua lógica de pensamento, Wallerstein escreveu 8: “Vai haver uma enorme luta em relação ao próximo sistema, que poderá continuar por 20-40 anos, e cujo resultado é intrinsecamente incerto. (…) Depende do que fazemos. (…) isto oferece uma grande oportunidade para uma ação criativa. Durante a vida normal de um sistema histórico, mesmo grandes esforços de transformação (as chamadas “revoluções”) têm consequências limitadas, porque o sistema cria enormes pressões para voltar ao seu ponto de equilíbrio. Mas no ambiente caótico de uma transição estrutural, as flutuações tornam-se selvagens, e mesmo pequenos impulsos podem ter grandes consequências em termos de favorecer um ou o outro dos ramos da bifurcação. Se alguma vez a ação é operacional, este é o momento.”

Este é um argumento para agirmos. E se não agirmos? Num trabalho de reflexão sobre a história da sua família, franco-alemã, durante o século XX 9, a jornalista e documentarista Géraldine Schwarz (1974-) parte da figura do seu pai enquanto “Mitlaüfer”, o que quer dizer “os que caminham com a corrente. 10 Como ele, milhares de cidadãos e cidadãs alemães e franceses e de outros países na Europa não fizeram nada para contrariar as sucessivas leis e práticas anti-democráticas e anti-judaicas, que levaram ao que sabemos, preferindo concentrar-se no seu dia-a-dia. Viram muita coisa. E permitiram.

Voltando às convicções que enunciei no início: sim, já era urgente. Lembremo-nos da emergência climática e dos 10-12 anos que os cientistas tinham dado para se conseguir conter o aquecimento global – e, no entanto, 2019 viu aumentar, e não diminuir, as emissões de CO2. Foi em muitos lugares o ano mais quente desde que há registos, confirmou o Acordo de Paris como uma miragem. Lembremo-nos dos veementes protestos contra as desigualdades, as discriminações e a repressão em todos os continentes que tiveram lugar nos últimos meses – só abrandaram temporariamente.

E é uma oportunidade. Naomi Klein tinha chamado a atenção para a porta aberta para grandes mudanças que a crise climática proporcionava. 11 Pela sua dimensão e alcance global, pela mobilização que tem gerado, a crise sanitária abre idênticas possibilidades. Também porque os campos e alianças não estão de pedra e cal, e são menos homogéneos, observando-se flutuações internas importantes. “Este é o momento”, como disseWallerstein. “A questão-chave é lucidez”, opinou.

Fazer, exigir, construir

Se quisermos caminhar na direção do que pode vir a constituir um mundo, um sistema (ou sistemas)  diferente do que temos, com mais justiça, mais igualdade e equidade, e por isso mais solidariedade, penso que temos de praticar, e incorporar, a convivência com duas condições: a primeira é a incerteza, as variáveis são imensas e as suas interações constantes, pelo que as previsões se reveem a cada passo; a segunda é a importância de jogar em vários tabuleiros ao mesmo tempo, o que é um gigantesco desafio à nossa educação “dual”(uma coisa ou é boa ou má; perfeita ou imperfeita; bonita ou feia, feminina ou masculina, etc.).

Há muitas formas de visualizar e pôr em prática esta última ideia. Regressando uma última vez (neste texto) a Wallerstein, ele dizia que seria fundamental ter um pé nas soluções de curto prazo (dois, três anos), e outro nas soluções de longo prazo (20-40 anos!); um pé nas questões que asseguram a sobrevivência das pessoas e outro pé nas que colocam em causa a ordem vigente, que dá cada vez mais poder e riqueza aos que já os têm e concentram.

Sem desdizer o anterior, tomo a liberdade de propor uma dança simultaneamente em três tabuleiros: fazermos, cada um/a, aquilo em que acreditamos, o que vai na direção do que  procuramos (quantos mais formos, mais força ganhamos); exigirmos das instituições, dos micro sistemas que as suportam, que vão na mesma direção, que coloquem as pessoas e a natureza à qual todos pertencemos, sempre primeiro; e criarmos cada vez mais laços com outros (pessoas, coletivos) que nos permitam construir em conjunto, a várias vozes (permitindo-nos exercitar a cooperação, e recusar o dogma da competição).

Sempre sem saber onde e quando vamos chegar (é a incerteza!). Se soubéssemos, só tínhamos de cumprir um papel pré-determinado. É difícil, mas é fascinante.

Decrescer e crescer, cuidando

Como seres finitos, imperfeitos, que habitamos um planeta também finito e frágil, não conseguimos no entanto fazer tudo a todo o tempo. E numa fase de transição caótica, ainda é mais fácil “perdermo-nos”. É importante adotar alguns pontos de referência e escolher e ir experimentando caminhos.

Ouso avançar com alguns pontos de referência possíveis (sem detalhes), que podem funcionar como “critérios” ou “filtros” na hora de fazer opções em todos os tabuleiros. São propostas antigas que estão agora a ganhar relevância.

Começou a falar-se em “desglobalização”, como consequência do debate na era COVID-19. A ação pelo clima exige mudanças drásticas nas políticas energéticas e nos modelos de produção e consumo, entre outras medidas. Isto aponta para o imperativo de um “decrescimento” de atividades e de formas de organização, combatendo a ideia consensualizada de que “crescer” é sempre bom e benéfico. A ser levada a sério, esta visão tem implicações a todos os níveis, do micro ao macro, e coloca questões concretas muitíssimo difíceis. Um só exemplo: resgatar as companhias de aviação e suspirar para que o turismo volte ao que era, vai no sentido oposto; qualquer alternativa teria, no imediato, consequências desastrosas do ponto de vista do

Nem tudo faz sentido que “decresça”. Para todas as pessoas e comunidades que vivem em condições indignas, que são invizibilizadas, descriminadas, perseguidas, deixadas sós – mais uma vez, vão ser as mais atingidas pela presente crise sanitária – é preciso que a atenção, as oportunidades de trabalho e de usufruto da vida cresçam, e muito. Mas não como parte do modelo de “crescimento”, e sim já na direção de um sistema inclusivo e saudável. É igualmente urgente!

Nesta nova configuração, a prioridade em “cuidar” pode ser uma boa pista. Significa prestar atenção e deixar de lado os automatismos de pensamento e ação; ter tempo para dialogar, procurar e criar; saber ouvir e ter espaço para ser ouvido; respeitar a natureza e sentirmo-nos, como comunidade humana, parte dela, preservando-nos mutuamente.


[1] Reformada. Co-fundadora do CIDAC – Centro de Intervenção para o Desenvolvimento Amílcar Cabral nomeadamente na área da Educação para o Desenvolvimento/Educação para a Cidadania Global. Diretora do GENE – Global Education Network Europe entre setembro de 2017 e agosto de 2019.

[2] Santos, B. S. (2006). A gramática do tempo: Para uma nova cultura política. Porto: Edições Afrontamento.

[3] Edição em português: Klein, N. (2009). A doutrina do choque: A ascensão do capitalismo de desastre. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira.

[4] Disponível em https://jornalggn.com.br/sociedade/a-doutrina-do-choque-de-naomi-klein/.

[5] Os excertos que se seguem foram traduzidos a partir da edição francesa:  Sassen, S. ( 2016). Expulsions: Brutalité et complexité dans l’économie globale. Paris: Édtions Gallimard. Em português, o livro foi editado pela Paz e Terra (Brasil), em 2016.

[6] Numa entrevista ao jornal Le Monde Paris, exemplificou: “Trabalhadores pobres ficaram sem proteção social. Nove milhões de famílias americanas perderam as suas casas após a crise do subprime. Em grandes cidades em todo o mundo, as “classes médias” são gradualmente expulsas do centro da cidade que se tornou inacessível para o seu bolso. A população prisional dos EUA aumentou em 600% nos últimos quarenta anos. O fraturamento hidráulico do solo para extrair gás de xisto transformou ecossistemas em deserto, que tem os seus solos e águas poluídos (…).  Centenas de milhares de moradores foram deslocadas desde que empresas estrangeiras, estatais e privadas, foram adquirindo terras nos quatro cantos do mundo: desde 2006, 220 milhões de hectares foram comprados, principalmente em África.” (Tradução em português disponível em https://blogdopedlowski.com/2014/05/05/entrevista-com-saskia-sassen-sobre-o-livro-expulsoes-brutalidade-e-complexidade-na-economia-global/).

[7] Excertos traduzidos do texto “Antisystemic movements and the future of capitalism” (2015).

[8] Idem, ibidem.

[9] Schwarz, G. (2019). Les amnésiques. Paris: Flammarion.

[10] No pós-guerra, os quatro vencedores que repartiram o território alemão fixaram quatro graus de responsabilidade / implicação nos crimes nazis: “grandes incriminados”, “incriminados”, “pequenos incriminados” e “Mitlaüfer”.

[11] Klein, N. (2016). Tudo pode mudar: Capitalismo vs. clima. Barcarena: Editorial Presença.

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