Alfredo Gomes Dias 1
Qualquer abordagem que hoje se pretenda desenvolver em torno da Educação para a Cidadania Global dificilmente pode ignorar as áreas de interseção entre o fenómeno da globalização, o papel que desempenham os meios de comunicação e a formação de uma cidadania crítica.
O livro, manual ou guia, Literacia para os média e cidadania global – caixa de ferramentas, é um claro exercício que demonstra como as sociedades de hoje e, principalmente, as representações que cada um de nós constrói sobre a(s) sociedade(s) em que vive, nas suas diferentes escalas temporais e espaciais, dependem de competências essenciais para garantir uma leitura crítica e, por isso, ativa, das informações e mensagens que, a todo o momento, nos chegam ao telemóvel, computador ou televisão.
As autoras, Sandra Oliveira e Rita Caetano, dividem este trabalho em três partes que, de forma sequenciada, se explicam entre si: um “enquadramento” que nos aproxima da temática e das problemáticas que envolvem a Literacia para os Média (LM); a apresentação do “modo de usar” das propostas que se avançam na terceira parte; e, por último, os dez “módulos” que reúnem as sugestões de trabalho para todos aqueles que se disponham a assumir esta importante tarefa de contribuir para o desenvolvimento da LM com diferentes públicos, sejam eles crianças, jovens ou adultos.
Mais do que um “enquadramento”, a primeira parte é um convite à reflexão e à problematização sobre as questões da relação entre a literacia e os média, definindo como objetivo “preparar os cidadãos para lidar de forma crítica com este ambiente mediático – não apenas os jovens mas de igual forma os adultos” (p. 14).
O que está em causa é o desenvolvimento de um pensamento crítico, capaz de ler a realidade que emerge das sociedades contemporâneas, mediatizada por grandes vagas de informação e mensagens, muitas vezes vestidas de programas de informação e/ou de entretenimento. A complexidade desta questão remete-nos para a relevância do exercício de uma cidadania global, que ajude a reconhecer e interpretar as abissais diferenças no acesso à informação e aos meios de comunicação que existem entre diversas regiões do mundo, as quais traduzem os diferentes níveis em que se jogam as sociedades da abundância da informação e aquelas onde é negado aos cidadãos os mais simples meios de acesso.
Todavia, partindo da definição daquele objetivo, a preparação dos cidadãos não se fica pelo nível da leitura e da interpretação, almejando dar um passo mais, no sentido de oferecer às crianças, jovens e adultos, espaços de participação que os média proporcionam. Trata-se de garantir que esta participação não se limite a uma intervenção virtual do cidadão – muitas vezes construída nas malhas de uma ilusão, que contribui para a manutenção dos sistemas sociais geradores de injustiças e desigualdades – mas que promova a ação em processos de transformação social.
Este desiderato implica uma abordagem que promova a “literacia para os média”. Distinguindo esta, com rigor, da “educação para os média”, as autoras sublinham a necessidade de “apoiar os cidadãos a tomar consciência e a descodificar o universo da informação e dos meios de comunicação social, para deles tirar o maior partido” (p. 17), identificando três tipos de aprendizagem: (i) acesso à informação e à comunicação – o saber procurar, guardar, arrumar, partilhar, citar, tratar e avaliar criticamente a informação pertinente, atentando também à credibilidade das fontes; (ii) compreensão crítica dos média e da mensagem mediática – quem produz, o quê, porquê, para quê, por que meios; (iii) uso criativo e responsável dos média – expressar e comunicar ideias, para delas fazer um uso eficaz de participação cívica (pp. 20-21).
Este enquadramento não estaria completo se não se focasse na realidade portuguesa, tal como acontece na análise ao “contexto português” (pp. 25-30). Ensaiando o desenho de um breve retrato sobre o consumo dos média em Portugal, sublinha-se o modo como as necessidades existentes, no campo da LM, acompanham as restantes fragilidades que se fazem sentir entre as crianças, os jovens e a população adulta, nomeadamente, a formação de um pensamento crítico, que os habilite a ler o mundo e a agir sobre ele no sentido da sua transformação. Face às insuficiências identificadas no sistema educativo, erguem-se as responsabilidades dentro e fora dele, oferecendo espaços e tempos de intervenção que se proponham investir na educação, sem a qual “não há milagres nos níveis de participação cívica e cidadania ativa” (p. 30). Fica assim encontrada a justificação – mais do que evidente – da criação deste “manual de ferramentas”.
Na segunda parte – “Caixa de Ferramentas: Modo de Usar” – o leitor aproxima-se da vertente prática deste manual para a LM, ao contactar com as três ideias que orientaram a sua criação: “alimentar uma abordagem crítica, facilitar a impertinência como condição de cidadania e provocar o conhecimento através do papel de um ‘facilitador’” (p. 43). Três ideias que se constituem como um instrumento “facilitador” em processos de formação em LM, cujas metodologias estratégicas se centram em modelos de participação ativa dos intervenientes.
Tendo sempre a preocupação de chegar a vários contextos e a públicos diversificados, o manual dá relevo ao papel do “formador”, devendo este abandonar o seu posicionamento mais tradicional, para se assumir, preferencialmente, como “um ouvinte ativo, um ‘colocador’ de informação estratégica, um árbitro de jogos partilhados por essa comunidade específica” (p. 43), capaz de promover as três aprendizagens anteriormente anunciadas.
E eis-nos, finalmente, na Parte III, o capítulo nobre deste livro que ocupa cerca de 200 das suas 250 páginas, que se dedicam a apresentar os dez módulos criados para promover a LM.
Com o sentido pedagógico que se exige num texto com estas características, a apresentação de cada módulo repete a mesma estrutura: objetivos gerais; orientações sobre o “modo de usar”; e apresentação de atividades, com indicação de objetivos específicos, definição do público-alvo, indicação do tempo necessário e identificação de recursos, aos quais se acrescenta, com bastante pertinência, a fonte de “inspiração”.
Uma das riquezas das propostas apresentadas assenta na sua diversidade: de públicos, de recursos e de duração, podendo o “facilitador” encontrar, ao longo dos diferentes módulos, sugestões que pode mobilizar e/ou adaptar em função dos contextos em que está a desenvolver a sua ação.
Literacia para os média e cidadania global – caixa de ferramentas apresenta-se, assim, como um convite à reflexão sobre uma problemática que se encontra hoje, não apenas no cerne das realidades sociais que condicionam e influenciam o pensar e agir dos cidadãos, mas também na essência da capacidade de ler e interpretar o mundo que nos cerca, propondo uma intervenção social alternativa capaz de desencadear processos de mudança.
Já passou algum tempo sobre os textos que Ortega y Gasset nos ofereceu, mas as suas ideias mantêm uma pertinente atualidade que nenhum de nós pode deixar de invejar, principalmente quando acompanhamos este texto de Sandra Oliveira e Rita Caetano, o qual nos aproxima dos processos de construção das nossas visões do mundo, alicerçados no desenvolvimento do pensamento crítico de cada cidadão. Na sua obra O que é a filosofia?, Ortega y Gasset lembra-nos que “se existe sujeito, existe inseparavelmente objeto, e vice-versa, se existo eu que penso, existe o mundo que penso. Portanto: a verdade radical é a coexistência de mim com o mundo. Existir é primordialmente coexistir – é ver eu algo que não sou eu, amar eu outro ser, sofrer eu das coisas”.
Fica-nos, pois uma derradeira questão: como podemos nós ver, amar e sentir… como podemos nós coexistir, se não formos capazes de ler, refletir e problematizar criticamente… de participar no sentido de transformar?