Pela equipa do projeto Get up and Goals! 1

Massimiliano Lepratti 2 & Giordana Francia 2

A pandemia de COVID-19 é um dos exemplos da descontinuidade na vida social, a qual é frequentemente objeto de estudo para os historiadores. Sem esperar que passe um longo período de tempo, atualmente já são visíveis algumas mudanças nas nossas formas de pensar, viver e ensinar. Como em qualquer outra crise, talvez já seja possível observar, para além do sofrimento, as oportunidades que as alterações sociais trazem.

A emergência sanitária pela qual estamos a passar está a relembrar-nos que, coerente com a Agenda 2030 da ONU,  apenas existe um Planeta, que a interdependência entre nações, seres humanos e ecossistemas não pode ser posta de parte e que soluções plausíveis para os problemas globais não se podem basear exclusivamente em perspetivas nacionais ou nacionalistas.

Valores da Educação para a Cidadania Global

Assim, não podemos deixar de mencionar os valores que estão na base da Educação para a Cidadania Global (ECG), essenciais para alcançar o Objetivo n.º 4 da Agenda (Garantir o acesso à educação inclusiva, de qualidade e equitativa, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos) e que constituem uma condição prévia para alcançar todos os demais Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.

Se a ECG é um “… paradigma de enquadramento que resume a forma como a educação pode desenvolver o conhecimento, capacidades, valores e atitudes que os alunos/as necessitam para assegurar um mundo mais justo, pacífico, tolerante, inclusivo, seguro e sustentável” (UNESCO, 2014, p. 9), existe portanto uma ligação rigorosa entre esta abordagem educativa e as escolhas que a humanidade está a fazer a nível social, cultural, político e económico para ultrapassar esta crise e prevenir o desenvolvimento de outras.

Pode ser útil utilizar algumas categorias de pensamento e competências que são caraterísticas da educação para a cidadania global, para podermos analisar a situação de uma perspetiva geral e imaginar cenários futuros e possíveis ações.

1. Descontinuidade Histórica

A primeira categoria potencialmente estimulante está relacionada com o próprio conceito de descontinuidade histórica. Esta não é uma categoria com a qual as nossas mentes estejam habituadas a lidar, e a propagação da COVID-19 veio confirmar essa falta de preparação. Durante anos, senão décadas, pensámos que a esperança de vida naquele que é conhecido como o mundo ocidental iria aumentar progressiva e inevitavelmente, que os sistemas de saúde se transformariam num custo que poderia ser limitado – em referência a uma situação de cuidados de saúde que estava, de qualquer modo, destinada a melhorar no seu todo – e que as grandes epidemias faziam parte de histórias de escritores e de factos que ocorreram em séculos e territórios distantes de nós. Tal como ocorre frequentemente, os acontecimentos históricos ainda são responsáveis por contradizer a ideia de um progresso linear e constante, da mesma forma que aconteceu no início do século XX, quando a Primeira Guerra Mundial interrompeu a ideia de que os direitos civis estavam a progredir inexoravelmente – pelo menos na parte do mundo que mais tarde se veio a conhecer como o «mundo ocidental».O mesmo ocorreu em 1929, 1973 e 2008, quando crises económicas inesperadas estagnaram o crescimento médio da riqueza, o qual parecia estar garantido pela própria natureza do capitalismo.

2. Interligações

A segunda categoria de pensamento na qual nos centramos prende-se com o conceito de interligação. Todos/as sabemos que as realidades sociais e ambientais estão interligadas e que o bater de asas de uma borboleta pode causar catástrofes num lugar aparentemente distante. No entanto, este conceito deve ser ajustado aos acontecimentos concretos de forma a ajudar o nosso pensamento a desenvolver a adaptabilidade necessária para permitir que façamos a nossa melhor interpretação de momentos complexos. Se ligarmos o fenómeno da COVID-19 a três grandes temas – tais como as relações entre seres humanos e a natureza, as desigualdades (internacionais e de género) e as migrações – descobrimos que cada uma destas ligações nos proporciona um ponto de vista útil para que possamos compreender melhor os problemas e, oxalá, ter uma melhor atuação face à sua resolução.

Através de um pequeno vídeo da Agência Espacial Europeia, disponível no Youtube 3, é possível observar as dinâmicas de um gás poluente, o dióxido de azoto ou NO2, mundialmente conhecido pelos danos que provoca no sistema respiratório. Para além da diminuição da presença deste gás no norte de Itália durante as semanas de mobilidade limitada, conforme apresentado no vídeo, é impressionante observar que, em janeiro, as zonas mais poluídas, como o norte de Itália e os territórios próximos da cidade de Madrid, também viriam a ser as zonas mais afetadas da Europa pela COVID-19. Esta não é uma evidência da relação causa-efeito, mas é certamente uma das muitas ligações entre a poluição e os efeitos da epidemia – interligação essa que os investigadores continuam a analisar e a induzir a opinião pública para refletir.

Uma segunda interligação sugerida pelos efeitos socioeconómicos do vírus envolve o conceito de desigualdades. Se a COVID-19 é igual na sua natureza para todos nós, não o é nas suas consequências. As desigualdades nas classes sociais e na rede social de referência geram enormes diferenças relativamente às possibilidades de prevenção da doença, de cura da mesma e, em relação a muitos seres humanos que não foram infetados, de evitar graves consequências nos seus salários. Viver numa favela no Brasil ou em bairros de lata na Índia ou na África do Sul dificulta imenso o processo de evitar o contacto social e torna praticamente impossível não fazer deslocações para auferir um salário diário, garantido apenas por pequenos trabalhos na economia informal. Também ocorrem situações semelhantes, ainda que em menor escala, em territórios onde a segurança financeira e social e os sistemas de proteção de saúde são mais frágeis. No entanto, ainda no que se refere às pessoas que não adoecem, não colocam em risco os seus empregos e têm a possibilidade de ficar em casa, as desigualdades produzem resultados diversos. O que significa para uma família com crianças ser obrigada a ficar em casa, numa casa pequena, sem espaços exteriores e limitada em termos de dispositivos digitais? Nestas condições, há ainda a considerar em particular o papel das mulheres, mais expostas do que os elementos do sexo masculino aos desconfortos da gestão familiar (para não mencionar a violência doméstica, exacerbada pelo desconforto claustrofóbico de uma coabitação prolongada e forçada).

3. Capacidade de descentração

Uma terceira interligação entre a COVID-19 e as dinâmicas migratórias pode ajudar-nos a desenvolver a capacidade de descentração: a capacidade através da qual também é possível observar factos de diferentes perspetivas, e não a partir da mentalidade habitual, centrada em nós próprios. As migrações são frequentemente um fenómeno que associamos à chegada de um número relevante de seres humanos de países economicamente menos desenvolvidos (ou nações em estado de guerra) a países economicamente mais desenvolvidos e socialmente mais estáveis, como os nossos. Tal fenómeno está repleto de questões complexas que combinam oportunidades com o possível enriquecimento mútuo, e dificuldades que envolvem os migrantes e as populações que os recebem. No entanto, a COVID-19 também produziu fenómenos de migrantes, em particular das nações da Europa de Leste, que fugiam dos territórios italianos, os quais se estavam a tornar crescentemente uma ameaça à saúde e não uma oportunidade económica. Um dos resultados de tal fuga é o risco de exposição da economia agrícola italiana a uma grave falta de mão de obra: esta falta de mão de obra ameaça pôr em risco a produção de bens alimentares que – a atual crise nos voltou a relembrar – são essenciais para a nossa sobrevivência.

4. Da escala global à escala nacional

Para além de enfatizar a importância das interligações, os parágrafos anteriores conduziram a nossa reflexão-pensamento em diferentes escalas através das quais podem ser analisadas as consequências da COVID-19. Da escala global, onde ocorrem os fenómenos migratórios ou o sofrimento nas favelas e bairros de lata, à escala nacional onde os problemas agrícolas são analisados, até à escala doméstica onde se observam as consequências da vida quotidiana de cada um de nós. Analisar fenómenos através da transescalaridade é uma forma adicional de exercitar as nossas mentes para pensar numa abordagem complexa, decompor e reorganizar conceitos e acontecimentos de forma a encontrar novos métodos para os enfrentar: é um exercício fundamental na Educação para a Cidadania Global e foi objeto de muitos escritos do filósofo e sociólogo, Edgar Morin… 4

O papel da escola

No seio de todas estas observações, qual o papel que pode surgir para a escola, uma área que está a padecer tanto como outras neste período? Apesar da situação contingente, a escola continua a ser o único lugar em toda a sociedade onde as competências, capacidades, formas de pensamento – sugeridas nas linhas anteriores – podem não só ser desenvolvidas através de um método permanente e internacional, mas também tornar-se objeto de reflexão e metacognição.

O que é que estou a aprender com a COVID-19 e, acima de tudo, de que forma é que estou a aprender? Através de que caminhos e ferramentas estão as nossas mentes a processar o que se está a passar ao nosso redor e de que forma podemos ligar esses caminhos com aquelas formas de organização do conhecimento, que são as disciplinas escolares?

Estas são certamente questões difíceis. No entanto, a sua essência pode ajudar a envolver professores/as, alunos/as e a escola como um todo numa abordagem proativa em resposta à emergência.

A um nível mais concreto, a COVID-19 está a causar indiscutivelmente uma mudança – sem precedentes – nos métodos pedagógicos e didáticos através dos quais o ensino é desenvolvido. Esta conjuntura está a privar os/as professores/as da relação pessoal que estabelecem com cada aluno/a e com a turma, forçando-os/as a prescindir de uma das ferramentas essenciais sem as quais a relação pedagógica é inevitavelmente mais difícil de criar, principalmente com alunos/as de faixas etárias mais jovens.

Ensino à distância: riscos e oportunidades

Desta perspetiva, o ensino à distância (E@D) apresenta riscos e oportunidades. Num país como Itália, onde as palestras são a ferramenta mais comum, o E@D arrisca reduzir ainda mais a participação ativa dos/as alunos/as e promover a exclusão de uma grande parte da população escolar. Neste contexto, os conteúdos e metodologias da ECG podem, como habitualmente, em conjunto com os meios digitais, ajudar a mitigar esses riscos, respondendo às questões dos alunos/as e fazendo a ligação entre as suas vidas e ambiente onde estão inseridos e os grandes desafios globais, estimulando a participação ativa e as competências de cidadania. Tais competências de cidadania foram referidas diversas vezes, nas últimas semanas, como uma das ferramentas essenciais para a resolução desta crise (por exemplo, através do respeito por regras comuns para a proteção da saúde pública e da comunidade visando a diminuição do número de infeções).

O ensino à distância está a criar um conjunto de soluções, por vezes, surpreendentes e impensáveis até há bem pouco tempo. Pelo que abandonar por completo as competências que estão a emergir neste momento, quando se voltar ao ensino presencial, seria um erro.

De facto, esta categoria de didática, que surgiu nesta fase, pode transformar-se numa ferramenta capaz de, para além de consolidar as competências digitais dos professores/as e dos alunos/as, estimular a pesquisa de outros instrumentos didáticos para além dos instrumentos verbais – desenvolvendo também, por exemplo, a capacidade para empregar, num método didático correto, dispositivos visuais (mapas, infografias, tabelas, gráficos, ligações…). A associação entre ferramentas verbais e visuais pode proporcionar mais uma oportunidade didática, permitindo combinar o método linear e analítico com a subsequente análise aprofundada, típica da cultura pré-digital de muitos professores, com o método associativo, horizontal e sintético, que é típico da cultura digital a que os alunos/as pertencem. Assim, tanto a possibilidade de atender à variedade de métodos de análise aprofundada, como a possibilidade de integrar, de forma produtiva, diferentes formas de organização do pensamento estão a aumentar e, como resultado, ambas acarretam um possível enriquecimento global dos métodos de ensino para uma verdadeira inclusão.

O presente e o passado requerem competências de interdisciplinaridade, pensamento crítico, capacidade de imaginAÇÃO, capacidade para ver as coisas a partir de diferentes perspetivas e entender as possíveis interligações. Agora, mais do que nunca, a abordagem da ECG (ligada à melhoria das competências básicas) torna-se essencial e demonstra ser uma das componentes fundamentais daquilo que Enrico Giovannini, porta-voz da «Aliança Italiana para o Desenvolvimento Sustentável» (ASviS) define como a resiliência transformadora, ou seja, “a capacidade não só de voltar como “éramos”, depois de um choque, mas também de dar um salto em frente para nos transformarmos na melhor versão de nós mesmos”.

 

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