La Salete Coelho 1, Albertina Raposo 2, Ana Piedade 2, Hugo Marques 3, Leonor Teixeira 4, Marta Uva 4, Sandra Fernandes 3, Teresa Gonçalves 1, Margarida Silveira 2, Cristina Martins 5, Sofia Bergano 5
Resumo: O projeto Escolas Transformadoras, levado a cabo por uma Organização Não Governamental para o Desenvolvimento e três Instituições do Ensino Superior, pretendeu refletir sobre os desafios colocados à Escola na construção de uma dimensão de cidadania consciente e crítica nos/as alunos/as com vista à transformação de todas as formas de injustiça social, ou seja, uma escola transformadora.
O projeto privilegiou um processo de trabalho colaborativo entre pares, no qual as/os docentes aprendem entre pares e com os/as estudantes, numa partilha de saberes que lhes permite reconfigurar-se, transformar(-se) e ampliar o conjunto das suas competências, fomentando o seu desenvolvimento pessoal e profissional ao mesmo tempo que se constituem como agentes transformadores da escola e da comunidade.
Neste artigo pretende-se sistematizar as reflexões e aprendizagens realizadas no âmbito do projeto, a partir da categoria de análise da colaboração enquanto motor de transformação e resposta política em si mesma. Podemos afirmar que as práticas desenvolvidas, como a monitorização e avaliação das ações através da reflexão conjunta, se traduzem na melhoria das ações e do processo de trabalho da equipa.
Palavras-chave: Educação para a Cidadania Global; Educação para o Desenvolvimento; Trabalho Colaborativo; Cidadania e Desenvolvimento; Políticas Educativas.
Abstract: The Escolas Transformadoras (Schools for Change) project, carried out by a Non-Governmental Organisation for Development and three Higher Education Institutions, intended to reflect on the challenges faced by the School in building a conscious and critical citizenship in students with a view to transforming all forms of social injustice, i.e. a transformative school.
The project has favoured a process of collaborative work among peers, in which teachers learn from each other and from students, sharing knowledge that allows them to reconfigure, transform themselves and broaden the range of their skills, fostering their personal and professional development at the same time as they become transforming agents for the school and the community.
This article aims to systematise the reflections and learnings carried out within the project, from the category of analysis of collaboration as a driver of transformation and political response in itself. We can state that the practices developed, such as the monitoring and evaluation of actions through joint reflection, take shape into the improvement of the actions and the team work process.
Keywords: Global Citizenship Education; Development Education; Collaborative Work; Citizenship and Development; Educational Policies.
Resumen: El proyecto Escolas Transformadoras, llevado a cabo por una organización no gubernamental para el desarrollo y tres Instituciones de Educación Superior, tenía por objeto reflexionar sobre los desafíos que enfrenta la Escuela en la construcción de una dimensión de ciudadanía consciente y crítica en los estudiantes con miras a transformar todas las formas de injusticia social, es decir, una escuela transformadora.
El proyecto favoreció un proceso de trabajo colaborativo entre pares, en el que el profesorado aprende entre pares y de los estudiantes, en un intercambio de conocimientos que les permite reconfigurar, transformar y ampliar sus habilidades, fomentando su desarrollo personal y profesional a la vez que se convierten en agentes de transformación para la escuela y la comunidad.
Este artículo pretende sistematizar las reflexiones y aprendizajes realizados dentro del proyecto, desde la categoría de análisis de la colaboración como motor de transformación y respuesta política en sí misma. Podemos afirmar que las prácticas desarrolladas, como el seguimiento y la evaluación de las acciones a través de la reflexión conjunta, se traducen en la mejora de las acciones y del proceso de trabajo en equipo.
Palabras clave: Educación para la Ciudadanía Global; Educación para el Desarrollo; Colaboración; Ciudadanía y Desarrollo; Políticas Educativas.
1. Enquadramento
1.1. A Educação para a Cidadania como política pública
Num tempo marcado por desafios como a globalização, as crises económicas e financeiras, os problemas ambientais, a recente questão pandémica, entre outros, as mudanças no mundo em que vivemos são muitas, sucedem-se a um ritmo vertiginoso e nem sempre nos fazem avançar no sentido de um mundo progressivamente mais justo e solidário.
Construir este tipo de sociedade a uma escala global, uma sociedade mais justa, inclusiva e solidária, através da alteração real dos paradigmas dominantes, é um objetivo muito exigente e requer mudanças a diversos níveis, nomeadamente na visão sobre o modelo de Educação que se pretende, e numa das suas principais instituições, a Escola.
Para se poder atingir uma transformação social global é fundamental que as pessoas, cidadãos e cidadãs deste mundo, tenham acesso a uma educação que traga as vivências e experiências do mundo real para o centro das aprendizagens; que estimule a reflexão e o pensamento crítico; que questione preconceitos e imagens estereotipadas; que prepare para a diversidade; que desenvolva um sentido participativo e democrático; que contribua para a criação de um sentimento de pertença a uma humanidade partilhada, a uma cidadania global.
Tal como nos alerta Paulo Freire:
ninguém pode estar no mundo, com o mundo e com os outros de forma neutra. Não posso estar no mundo de luvas nas mãos constatando apenas. A acomodação em mim é apenas caminho para a inserção, que implica decisão, escolha, intervenção na realidade (1997, p. 75).
O conceito de Educação para a Cidadania Global 6 (ED/ECG) encontra-se consagrado nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, nomeadamente na meta 7 do objetivo 4 – Educação de Qualidade – “até 2030, garantir que todos os alunos adquiram conhecimentos e habilidades necessárias para promover o desenvolvimento sustentável, inclusive, entre outros, por meio da educação para o desenvolvimento sustentável e estilos de vida sustentáveis, direitos humanos, igualdade de género, promoção de uma cultura de paz e da não violência, cidadania global 7 e valorização da diversidade cultural e da contribuição da cultura para o desenvolvimento sustentável”. Este mesmo conceito tem sido utilizado, nos últimos anos, em diversos contextos, decorrente de uma reflexão profunda sobre Educação para o Desenvolvimento (Mesa, 2000), propondo uma visão de educação transformadora, que promova e crie condições para a existência de cidadãs e cidadãos globais, pessoas ativas, responsáveis, comprometidas, que querem transformar a realidade a partir de um conjunto de princípios como a justiça social, a equidade, o respeito e a igualdade (Boni, 2014).
Em Portugal, estas preocupações têm sido traduzidas também em políticas públicas, mobilizando atores quer do âmbito da educação formal (como o Ministério da Educação e a Direção-Geral de Educação), quer do âmbito do desenvolvimento (como o Ministério dos Negócios Estrangeiros, através do Camões – Instituto da Cooperação e da Língua, I.P.).
A importância da Cidadania Global como aprendizagem para a transformação social foi primeiramente reconhecida num documento político, com a publicação, em 26 de novembro de 2009, em Diário da República, do documento de orientação da Estratégia Nacional de Educação para o Desenvolvimento 2010-2015 (ENED), aprovado através de despacho conjunto do Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação e do Secretário de Estado Adjunto da Educação, cujo objetivo geral era o de “promover a cidadania global através de processos de aprendizagem e de sensibilização da sociedade portuguesa para as questões do desenvolvimento, num contexto de crescente interdependência, tendo como horizonte a ação orientada para a transformação social” (ENED – Despacho n.º 25931/2009, p. 48398). Em 2018, no novo documento estratégico, este papel foi reforçado, sendo a ED/ECG compreendida como
um processo de aprendizagem ao longo da vida, comprometido com a formação integral das pessoas, o desenvolvimento do pensamento crítico e eticamente informado, e com a participação cidadã. Este processo tem como objetivo último a transformação social no sentido da prevenção e do combate às desigualdades sociais, nomeadamente às desigualdades entre mulheres e homens, do combate à discriminação, da promoção do bem-estar nas suas múltiplas dimensões, da inclusão, da interculturalidade, da justiça social, da sustentabilidade, da solidariedade e da paz, tanto ao nível local como ao nível global (Resolução do Conselho de Ministros, n.º 94/2018, p. 3197).
Apesar de o conceito de aprendizagem ser utilizado nestas definições no seu sentido mais amplo, incluindo educação formal, não formal e informal, é inegável o papel privilegiado da Escola, como espaço de formação essencial para uma sociedade socialmente justa e equitativa. Cabe à Escola (através dos seus diversos agentes e práticas educativas) assumir todo o seu potencial, enquanto espaço de reflexão e (inter)ação transformadora. Efetivamente, o conceito e a prática da educação estão intrinsecamente associados à ideia de transformação, de desenvolvimento e superação permanente dos sucessivos estádios de equilíbrio do ser humano considerado na sua individualidade e na sua coletividade (Boavida & Amado, 2006).
No entanto, alguns estudos e reflexões alertam para o facto de a Escola, por vezes refém de modelos mais tecnocráticos e mais focados na resposta às necessidades do mercado de trabalho, poder ser um espaço reprodutor de desigualdades e de lógicas de poder autoritário. É um facto que a Escola vai tentando encontrar caminhos entre a responsabilidade de ensinar conteúdos científicos e a crescente necessidade de agir enquanto agente pedagógico de cidadania. A responsabilidade de responder a este último mandato tem sido, tradicionalmente, entregue à área de Educação para a Cidadania (EC), ficando esta, no entanto, à mercê das opções sobre o seu modelo de implementação nas escolas, sofrendo constantes alterações estruturais e curriculares e percorrendo um “percurso ziguezagueante durante as últimas décadas no que diz respeito ao espaço da Educação para a Cidadania no currículo escolar” (ENEC, 2017, p. 5).
Se remontarmos a 2012, momento em que teve lugar um novo enquadramento da organização e da gestão dos currículos dos ensinos básico e secundário (Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho), a Cidadania adquiriu um caráter transversal, tendo sido identificadas, pelo então Ministério da Educação e Ciência, as diversas dimensões da Educação para a Cidadania no documento Educação para a Cidadania – linhas orientadoras, entre as quais, a Educação para o Desenvolvimento. Em colaboração com outros organismos e instituições públicas e com diversos parceiros da sociedade civil, a Direção-Geral da Educação tem vindo a produzir instrumentos de apoio (Referenciais) que podem ser utilizados e adaptados em função das opções a definir em cada contexto, enquadrando as práticas a desenvolver. Neste âmbito, o Referencial de Educação para o Desenvolvimento – educação pré-escolar, ensino básico e ensino secundário, aprovado em 2016, foi elaborado pela Direção-Geral da Educação em parceria com o Camões – Instituto da Cooperação e da Língua, I.P., o CIDAC – Centro de Intervenção para o Desenvolvimento Amílcar Cabral e a FGS – Fundação Gonçalo da Silveira. Este Referencial, editado pelo Ministério da Educação, representa outro passo importante para a integração da ED/ECG na educação pré-escolar e nos ensinos básico e secundário.
O ano de 2017 trouxe uma nova visão e um novo enfoque à Educação para a Cidadania, nomeadamente no domínio relativo ao Desenvolvimento. O projeto de Autonomia e Flexibilização Curricular, instituído pelo Despacho n.º 5908/2017, de 5 de julho, em implementação em regime de experiência pedagógica, ancorado em documentos como o Perfil dos alunos à saída da escolaridade obrigatória (Despacho n.º 6478/2017, de 26 de julho) e a Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania (Despacho n.º 6173/2016, de 10 de maio), apresentou-se como uma nova oportunidade para estas temáticas não só porque mobiliza, na sua lógica de funcionamento, princípios e valores subjacentes a diversos domínios da Educação para a Cidadania, numa abordagem de whole school approach (Hargreaves, 2008), ao nível global da escola, nos seus princípios e práticas, mas também pela sua consubstanciação numa componente curricular, denominada Cidadania e Desenvolvimento, prevista como parte integrante de todos os anos de escolaridade, do ensino básico e do ensino secundário, na qual
os professores têm como missão preparar os alunos para a vida, para serem cidadãos democráticos, participativos e humanistas, numa época de diversidade social e cultural crescente, no sentido de promover a tolerância e a não discriminação, bem como de suprimir os radicalismos violentos (Ensino Básico e Secundário. Cidadania e Desenvolvimento, 2017, p. 2).
A área de “Cidadania e Desenvolvimento assume-se, assim, como um espaço curricular privilegiado para o desenvolvimento de aprendizagens com impacto tridimensional na atitude cívica individual, no relacionamento interpessoal e no relacionamento social e intercultural” (ENEC, 2017, p. 3). Esta nova componente propõe uma série de diferentes domínios a serem abordados: i) de forma obrigatória para todos os níveis e ciclos de escolaridade – Direitos Humanos (civis e políticos, económicos, sociais e culturais e de solidariedade); Igualdade de Género; Interculturalidade (diversidade cultural e religiosa); Desenvolvimento Sustentável; Educação Ambiental; Saúde (promoção da saúde, saúde pública, alimentação, exercício físico); ii) pelo menos em dois ciclos do ensino básico – Sexualidade (diversidade, direitos, saúde sexual e reprodutiva); Media; Instituições e participação democrática; Literacia financeira e educação para o consumo; Segurança rodoviária; Risco; iii) de aplicação opcional em qualquer ano de escolaridade – Empreendedorismo (na suas vertentes económica e social); Mundo do Trabalho; Segurança, Defesa e Paz; Bem-estar animal; e Voluntariado. É ainda possível a abordagem de qualquer outro domínio, de acordo com as necessidades diagnosticadas pela escola, desde que se enquadre no conceito de Educação para a Cidadania proposto no documento estratégico.
Este novo enquadramento levanta um conjunto de desafios aos/às educadores e professores/as no que diz respeito à prática destas orientações nos contextos escolares e à qualidade das mesmas. Neste sentido, os documentos reconhecem que “a formação humanista dos professores é, pois, fundamental porquanto facilita a interligação entre as aprendizagens das disciplinas e os domínios a serem abordados nesta componente do currículo” (Ensino Básico e Secundário. Cidadania e Desenvolvimento, 2017, p. 2): i) a Estratégia Nacional de Educação para o Desenvolvimento 2018-2022, prevê, no seu objetivo 1, medida 1.1 a “formação de agentes educativos”, e no objetivo 2, o “reforço da integração da Educação para o Desenvolvimento no sistema educativo”; ii) a Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania reforça a importância de “investir e integrar a Educação para a Cidadania na formação inicial e na formação contínua de docentes” (ENEC, p. 5).
Julgamos ser possível afirmar que, como temos vindo a demonstrar, a dimensão transformadora da educação e da escola, ainda que com as suas limitações, tem vindo a ganhar alguma relevância através das orientações governamentais para a área da Cidadania e Desenvolvimento, pelos currículos construídos e pelas práticas levadas a cabo a partir delas.
O projeto Escolas Transformadoras: contributos para uma mudança social a partir da Educação para o Desenvolvimento e para a Cidadania Global na Escola (a partir de agora referido como Escolas Transformadoras ou somente ET) surgiu exatamente no quadro destas orientações governamentais e a partir da expetativa de poder trabalhar na formação inicial e contínua de professores/as os desafios colocados no âmbito da Educação para a Cidadania, a partir de uma perspetiva de Educação para a Cidadania Global. Pretendeu-se assim conferir à EC uma dimensão crítica e política, que se encontra muitas vezes ausente e que é fundamental enquanto parte do processo de aprendizagem desta componente curricular.
No entanto, a experiência do projeto, que se desenvolveu também em relação com contextos formativos onde estiveram envolvidos/as professores/as dos agrupamentos e escolas dos vários territórios envolvidos no projeto, permitiu perceber que a entrada destas orientações governamentais nas escolas (algumas pela via normativa) e as mudanças que lhe estão associadas, não estão a ser pacíficas ou consensuais tanto para docentes como para outras pessoas das comunidades educativas (e.g., Lourenço, 2018).
De uma forma geral, as escolas têm demonstrado, ao longo da sua história, alguma dificuldade em lidar com a mudança, mas, apesar das dificuldades que enfrentam e que todos vamos conhecendo, o papel do professor como agente de mudança é imprescindível (Fernandes, 2000). Na verdade, os sistemas não mudam por si próprios, são as pessoas que os mudam (Fullan, 1993), pelo que a relação educativa estabelecida entre (a pessoa do/a) professor/a e (a pessoa do/a) aluno/a, assume todo um potencial transformador. Fullan (1993) sublinha que a mudança não pode ser imposta nem totalmente regulamentada; é incerta, gera ansiedade e, simultaneamente, aprendizagem; é problemática, pelo que geradora de novas ideias e avanços e, paralelamente, exige tempo.
Dificuldades e bloqueios relativos à passagem das orientações às práticas são inúmeras e os/as docentes expressam a sua dificuldade em gerir estas mudanças que são exigentes, quer ao nível da preparação para trabalhar os domínios, quer ao nível das metodologias propostas, quer ao nível da sua abordagem transversal e interdisciplinar, pouco comum nas escolas. A oferta de formação não tem sido suficiente para suprir as necessidades, sobretudo se tivermos em conta que a área de Cidadania e Desenvolvimento não é apenas uma disciplina a ser entregue a um professor ou professora, mas sim uma componente curricular transversal que deve dar forma a toda a vivência escolar, em todas as disciplinas, dentro e fora da sala de aula. Em última análise, todos e todas as docentes deveriam fazer formação sobre esta componente.
Recentemente surgiu um manifesto “Em defesa das liberdades de educação”, assinado por várias figuras públicas portuguesas, a pugnar pela possibilidade de objeção de consciência perante a “disciplina” de Cidadania e Desenvolvimento, abrindo um debate na sociedade portuguesa face ao papel do sistema público de ensino, à neutralidade ou ideologização da educação, à liberdade de consciência, entre outros. Este debate, tendo revelado algumas fragilidades da nova componente curricular – o pouco conhecimento da sociedade em geral sobre a mesma, a formação insuficiente de alguns docentes para lidar com os domínios, os desafios das novas metodologias propostas, a dificuldade de ser interiorizada como uma componente que “deve estar embutida na própria cultura de escola, assente numa lógica de participação e de corresponsabilização” (ENEC, 2017, p. 5) – também se reveste como uma oportunidade para estas áreas e para que a discussão sobre o seu papel transformador salte da esfera “privada” de algumas salas de aula para a esfera pública da sociedade em geral, questionando princípios, valores, metodologias, planos de formação, etc., procurando ultrapassar resistências provocadas quer por desinformação quer por diferentes visões do mundo. Acima de tudo, entendemos que o que se pretende com esta nova componente é promover a mudança sem dizer aos aprendentes o que devem pensar ou fazer, criando um espaço no qual se sintam seguros e confiantes para analisar e experimentar outras formas de ver/pensar e de ser/relacionar com o outro (Andreotti, 2014).
Concordamos que é inegável o papel político da componente curricular de Cidadania e Desenvolvimento propondo-se que nesta os alunos e as alunas “realizem aprendizagens através da participação plural e responsável de todas e todos na construção de si como cidadãs/ãos e de sociedades mais justas e inclusivas, no quadro da democracia, do respeito pela diversidade e da defesa dos Direitos Humanos” (ENEC, 2017, p. 3), como concordamos que é exatamente esse o papel dos e das docentes:
Nos corresponde a nosotros, como educadores, mostrar a nuestros estudiantes la belleza y el interés de una vida abierta al mundo entero, mostrarles que, después de todo, hay más alegría en el tipo de ciudadanía que cuestiona que en la que simplemente aplaude, más fascinación en el estudio de los seres humanos en toda su real variedad y complejidad que en la celosa búsqueda de estereotipos superficiales, que existe más amor y amistad verdaderos en la vida del cuestionamiento y de la autonomía que en la de la sumisión a la autoridad. Es mejor que les mostremos esto, o el futuro de la democracia en el mundo lucirá muy sombrio (Nussbaum, 2005, apud Torres Santomé, 2011, p. 210).
E para que a dimensão transformadora da educação e da escola seja uma realidade, é imprescindível a implementação de formas de trabalho colaborativo entre docentes devido ao potencial que apresentam para enriquecer formas de pensar, de agir e de resolver problemas, que acrescentam, seguramente, possibilidades de sucesso à tarefa pedagógica (Damiani, 2008).
É fundamental estabelecer relações de confiança, proximidade e horizontalidade entre docentes que trabalham desta forma. A eliminação de barreiras hierárquicas e a ideia de que o contributo de todas e todos, independentemente das suas áreas científicas/disciplinares, é válido para a discussão ou investigação em curso, é essencial para gerar pontes entre áreas do saber/pontos de vista científicos. Resulta, portanto, que a par das sinergias criadas, emerja uma elevada capacidade crítica e um conhecimento mais abrangente da realidade a estudar e/ou objeto de intervenção, que é desejada pelo grupo e fundamental para a produção de conhecimento científico.
1.2. Do trabalho colaborativo à comunidade de prática
Não é recente a ideia de que as relações de trabalho colaborativo possibilitam um melhor conhecimento da realidade de uma comunidade e, assim, a adoção de soluções que melhor se adaptem às necessidades dessa comunidade, pelas sinergias criadas. Com efeito, as sinergias resultam do contributo dos diferentes atores com suas diferentes perspetivas, seu conhecimento e recursos na identificação e compreensão de problemas comuns que, articulados, podem proporcionar o desenvolvimento de soluções para as comunidades envolvidas (Jara, 2013). Lasker et al. (2001) definiram sinergia como o poder de combinar recursos e competências de um grupo de pessoas e organizações. A colaboração aumenta, pois, a capacidade para alcançar algo desejável/necessário por parte de um grupo de pessoas e/ou de organizações até porque ninguém, por si só, possui toda a informação para tomar uma decisão que seja vantajosa para todo o grupo, sobretudo se o contexto é complexo.
Embora não seja nosso objetivo discutir aprofundadamente os conceitos de cooperação e colaboração, consideramos importante situarmo-nos em termos conceptuais dado que, com alguma frequência, se usam os conceitos de cooperação e colaboração, num contexto não especializado, como termos praticamente sinónimos. Há com efeito diferenças significativas, ao nível conceptual, designando realidades distintas entre si.
Ao falar de cooperação e de trabalho colaborativo, situamo-nos na perspetiva de Roldão (2006; 2007). Não nos revemos no modo de trabalhar cooperativamente, isto é, de “apenas” operar em conjunto, já que o trabalho colaborativo desenvolvido entre pares, no contexto de equipa, não contempla o formato/a metodologia em que cada elemento tem atribuída uma tarefa distinta, pressupondo a divisão clara das tarefas que cada membro tem de desempenhar. Pelo contrário: assiste-se à intervenção de todos os elementos da equipa nas tomadas de decisão, implicando, de facto, uma negociação contínua e uma reconfiguração das práticas e da reflexão que lhes estão subjacentes. A divisão de tarefas específicas à partida não se verifica, decorrendo antes da efetiva cooperação/discussão/experimentação.
Esta metodologia/prática, isto é, o desenvolvimento de uma cultura de colaboração, não está, no entanto, isenta de riscos, mas pelo facto de ser disruptiva e de, como refereHargreaves (1998, p. 209), suscitar“uma maior disponibilidade para fazerem experiências e para correrem riscos”, é intrinsecamente transformadora. Permite aos docentes aprender (e aprender a aprender, continuamente) entre pares e com os seus estudantes, numa partilha de saberes que lhes permite reconfigurar-se, transformar(-se) e ampliar o conjunto das suas competências, fomentando o seu desenvolvimento pessoal e profissional ao mesmo tempo que se constituem como agentes transformadores da escola e da comunidade.
As escolas não existem independentemente das comunidades, portanto uma(s) e outra(s) são espaços de cruzamento de narrativas de diversidade, de criação e de valores no sentido holístico e como processo. É, portanto, indispensável refletir sobre elas e sobre essa reflexão gerar mais construção, à semelhança do que fazem as comunidades de prática. O conceito de comunidade de prática é introduzido por Wenger em 1998, como um grupo de pessoas que tem uma motivação ou um problema comum, que conhece bem, e que se reúne periodicamente para aprender mais sobre esse aspeto que une o grupo.
As comunidades de prática caracterizam-se por poderem ser, não apenas presenciais, mas também virtuais, o que constitui uma inquestionável vantagem em tempos de pandemia e distanciamento social, mas também quando se esgota um tempo e espaço formal de encontro presencial. Formadas por pessoas que voluntariamente se agregam por partilharem interesses comuns, que trocam informações e conhecimento (e vão construindo conhecimento) de forma colaborativa e horizontal, interagindo regularmente, podem dar resposta ao desejo de, mais do que existir em conjunto, querer ter projetos conjuntos e continuar a ser todos aprendentes – pessoas, escolas, comunidades e territórios. O seu objetivo último é a partilha de aprendizagens que se constroem com base num projeto conjunto/preocupação comum, envolvimento recíproco e linguagem (no sentido conceptual) partilhada (Wenger, 2010). Cada comunidade de prática apresenta nos seus domínios várias diferenças e especificidades; porém, há características que são comuns, nomeadamente: i) constituírem redes de trabalho; ii) serem guiadas pelo desejo de participação dos seus membros; iii) focarem-se na aprendizagem e na capacitação; e iv) estarem ligadas à partilha de conhecimento, ao desenvolvimento de conhecimento especializado e à resolução de problemas.
Serrat (2010), quando propõe um modelo de design e de manutenção e gestão sustentável de uma comunidade de prática (Figura 1), vem lembrar que os membros do grupo, dessa comunidade, têm que percorrer um conjunto de etapas com significado particular; isso demora tempo a acontecer e requer que aspetos como diálogo e respeito, autonomia, responsabilidade e solidariedade estejam enraizados nas práticas de trabalho.
Para cada elemento do grupo, o percorrer estes passos gera necessariamente aprendizagem e as alterações de valores que resultam dessas aprendizagens permitem a compreensão dos fenómenos e isso, por sua vez, conduz a uma nova espiral de alteração de valores. Assim, a aprendizagem desenvolve-se em modelo de espiral, como um processo de aprendizagem em ação, que se traduz numa aprendizagem reflexiva e mais profunda (Nielsen & Nielsen, 2006; Serrat, 2010).
Esta profundidade, derivada de um formato de trabalho colaborativo, constitui, não só uma proposta de transformação individual, mas também uma proposta de caminho de transformação das políticas das instituições envolvidas, como foi o caso, neste projeto: a) da criação de grupos de reflexão para a ação pedagógica no âmbito curricular; b) da realização de estágios curriculares que fundamentam as suas práticas na reflexão crítica sobre as mesmas; c) do envolvimento de departamentos e comunidades educativas que tradicionalmente não assumem uma relação tão direta com a formação de professores/as; etc. Podemos, por isso, afirmar que o trabalho colaborativo constituiu assumidamente uma opção política deste projeto.
Figura 1 – Modelo de criação, manutenção e gestão de uma comunidade de prática (adaptado de Serrat, 2010).
2. O Projeto Escolas Transformadoras
Como vimos anteriormente, as políticas atuais de Educação para a Cidadania trouxeram muitas interrogações e desafios às escolas. Qual o papel das escolas na leitura e resposta aos desafios que se colocam diariamente à sociedade, na sua complexidade, na sua mudança constante? Como se posicionam as pessoas que trabalham e vivem as escolas face às problemáticas das suas comunidades e do mundo? Como incluir processos participativos e colaborativos na formação de agentes educativos para apoiar nestas questões?
O Projeto Escolas Transformadoras: contributos para uma mudança social a partir da Educação para o Desenvolvimento e para a Cidadania Global na Escola 8, surge da necessidade de responder a estas inquietações, oferecendo a oportunidade para repensar a Escola com as escolas e as comunidades educativas. Mais especificamente, com os espaços privilegiados de formação de pessoas que conduzem ou irão conduzir processos educativos como são as Escolas Superiores de Educação dos Institutos Politécnicos (ESE-IP), abrindo possibilidades de transformação das escolas enquanto espaços de partilha de saberes, enquanto espaços plurais de relações positivas, enquanto espaços de construção de cidadania crítica que contribuem para o desenvolvimento dos territórios em diálogo com a sociedade global.
Integrar e/ou reforçar estas (e outras) questões e temáticas associadas à Educação para o Desenvolvimento e Cidadania Global nas escolas e instituições de Ensino Superior (IES), nomeadamente na formação de professores/as, bem como disseminar e implementar atividades nos Agrupamentos de Escolas, partindo do princípio que estes representam espaços privilegiados para a participação e a (re)construção do futuro das sociedades, representa uma oportunidade de contributo efetivo para a transformação social.
O Projeto Escolas Transformadoras, dinamizado entre julho de 2018 e julho de 2020, envolveu, num verdadeiro trabalho colaborativo, uma Organização Não Governamental para o Desenvolvimento (Fundação Gonçalo da Silveira), duas Escolas Superiores de Educação integradas em Institutos Politécnicos (Santarém e Viana do Castelo) e um Instituto Politécnico (Beja), com o objetivo global de “reforçar a ED na Escola enquanto espaço de reflexão crítica e transformação social”, apoiando “as comunidades educativas e os outros agentes escolares na implementação da Estratégia de Educação para a Cidadania, especificamente na sua vertente de Educação para o Desenvolvimento”.
De forma a atingir estes objetivos, foram previstos três resultados: i) o reforço das aprendizagens, competências e práticas de ED dentro das ESE e IP envolvidos; ii) a consolidação das dinâmicas de ED nas comunidades educativas das áreas de influência das ESE e do IP; iii) a criação e dinamização de espaços de diálogo, partilha e reflexão entre atores educativos.
Na sua operacionalização, o projeto propôs uma intervenção coerente e baseada nos princípios e valores da Educação para o Desenvolvimento, com uma dinâmica colaborativa em todas as suas atividades, nomeadamente:
- nas várias ações de capacitação, especificamente, na formação inicial nas ESE e formação contínua de educadores/as e professores/as nos agrupamentos de escolas e na formação de formadores/as em ED;
- nos momentos de encontro temáticos, especificamente, o ciclo de seminários temáticos realizados nas várias ESE e no encontro final;
- nos momentos de reflexão crítica e construção de conhecimento que abriram e fecharam o projeto, ou seja, no diagnóstico de necessidades e caracterização das ESE e no processo de sistematização de conhecimento produzido nas atividades do projeto.
3. Metodologia
Como referido anteriormente, todo o projeto foi concebido, implementado e refletido tendo por base a metodologia do trabalho colaborativo, ou seja, “numa lógica de construção conjunta de trabalho e de aprendizagens a partir de um contexto, possibilitando assim a promoção de sinergias e do significado daquilo que se constrói” (Raposo et al., 2019, p. 852). A valorização do processo foi assumida, desde a sua candidatura, como uma das características do projeto, em coerência com a assunção de que só dessa forma se podem promover aprendizagens críticas, questionadoras e mobilizadoras, com vista à transformação da realidade.
Dessa forma, ao longo dos dois anos do projeto, foi promovida uma cultura de recolha de informações, através de documentos produzidos, memórias, fotografias, vídeo, etc., que foram dando corpo a vários produtos do projeto e que, aliados a momentos de reflexão colaborativos específicos para o efeito – ocorreram três no decurso do projeto –, serviram de apoio a uma sistematização final de aprendizagens, facilitada por uma equipa da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Bragança.
Partindo da questão principal “O que faz com que a escola seja transformadora?”, foram definidas as seguintes subquestões: “Quais as dimensões importantes de análise, que práticas educativas, pedagógicas e metodológicas são importantes para uma Escola Transformadora? Que relações esta Escola precisa de cuidar para se posicionar na sociedade enquanto agente de mudança? E para que mudanças quer a Escola contribuir?” (Martins & Bergano, 2020, p. 8).
Este processo de reflexão, partindo da análise de conteúdo de documentos produzidos no decurso do projeto, do processo de diálogo com a equipa parceira e dos registos resultantes da dinamização de duas sessões dedicadas expressamente à sistematização das práticas e aprendizagens, deu origem a uma publicação final que permite à equipa dinamizadora do projeto refletir sobre as suas próprias aprendizagens, partilhar com outros atores a sua experiência de trabalho e inserir-se no diálogo sobre os princípios, valores e práticas de uma escola vocacionada para a transformação social.
Neste artigo pretende-se responder à questão: “Como foi mobilizada a colaboração no âmbito do projeto e quais as aprendizagens daí decorrentes?”, partindo de um projeto que pretende contribuir para a implementação de uma política pública na área da Cidadania e que centrou a sua ação em torno de processos colaborativos. Como fonte, foi utilizado, sobretudo, o documento Escolas Transformadoras: contributos para uma mudança social a partir da Educação para o Desenvolvimento e para a Cidadania Global na Escola. Sistematização de práticas e aprendizagens 9, havendo ainda o recurso ao documento de candidatura do projeto e outros documentos produzidos no âmbito do projeto, nomeadamente i) memórias dos vários exercícios de reflexão efetuados e ii) comunicações e artigos redigidos pela equipa do projeto com base nestes processos de reflexão. Estes documentos foram interpretados através de um processo de análise de conteúdo.
4. Considerações sobre a análise efetuada
A relação do projeto com as políticas públicas na área da Educação para a Cidadania é inegável. Na realidade, esta missão é assumida desde a própria candidatura onde se pode ler “foi pensado este projeto para apoiar escolas, docentes e futuros docentes, a integrar na sua ação educativa os novos documentos enquadradores destas áreas temáticas”, dos quais se dão exemplo, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, o Referencial de Educação para o Desenvolvimento – educação pré-escolar, ensino básico e ensino secundário, a Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania (Despacho n.º 6173/2016, de 10 de maio), o projeto de Autonomia e Flexibilização Curricular (Despacho n.º 5908/2017, de 5 de julho), o Perfil dos alunos à saída da escolaridade obrigatório (Despacho n.º 6478/2017, de 26 de julho); e a nova Estratégia Nacional de Educação para o Desenvolvimento (na época ainda em processo de aprovação).
No mesmo documento pode ainda ler-se: “o projeto constituiu-se, assim, como uma mais-valia complementar aos novos enquadramentos propícios à ED”, procurando a sua operacionalização através da formação de docentes do ensino superior (nomeadamente das ES envolvidas); da integração destes conteúdos na formação inicial de professores/as; da oferta de ações de formação de formadores/as em ED e formação contínua para professores/as dos agrupamentos de escola envolvendo a mobilização de competências; da reflexão sobre estas práticas e partilha de experiências, a um nível regional e nacional, e da sistematização e divulgação das aprendizagens ocorridas nestes processos.
Ao nível metodológico, a opção pelo trabalho colaborativo também é visível, desde o processo de elaboração da candidatura, tendo sido validada esta opção no diagnóstico que foi levado a cabo no início do projeto em cada uma das instituições do ensino superior envolvidas. De facto, na análise dos resultados deste processo são identificados quatro principais constrangimentos ao trabalho das temáticas da ED/ECG nas instituições, sendo que a falta de trabalho colaborativo é um dos que recolheu mais referências (Raposo et al., 2019). Esta necessidade é reforçada na sessão presencial, realizada em cada ESE, dedicada à exploração desta etapa de diagnóstico e onde o primeiro tópico emergente é também a falta de processos e trabalhos colaborativos.
Após o primeiro ano de projeto, no contexto do primeiro momento de avaliação intermédia e aproveitando a possibilidade de apresentação de uma comunicação numa conferência internacional de referência nestas áreas 10, foi realizada uma reflexão interna entre as pessoas participantes no projeto que foi traduzida da seguinte forma: “Refletindo um pouco sobre o modo como a equipa desenvolve o trabalho, é nosso entender que contribuem para o sucesso do grupo, principalmente três tipos de fatores. São eles a confiança, a colaboração e o cuidar. (…) a colaboração torna-se fundamental ao longo de todo o processo tanto mais que a) existem diferentes níveis de conhecimento e de experiência com as temáticas da ED, o que permite uma aprendizagem entre pares através da partilha e da reflexão sobre as práticas e ainda b) as experiências diferenciadas e complementares existentes entre as duas tipologias de entidades envolvidas – ESE e ONGD – são assim potenciadas e sinérgicas” (Raposo et al., 2019, p. 855). Nesta fase, o trabalho colaborativo foi considerado “como característica e condição essencial deste projeto, entre as instituições, mas sobretudo entre as pessoas envolvidas dentro de cada ESE. Um trabalho colaborativo também muito ligado a uma ideia de suporte mútuo” (idem).
Numa outra oportunidade de reflexão coletiva, e com o mesmo fim de ser apresentada uma comunicação na edição seguinte da mesma conferência internacional, é apresentada a consubstanciação do trabalho colaborativo em cada uma das atividades do projeto (Fernandes et al., 2020): na estruturação colaborativa da formação sobre temáticas e metodologias de ED em cada uma das instituições; no envolvimento das docentes de cada um dos territórios na preparação e na facilitação das ações de formação acreditadas que visam formar e capacitar agentes educativos em ED dos agrupamentos escolares e da comunidade educativa envolvente; na elaboração colaborativa de instrumentos que orientaram os processos de integração da ED/ECG nos diferentes espaços do Ensino Superior (unidades curriculares, cursos, departamentos, espaços não formais); na concetualização e dinamização de espaços de reflexão e debate abertos ao público no âmbito da temática da educação transformadora em cada um dos territórios; e na cultura de reflexão contínua e conjunta que se foi promovendo ao longo de todo o projeto com vista à sistematização das aprendizagens construídas durante o processo.
Este processo de sistematização de aprendizagens, como referido anteriormente, permitiu um olhar mais aprofundado sobre o processo vivido. A importância atribuída à sistematização das práticas e aprendizagens fez com que se desenvolvesse um processo participado, organizado e dinamizado no sentido de reconhecer conceitos e processos envolvidos no projeto, estabelecer relações entre práticas e aprendizagens, refletir criticamente sobre as ações e, sobretudo, tecer considerações reflexivas relevantes para a construção de uma ET.
A colaboração foi um dos aspetos mais realçados durante todo o processo, aparecendo em lugar de destaque, logo na contextualização do documento de SPA, sendo aqui introduzida a sua definição no âmbito do projeto, o que legitima a sua relevância: “Neste projeto a colaboração é compreendida no sentido da implicação e o consenso de todos/as os/as envolvidos/as, na planificação e desenvolvimento do mesmo” (Martins & Bergano, 2020, p. 7). No estudo, as autoras organizaram a sua análise em torno de quatro dimensões: Objetivos, Estratégias, Obstáculos e Resultados, sendo que, em todas, se pode verificar a centralidade dos processos colaborativos.
Relativamente aos Objetivos, de carácter mais formativo ou de caráter mais institucional, estes assentam na promoção do envolvimento ativo dos agentes educativos de forma a reconhecerem que o papel da instituição e a sua relação com a comunidade são determinantes para a construção de uma Escola Transformadora. Houve ainda um foco claro no envolvimento e na participação efetiva de estudantes, a partir de processos colaborativos com docentes e outros agentes no quotidiano das escolas. Estas relações colaborativas trazem implicações ao nível da transformação das relações entre pessoas e territórios.
Na dimensão Estratégias Educativas, a “organização de ambientes e experiências colaborativos” (idem, p. 14-15) surge como uma “abordagem promotora” de aprendizagens. O projeto procurou desencadear processos reflexivos, organizando experiências e ambientes colaborativos, que incluem propostas de integração curricular de conteúdos e práticas em ED/ECG em diferentes Unidades Curriculares, em diversas formações académicas, e também em projetos. São particularmente reveladores desta abordagem colaborativa estratégias como o envolvimento dos órgãos diretivos, a criação/organização de um grupo promotor da ED/ECG em cada IES; a realização de reuniões de reflexão partilhada com colegas da instituição; a implementação e promoção de formação interna nas IES; a relação/articulação do projeto ET com outros projetos em desenvolvimento nas IES; a promoção das relações das IES com os Agrupamentos e o envolvimento/participação ativo(a) da comunidade.
Através de um processo dinâmico de participação e colaboração, todas as atividades do projeto envolveram a partilha transversal e horizontal das práticas e saberes de cada uma das entidades parceiras, alicerçadas nas suas diferentes experiências, processos e geografias.
Partindo da crença na aprendizagem colaborativa como dinâmica de uma Escola Transformadora, foram eleitas práticas que promovem a horizontalidade das relações e a co-aprendizagem, possibilitando a aprendizagem experiencial dos princípios e valores da democracia e a sua atualização e o desenvolvimento de competências complexas que articulam saberes, atitudes e valores no âmbito da ED/ECG. As práticas foram, assim, intencionais e colaborativas, uma vez que procuraram ter um sentido comum para os/as participantes e visaram o envolvimento de cada um/a e do coletivo no projeto de transformação social.
No entanto, o trabalho colaborativo não surge por geração espontânea, sendo reconhecido que requer empenho e que necessita de “ser cuidado”. Na dimensão Obstáculos, encontramos a referência aos “aspetos relacionais”, entre os quais se mencionam: (i) as dificuldades relacionais do trabalho colaborativo, designadamente quando este tem um carácter pontual; e (ii) as dificuldades resultantes do não envolvimento do pessoal não docente, entre outras” (idem: 16). De facto, a falta de tempo referida pelos e pelas docentes na fase de diagnóstico foi um elemento dificultador de processos colaborativos. Para existir verdadeira colaboração, como dito anteriormente, é necessário tempo para se partilharem visões e perspetivas, sobretudo quando falamos em atores que provêm de áreas distintas do saber (entre os docentes das ESE, por ex.), de tipologias de instituições diferentes (das ESE, da ONGD e dos agrupamentos de escolas, por ex.) e com posições bastante diferenciadas (membros de direções, docentes e estudantes, por ex.). De facto, na reflexão sobre as aprendizagens realizadas no âmbito do projeto, são apontadas as aprendizagens relacionais, sejam estas a nível pessoal ou institucional:
Do ponto de vista das relações pessoais destaca-se a preocupação com o cuidar da relação, ou seja, dar atenção ao outro e promover a proximidade entre os/as intervenientes. A colaboração é em si uma estratégia e simultaneamente uma finalidade, no sentido em que alimenta a dinâmica de aprendizagem com o outro, ouvindo-o, acolhendo e valorizando os seus contributos numa relação mútua e simétrica. Do ponto de vista institucional, o trabalho em rede assume neste cenário uma concretização dos pressupostos e valores de uma Escola Transformadora e tem o potencial de concretizar estratégias institucionais de articulação que podem promover a partilha de saberes, a contaminação de boas práticas e o enriquecimento mútuo (Martins & Bergano, 2020, p. 25).
No que respeita aos Resultados é evidente a valorização do desenvolvimento de práticas “onde se destaca a integração curricular e o desenvolvimento de práticas colaborativas associadas à ED/ECG” (idem, p. 17), que promovam o envolvimento colaborativo de vários agentes educativos (docentes, estudantes, elementos da comunidade), construindo dinâmicas de uma Escola Transformadora.
Na abordagem à questão de fundo, “O que é uma Escola Transformadora?”, este aspeto surge, novamente, em destaque: “uma Escola Transformadora é uma escola que assume a ED/ECG como um conteúdo e um processo” (idem, p. 18), sendo referido, entre outras evidências, o trabalho colaborativo e em rede como meio para a construção de conhecimento partilhado e a adoção desse desígnio como marca de uma cultura institucional. Podemos afirmar que é o processo que contribui de maneira significativa para os resultados que, assim, dele dependem. É esta consciência sempre presente no fazer que afinal, é transformadora (Raposo et al., 2019, p. 855).
Em suma, é possível concluir que a colaboração, no Escolas Transformadoras, foi assumida como uma abordagem transversal às diferentes dimensões do projeto, que se reconhece desde logo na enunciação dos seus objetivos, nos públicos e parceiros que acolhe ou nas relações que procura promover, mas que implica também condições que se disseminam ao nível das diversas opções de planeamento e desenvolvimento da ação, particularmente ao nível das práticas, na conceção e dinamização de estratégias, metodologias e atividades, ou ainda na avaliação.
E para além de um tempo limitado e mais ou menos formalizado de um projeto, uma vez que o assunto não se esgota no projeto em si, mas antes cresce, multiplica-se e complexifica-se como corolário da sua própria metodologia e prática colaborativa, há que encontrar continuidades na rutura imposta pelas questões administrativas e burocráticas. A comunidade de prática pode dar resposta a esta necessidade de continuação, reforçando as redes de cooperação que se formaram entre os participantes dos territórios presentes, apoiando a continuidade do questionamento, o aprofundamento das aprendizagens com o recurso ao espírito crítico. A comunidade proporciona também as condições para a criação de um espaço seguro para a partilha de dúvidas e práticas bem e mal sucedidas e para a procura, no âmbito desta rede colaborativa, de respostas para a escola e sociedade que se desejam transformadoras, transformadas e mais justas.
A breve análise apresentada neste artigo ilustra como o trabalho colaborativo em torno de conteúdos e processos, quer na sua vertente de co-construção de conhecimento, como de consolidação de relações de cuidado entre as pessoas, sustentou a reflexão, exploração e integração de políticas educativas, transformando-as em práticas educativas e pedagógicas, perseguindo uma visão transformadora do ser, do fazer e do agir.
[1] Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Viana do Castelo.
[2] Instituto Politécnico de Beja.
[3] FGS – Fundação Gonçalo da Silveira.
[4] Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Santarém.
[5] Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Bragança.
[6] Embora as definições utilizadas a nível europeu para designar esta área de pensamento e de trabalho sejam bastante diversas (Educação Global, Aprendizagem Global, entre outras) os conceitos adotados neste trabalho serão o de Educação para o Desenvolvimento (ED) (em linha com a Estratégia Nacional de Educação para o Desenvolvimento) e o de Educação para a Cidadania Global (ED/ECG), que é aquele que, em Portugal, se encontra mais consensualmente ligado ao conceito de Educação para o Desenvolvimento (Relatório da Avaliação Externa da Estratégia Nacional de Educação para o Desenvolvimento, 2017: 100).
[7] Sublinhado da responsabilidade da equipa redatora.
[9] A partir de agora referenciado como SPA, de Sistematização de Práticas e Aprendizagens.
[10] O INCTE – Encontro Internacional de Formação na Docência, organizado pela Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Bragança.
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