Entrevista1 a Augusta Henriques2
Augusta Henriques (A). – Obrigada eu Stéphane, por me dares esta oportunidade de partilhar uma visão, um percurso, reflexões e ensinamentos que a minha experiência na Tiniguena me tem proporcionado, já lá vão 25 anos!
Quando, em 1991, a Tiniguena foi fundada começamos desde logo a interagir com o conceito de ED. Concebemos um programa de trabalho que incluía duas vertentes: uma a que chamávamos Ações de Desenvolvimento (AD) e outra que designámos como Educação para o Desenvolvimento (ED). Naquela altura eram poucas as organizações africanas que apostavam na ED. Havia uma compreensão de que esta se limitava às atividades realizadas pelas ONG do Norte, visando informar e sensibilizar as populações dos seus países sobre a situação que se vivia em África, assim como em outras regiões devastadas pela fome, pobreza e calamidades naturais. A ideia era despertar alguma sensibilidade que permitisse a angariação de fundos para ajuda às populações mais vulneráveis. O trabalho das ONGs do Sul, daquelas que eu pelo menos conheci na minha trajetória na Tiniguena e na Solidami5, concentrava-se no objetivo de contribuir para a reflexão crítica sobre políticas que contribuíam para endividar e empobrecer a África e para projetar uma outra imagem deste continente. Trabalhávamos sobretudo com o FOVAD6, organização pioneira que abrigava uma grande rede de organizações não-governamentais africanas, que procurava, no cenário continental e internacional, levar uma outra imagem de África. Uma África de gente digna e combativa, procurando desmontar a imagem da África de pedintes, imagem de suporte daquelas grandes linhas de financiamento para a ajuda contra a fome no seguimento da enorme crise que atingiu a Etiópia, onde se mostravam crianças num estado miserável…
S. – Com moscas e com a barriga grande…
A. – Exato. Ao que se seguia um pedido de dinheiro para salvar essas crianças. Mas nós achávamos que não eram imagens dignificantes do nosso continente, nem contribuíam para o progresso de África; pensávamos que havia outras realidades e outras imagens mais positivas a divulgar; acreditávamos que o continente avançava graças a muita gente que se mantinha de pé, de cabeça erguida, mangas arregaçadas, que tinha capacidades e visão de um futuro digno a construir pelos próprios africanos. Defendíamos, nessa altura, que era preciso apostar mais na participação das populações nas políticas de desenvolvimento, e denunciávamos modelos do tipo top/down, desajustados na maioria dos casos, como as receitas de ajustamento estrutural preconizadas pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional, que, na nossa opinião, causavam profundas disparidades sociais e reforçavam ainda mais a situação da pobreza. Era então necessário mudar esta imagem de África. A intervenção das organizações africanas vinha mais nesse sentido. Participámos em campanhas que eram feitas na Europa, nos EUA, no Canadá, para mostrar que nem todos os africanos estavam com a barriga inchada, com moscas à volta e a passar fome e que nem todos eram corruptos, procurando desmontar esta e outras ideias pré-concebidas. Queríamos, acima de tudo, mostrar que havia gente que trabalhava, que tinha valores, que também lutava por um desenvolvimento mais participativo e justo.
Entretanto, por essa altura7, havia uma conjuntura particular na Guiné-Bissau. Estávamos a sair de um modelo de desenvolvimento e de uma visão paradigmática fundamentados no marxismo-leninismo e influenciados pelos países do bloco socialista, que eram nossos principais aliados a nível internacional. Ainda que nós, na Guiné-Bissau, não tivéssemos adotado formalmente o modelo de desenvolvimento socialista, os valores preconizados pelo socialismo estavam presentes nas orientações políticas e económicas dos primeiros anos da independência, e tinham norteado a luta pela independência da nossa terra. Com a Perestroika e a queda do Muro Berlim, as ideologias de cariz capitalista se propagam, levando à emergência de um capitalismo triunfante, com a consagração da economia de mercado como modelo único de desenvolvimento. O nosso país, e tantos outros, adotam programas de ajustamento estrutural, no âmbito dos quais são tomadas medidas de liberalização económica, com a aposta no desenvolvimento do sector privado e outras orientações próprias da economia de mercado. Na mesma lógica, segue-se a liberalização política, que se traduz na instalação do multipartidarismo e que favorece também algum espaço de liberdade para a sociedade civil, permitindo, desta feita, o nascimento das primeiras ONGs nacionais. Com esta nova visão e estas novas oportunidades que se abriam no país, sentimos que precisávamos de perceber um bocadinho mais o que são as ONGs e o universo da ação cidadã. Precisávamos de compreender melhor outras temáticas que estavam a aparecer e que viriam a inspirar a fundação da Tiniguena, como o desenvolvimento participativo e a conservação do meio-ambiente. Por isso, não tivemos dúvidas que era fundamental que a ED participasse da nossa visão e proposta de ação.
S. – A aprendizagem começou por vocês próprios, na Tiniguena?
A. – Começou por nós mesmos. No entanto, não foi um acaso. Eu tive o privilégio de conhecer várias ONGs estrangeiras, porque fui diretora da Solidami e, nessa qualidade, fui interlocutora para a promoção dos parceiros não-governamentais na Guiné-Bissau. Participei em várias visitas de estudo feitas à Holanda, à Suíça, a Portugal, a Bélgica, à Itália e mesmo aos EUA, para perceber melhor como surgiram as ONGs nesses países, como é que elas funcionavam, o que era a vida e as lutas das ONGs e, enfim, para, conhecer mais esse mundo. Foi muito importante para mim, porque descobri programas interessantes que muito me inspiraram, sobretudo no trabalho que viria a fazer mais tarde na Tiniguena. Por outro lado, as parcerias que nós estabelecemos nos primeiros anos com algumas ONGs com grande conhecimento e experiência em ED, em particular a NOVIB8 e o CIDAC9, mas também com a UICN10, viriam a dar bons frutos. Estas organizações apoiaram-nos na construção e implementação progressiva do nosso programa ED.
Por outro lado, a nova conjuntura na Guiné-Bissau apresentava muitas novidades e novos desafios. Foi nessa altura que terminou o exercício de planificação costeira, feito pela UICN em parceria com a Direção Geral das Florestas e Caça e no âmbito do qual foi criado o Gabinete da Planificação Costeira (GPC). Este exercício permitiu identificar as zonas de maior interesse do ponto de vista natural e cultural, com vocação para serem espaços de conservação por excelência, com o objetivo de vir a constituir, mais tarde, uma rede de áreas protegidas. O GPC promoveu a restituição dos resultados dos estudos realizados às instituições nacionais e internacionais vocacionadas para estas matérias e também à sociedade civil emergente, que o GPC pretendia envolver nas questões ambientais. Assim, tivemos acesso a uma informação nova e relevante, que achávamos ser pertinente divulgar ao público em geral – uma atividade que consideramos de ED – de forma a conhecerem melhor as potencialidades, as ameaças e os desafios associados à gestão durável dos recursos naturais e às opções de desenvolvimento intrínsecas.
Além disso e, como já aqui referi, a Guiné-Bissau tinha-se engajado num programa de ajustamento estrutural, que defendia a economia de renda e a produção agrícola rendeira. Para tal, apostava no desenvolvimento de um sector privado capaz de dinamizar a economia nacional e de contribuir para gerar emprego e receitas para o país. Começou então a verificar-se uma grande corrida para a privatização das terras. Foi criado um fundo de investimento para iniciativas privadas, com o apoio do Banco Mundial e do Clube de Paris. Para se concorrer a esses fundos era obrigatório demonstrar ter algum capital próprio de investimento. Nessa época, ter terra era praticamente a única possibilidade de responder aos critérios desse fundo de investimento e foi assim que começou a corrida à privatização das terras. Nós fomos contactados por representantes da Associação Zona Verde, uma associação de base de agricultores, que queriam segurar as suas terras, com vista a protegerem-se contra uma eventual desapropriação de seus espaços de produção agrícola e familiar ancestrais, para fins privados. E é assim que ficou para nós evidente na Tiniguena a necessidade de articulação mais nítida entre os programas de ED e AD. Até aí a delimitação entre as ações de ambos não era tão clara quanto isso, ainda que nós tivéssemos dois programas e duas equipas distintas.
S. – Um alimentava o outro…
A. – Um alimentava o outro, sim. E ambos alimentavam e enriqueciam toda a reflexão da organização e a sua visão programática, porque desenvolvemos cedo uma cultura de programação. Realizávamos, em cada cinco anos, exercícios de planificação estratégica, na sequência dos quais adotávamos planos estratégicos, que serviam de guia da nossa ação, a fim de focalizar a nossa intervenção em zonas e áreas temáticas do nicho da Tiniguena. Estes exercícios eram realizados com as várias equipas, o que permitia alimentar os dois programas, com uma boa dose de inovação. Nós fomos a única organização guineense que, desde a sua criação, assumiu claramente esta dimensão de ED articulada com o apoio a ações de desenvolvimento a nível local (AD). Isso era uma das nossas especificidades. Dizíamos que a Tiniguena era uma organização com duas pernas, em vários sentidos: uma era a ED e a outra, a AD; uma perna estava na ação ao nível local, para apoio a iniciativas de desenvolvimento participativo e durável, e outra ao nível macro, para influência de políticas com impacto sobre a base e sobre os recursos naturais.
S. – A Iniciativa Cantanhez, que levaram a cabo, teve uma influência muito grande no vosso trabalho ligado à questão da ED?
A. – Teve. A Iniciativa Cantanhez foi o primeiro grande desafio que tivemos de trabalho em rede. Foi promovida pela UICN, organização que investiu no desenvolvimento institucional de ONGs nacionais, entre as quais a Tiniguena, com o objetivo de as levar a implicarem-se na defesa do meio-ambiente. A UICN convidou três ONGs nacionais (AD, Alternag e Tiniguena) para se unirem a ela numa coligação forte visando a salvaguarda das últimas bolsas de floresta primária que existiam na Guiné-Bissau. O estudo da planificação costeira já referido tinha constatado a existência em Cantanhez de matas com formações características de floresta primária (virgem). Um tesouro! Era fundamental para nós percebermos porque é que as florestas primárias são tão importantes. À medida que íamos aprendendo íamos comunicando o que estávamos aprendendo. Esta é outra característica que a Tiniguena desenvolveu cedo e mantém até hoje: cada área temática que nós abraçamos desafia-nos na busca de maior conhecimento e formação. Desta feita, não só procurávamos obter informação pertinente, mas também nos aproximávamos de organizações que tinham experiência de trabalho na nova área que queríamos desenvolver.
Assim aconteceu com a Iniciativa Cantanhez, onde procedemos, antes do mais, à identificação das ameças que pesavam sobre as matas de Cantanhez. Uma das principais era a agricultura itinerante, com recurso à queimada. Essa prática tendia a intensificar-se à medida em que iam sendo abandonadas as zonas de lavoura do arroz de mangrove11, por causa das dificuldades ligadas à penetração da água salgada nas bolanhas, devido à destruição ou falta de manutenção dos diques de cintura que protegem as culturas por ocasião das marés-vivas. Procuramos, então, alternativas e trabalhamos no incentivo à cultura do arroz nas zonas de bas-fond12 e de bolanha de água salgada13, investindo no aumento da sua produtividade, de forma a contribuir para a diminuição da pressão sobre as florestas. Ao mesmo tempo que fomos conhecendo a zona e apoiando esta dinâmica de busca de alternativas sustentáveis, achámos que era pertinente informar o público sobre a importância de Cantanhez, sobretudo os mais jovens.
E foi assim que decidimos organizar uma visita de estudos de alunos do secundário da capital, que estiveram em Cantanhez durante uma semana. A visita foi guiada por técnicos e líderes comunitários locais que conheciam bem as florestas, seus recursos e as pessoas que ali viviam. A propósito desta atividade, lembro-me de ter conversado com amigos do CIDAC, que faziam também atividades com alunos do secundário. Aprendi com eles alguns princípios que norteiam o trabalho com os crianças e adolescentes e que nos permitiram compreender a importância de jogos e de outras atividades lúdicas nos processos de aprendizagem: a aprendizagem deve ser um processo de lazer, quando assim acontece o que se aprende fica para o resto da vida. E nós podemos realmente dizer, 25 anos depois, que é verdade. Para além da visita aos locais mais emblemáticos, organizámos um leque variado de atividades lúdicas e de diversão em torno da natureza e da cultura local que tornou a estadia dos alunos da capital em Cantanhez algo memorável! Após seu regresso a Bissau, fizeram restituição da visita nas suas escolas, através de composições, desenhos, poesia, jornal mural. Os conhecimentos que trouxeram de Cantanhez, o seu entusiasmo e vontade de fazer algo para a salvaguarda daquelas florestas e o desenvolvimento das suas populações eram impressionantes, pelo que os levámos a transmitir o que viram e aprenderam nos órgãos de comunicação social, na rádio e na televisão nacionais.
S. – A intenção era eles próprios serem os multiplicadores da atividade?
A. – Exatamente! E houve outros efeitos com que nós não contávamos, como a sensibilização das próprias famílias. As crianças vinham apaixonadas, tinham passado uma semana maravilhosa, que tinha mudado a perceção que tinham do seu país, tinham conhecido outras crianças, outros lugares, outras realidades e então falaram de tudo isto nas suas casas e com os seus amigos.
Desde o início nós visamos crianças e adolescentes (dos 12 aos 15) de escolas privadas, também para fazer educação das elites, porque consideramos que muito das más opções de que sofria e sofre o nosso país, passa pela falta de visão e de compromisso das elites com um futuro de progresso para esta terra e sua gente. Esta questão é ainda hoje alvo de discussão e de opiniões diferentes, mesmo no seio da Tiniguena. Mas considerámos, nessa altura, que era uma aposta muito pertinente porque acreditávamos num modelo de construção da nação baseado na solidariedade entre todas as camadas da sociedade, das elites com as classes populares também. Ainda que nós não estivéssemos promovendo propriamente o suicídio de classes, como preconizava Amílcar Cabral, julgamos que um país como a Guiné-Bissau, para ser viável, precisa de mobilizar todas as suas forças vivas numa direção. E mais ainda, era alta a probabilidade de muitos destes miúdos virem, em adulto, a exercer funções e cargos de responsabilidade, conferindo-lhes algum poder. Poder económico, poder político, poder intelectual. Portanto, havia necessidade desde o princípio de semear nas suas cabeças e nos seus corações, uma maneira diferente de ver e de assumir a nossa Guiné. A divisa das visitas de estudo era: conhecer para amar, amar para proteger!
S. – Este é o motor principal da opção que foi feita desde o início de trabalhar com a camada jovem de maneira específica?
A. – Sim. Nós queríamos distinguir-nos no trabalho que fazíamos com esta faixa etária. O objetivo não era trabalhar com a juventude em global, há organizações juvenis que faziam isso. E a Tiniguena também tinha os jovens como seus principais alvos nas zonas de sua intervenção no âmbito do seu programa AD. O objetivo do ED era fazer um programa que incluísse uma abordagem a este grupo numa perspetiva de educação para o desenvolvimento. Isto foi acontecendo, não foi concebido desde o princípio para ser assim. Foi-se articulando, ajustando, definindo e configurando, até vir a nascer, dois anos depois, a designada “Geração Nova da Tiniguena” (GNT), integrando jovens que participaram nas várias visitas de estudo a sítios de interesse ambiental, cultural e histórico organizadas pela Tiniguena, capitalizando a experiência de Cantanhez. A GNT viria a ser considerada como uma escola de pensamento e de cidadania, no quadro de uma avaliação ao trabalho da Tiniguena, duas décadas depois da sua fundação.
Mas naquela altura estávamos a pensar apenas na visita a Cantanhez. Depois da visita, organizámos uma campanha de sensibilização. Nessa campanha, quinze alunos de uma escola primária de Cantanhez vieram, por sua vez, em visita de estudos a Bissau e ficaram a dormir em casa dos miúdos que tinham visitado as suas tabancas. Vieram também líderes de associações locais e representantes da população para apresentar a problemática das matas de Cantanhez, as dificuldades que tinham ao nível local e para se encontrarem com decisores. Nós tínhamos alguma reputação, tínhamos “chaves” para abrirmos algumas portas e assim, doze representantes da base, como chamávamos naquela altura, tiveram a oportunidade de se reunirem com altos dirigentes e membros do Governo. Foram cinco dias intensos durante os quais as matas de Cantanhez estiveram no centro da agenda nacional, através de um leque diversificado de atividades: debates (ao vivo, na rádio, na televisão…) exposição fotográfica, encontros com altas autoridades do Governo sobre questões afetando a conservação das florestas e a vida das populações locais, exibições culturais e desportivas.
Aquando da preparação e da realização da visita a Cantanhez, tínhamos tirado fotografias com as quais fizemos a exposição fotográfica. Aproveitámos as melhores para produzir um calendário e seis postais sobre Cantanhez, permitindo, desse modo, levar mais longe e a um público mais vasto e diversificado mensagens sobre a beleza, a importância e a urgência de salvar Cantanhez – as últimas florestas primárias da Guiné-Bissau. Essa foi a primeira edição dos calendários e postais da Tiniguena que, desde então, são editados anualmente. E assim delineámos os contornos do nosso programa ED do qual mantemos até hoje algumas atividades importantes. A coleção de calendários e postais é uma delas. O seu lançamento, que é feito geralmente em Dezembro, leva aos guineenses e amigos da Guiné-Bissau boas notícias desta terra e as suas gentes, divulgando imagens e mensagens positivas do seu interior, em jeito de Boas Festas!
Por outro lado, começámos a editar o Matu Malgos (Floresta Sagrada), uma revista temática de educação ambiental. Com o tempo, esta revista passou a integrar um dossier temático e uma banda desenhada, visando dois públicos distintos. Na mesma ocasião, começámos a realizar programas radiofónicos, especialmente destinados à população no interior do país e da periferia urbana, que têm menos facilidade de acesso à informação escrita, porque na sua maioria são analfabetos (cerca de 90% da população era analfabeta). Esses programas pretendiam relembrar as riquezas naturais da GB e promover a sua gestão durável ao nível local e nacional. Montámos ainda dossiers temáticos e pareceu-nos muito pertinente começar com alguns temas quentes, como a questão da propriedade da terra, de que já falámos e que foi, aliás, o primeiro dossier temático da revista Matu Malgos. Esta questão já era debatida no Parlamento, onde estava em preparação a futura “Lei da Terra”. A terra era propriedade do Estado, mas com as mudanças operadas no país, que passou a ser regido pelas leis da economia do mercado e a adotar o multipartidarismo, tais mudanças foram traduzidas na Constituição. Havia, pois, necessidade de regulamentar a questão do direito à terra. Este era um tema fundamental para a missão da Tiniguena e sobre o qual não podíamos deixar de trabalhar com o máximo empenho. Fizemos muito lobby à volta da Lei da Terra, tendo participado numa das comissões preparatórias e na própria elaboração do projeto de lei, com um quadro da direção e coordenador do Programa ED, o Pedro Quadé, encarregue de seguir a fundo este assunto.
Outra questão que desde o início nos preocupou, porque era uma das nossas principais fontes de riqueza, que despertava muita cobiça, foi o setor das pescas. Estava em causa, como ainda hoje está, a pressão excessiva sobre estes recursos. Nós tínhamos compreendido bem que os recursos naturais são renováveis, mas não são infindáveis e que, portanto, há um nível de pressão a partir do qual a sua renovação fica comprometida. Percebemos que era necessário que os decisores, o grande público e a população da base compreendessem que muitos projetos em curso e em carteira não tinham qualquer visão de durabilidade dos recursos.
S. A questão da “galinha dos ovos de ouro”?
A. Sim. Acima de tudo estava em causa a questão de como não matar a galinha dos ovos de ouro.
S. A questão da terra e das pescas, eram então os grandes dossiers da Tiniguena. Havia outros temas que vos preocupassem?
A. Havia, sim. Dedicámo-nos também a montar um dossier sobre a exploração dos recursos florestais, nomeadamente a questão dos cortes extensivos de essências florestais para fins comerciais, que se começava a fazer sentir, dizimando espécies de alto valor económico, entre os quais o cibe, o bissilon, o pau-de-sangue e o pau-conta. O turismo era outra temática que nos interessava. Foram estes os quatro temas a que nos dedicávamos e que influenciavam todo o nosso trabalho: terra, pescas, florestas e turismo. Desenvolvemos uma visão e uma compreensão sobre estas temáticas, que eram traduzidas em tudo o que fazíamos, desde a nossa revista de educação ambiental, passando pelas visitas de estudos, pelo calendário e postais, pelos debates e conferências, pelos programas radiofónicos, etc.
S. Como se relacionava toda esta atividade com a ED?
Nós compreendíamos que a ED incluía não apenas as ações de informação, sensibilização e educação ambiental, como também o lobby e a advocacy que não conhecíamos muito bem e sentíamos necessidade de percebermos melhor. Organizamos, por isso, um atelier sub-regional sobre “A Educação para o Desenvolvimento no processo de Transformação em África”, em parceria com o CIDAC e com o FOVAD. Esse atelier permitiu trazer gente de vários quadrantes, dos PALOP e de alguns países de atuação do FOVAD, como o Senegal, o Burkina-Faso e o Níger. A reflexão que fizemos sobre ED foi muito interessante, com relatos de ensinamentos de experiências diferentes, o que nos permitiu continuar a aprender e a alimentar a reflexão interna. O nosso trabalho em ED era no sentido de construir uma agenda específica para a GB. Não me posso esquecer que a Tiniguena nasceu no ano em que se preparava a grande conferência do Rio 92. Esta coincidência cronológica fez-nos refletir sobre qual era a nossa própria agenda para o ambiente. O programa de ED foi, assim, um programa que se foi projetando e que nos foi ajudando a construir e a influenciar a nossa agenda interna. Este capital de reflexão foi sendo acumulado durante anos, e permitiu o desenvolvimento de uma visão própria, de uma capacidade de proposta, de construção de alternativas endógenas, que conferiu maior reconhecimento e legitimidade à Tiniguena.
S. – É uma inversão completa das novas tendências que temos vindo a registar na cooperação para o desenvolvimento…
A. – Completa. Porque agora os paradigmas também estão mudando no mundo das ONGs, pelo menos daquelas que dependem das ajudas veiculadas pelas grandes agências do desenvolvimento. No início da Tiniguena tivemos o privilégio de ter sido alimentados por várias organizações que acreditaram e apostaram na nossa visão e naquilo que fazíamos. Todos os apoios que a Tiniguena recebeu durante vinte anos foram dados para cimentar uma organização forte, capaz de construir uma agenda própria para este país e de propor soluções adaptadas. Mas hoje em dia, a situação é outra… O que se incentiva são organizações que façam cumprir o que a agenda internacional preconiza.
S. – Se olharmos para aquilo que nos contaste, vemos uma intervenção da Tiniguena assente profundamente na política, no sentido mais nobre do termo, com iniciativas de desenvolvimento junto das populações, dos territórios e com um enfoque na sensibilização e na influência política. Todavia, o que podemos constatar agora é a expectativa de uma intervenção e de iniciativas de desenvolvimento frias, ou técnicas, e já não assentes efetivamente sobre uma leitura política, baseada na complexidade da realidade, a partir da qual as organizações chegam a um nível local e global. Concordas?
A. – Exatamente, a nossa intervenção era eminentemente política, embora se fores falar com as pessoas dizem-te que a Tiniguena é uma organização que sempre fugiu da política, porque entendem política como luta partidária pelo poder. Na verdade, nós sempre tivemos esta perspetiva política, mas apartidária. Tínhamos que ter distanciamento político, da política no sentido restrito. Não por qualquer desconsideração pela política, mas porque consideramos que para poder influenciar um guineense, qualquer que seja a sua tendência ou adesão político-partidária, tínhamos que estar descomprometidos com a luta partidária. A nossa batalha era colocar no centro do debate as questões ambientais e as questões da cidadania, procurando desenvolver uma agenda comum, que pudesse ser partilhada por toda a população da GB. Numa sociedade que já então tendia para a fratura, o distanciamento partidário era essencial à nossa credibilidade. Considero que o que realizamos provou que tínhamos razão.
S – Foram pioneiros?
A – De certo modo sim, mas não estivemos sozinhos. Na verdade, fomos sendo empurrados por alguns e fomos empurrando outros. E isso é bom! É bom quando se é capaz de semear e depois ver que outros atores assumem este papel, outras gerações se empenham e fazem avançar a luta por estas causas. Isso é extremamente reconfortante. O que me parece ter sido fundamental, e gostava de aqui salientar, é que tudo foi possível porque havia um ambiente ao nível internacional que favorecia esta ação autónoma das organizações e dos indivíduos em nome de uma cidadania ativa.
Mas hoje assistimos, perplexos, à erosão de todo este capital. Incluindo nas próprias organizações parceiras que nos tinham ajudado na nossa afirmação como organização pensante, autónoma, com agenda própria, capacidade de influência e de transformação. Tudo isto está em profunda desagregação. Esse capital que alimentou imensamente o carácter inovador que a Tiniguena teve durante vinte e tal anos, a meu ver, está a ser comprometido atualmente apesar das enormes acrobacias que fazemos para salvar o essencial das aquisições. A grande maioria das organizações, muitas das quais foram durante anos nossas parceiras, entraram agora numa lógica do tipo neoliberal, própria daquilo que uma amiga canadiana designa “indústria da ajuda” em que se transformou a cooperação para o desenvolvimento. Os valores outrora partilhados da solidariedade e do compromisso vão cedendo às novas tendências para a competitividade e algum oportunismo na busca dos financiamentos, que leva muitas das nossas ONGs ao distanciamento das reais necessidades e prioridades das camadas mais desfavorecidas da população. Defende-se que o Estado não deve intervir e que é a lógica de mercado que deve conduzir as iniciativas, mesmo das ONGs. Por isso, pede-se a estas organizações que desenvolvam “planos de negócio”, que lhes permita projetar no tempo e no espaço onde e como mobilizar financiamentos para “investir” numa “carteira de projetos” graças aos quais poderão custear seu próprio funcionamento e despesas com pessoal. Pede-se às ONGs para fazerem reformas internas e adotarem modos de gestão do tipo empresarial, mais perto do mundo dos negócios. E, pergunto eu, qual seria o objeto do negócio que permitiria alimentar a tal carteira de projetos? A pobreza? A fome? As calamidades naturais? As guerras e deslocação das populações? As migrações? E, nesta lógica, cada ONG, do Norte ou do Sul, é suposta especializar-se numa área e desenvolver capacidade de ter um grande “volume de negócios” sob o qual subtrair percentagens de gestão que lhe assegure a cobertura dos seus custos institucionais. Enquanto que os apoios institucionais vão-se extinguindo, sob pretexto de busca de sustentabilidade e vão-se fechando as portas das várias fontes de financiamento às ONGs que existiam e que permitiam apoiar processos de longo prazo e organizações pensantes. A concentração de financiamentos é cada vez maior, e à medida que se concentram, a tendência para a imposição de “cima para baixo” é mais forte. Desta tendência resulta que o centro de decisão sobre as orientações e as estratégias vão saindo das direções das nossas organizações para estarem mais na esfera dos que financiam a nossa ação. As organizações pensantes já não são mais valorizadas dando-se primazia àquelas que demonstram ter maior “eficácia da gestão” na implementação de projetos e orientações exógenas.
S. Se, como tu dizias, no início da nossa conversa, a ED se faz no Norte e as ações de desenvolvimento no Sul, de maneira compartimentada, quando vemos que na Tiniguena estas duas linhas estão perfeitamente embutidas uma na outra e, como consequência, há financiamentos para ED no Norte e para ações de desenvolvimento no Sul, poderíamos chegar até ao absurdo de uma organização do Norte que quer trabalhar a ED no Sul, ter que nomear o seu projeto como de Cooperação para o Desenvolvimento para ter acesso aos financiamentos. Então neste contexto efetivamente de inversão dos paradigmas, como é que uma organização como a Tiniguena faz para dar corpo aos seus programas de ED? Como é que vocês fazem para encontrar saídas e portas para dar suporte a esta intervenção?
A. – Tivemos que fazer escolhas dolorosas, de abrir mão de muitas das coisas de que nos orgulhávamos, tivemos que fazer compromissos, mas sabendo que são compromissos para permitir que o grande ideal da Tiniguena se mantenha, para que continue a ser uma organização com mais valias para o processo de transformação da Guiné-Bissau. Mas temos que salvaguardar a nossa cultura do pensamento crítico e tradição de contestação das injustiças sociais e da má-governação da coisa pública. Temos de cultivar uma capacidade endógena de resistência, de resposta e de proposta com base nas nossas capacidades e na nossa agenda. Quando a Tiniguena não tiver mais essas capacidades de pensamento crítico, de contestação e de proposta, a meu ver, mais vale fechar as portas e considerar que a sua missão acabou. Porém, este é um desafio que não pertence a uma pessoa, é um desafio que se coloca ao coletivo que constitui a Tiniguena. Porque a Tiniguena é um capital coletivo, sim! Com muito investimento de dentro, de gente que vê a Tiniguena, e outras organizações similares, como sinal de esperança na Guiné-Bissau; gente no interior do país que acha que podemos ser o interlocutor, a ponte que pode ajudar a aguentar e a encontrar saídas para as populações e para o país; gente do exterior que durante anos apostou e reforçou as capacidades da Tiniguena, para ser uma organização ativa e comprometida com o desenvolvimento participativo e durável na Guiné-Bissau. Este é, para nós, um compromisso fundador inalienável! A partir daqui a organização pode tornar-se mais adaptativa, investir menos na planificação de longo prazo, que neste contexto cria alguma rigidez para a qual não existe suporte, porque não há mais financiamentos institucionais, nem financiamentos a processos. Só a projetos de curta e média duração, orientados para resultados tangíveis e mesuráveis. Este carácter mais adaptativo também corresponde à mudança de gerações. Assim, são estabelecidas as grandes orientações e eixos de intervenção, permitindo à organização adaptar-se em função das necessidades e das oportunidades do seu contexto interno e externo. E o que resulta desta nova estratégia adaptativa? A ED já não existe como programa, está diluída no interior de projetos. Há um grande esforço feito no sentido salvar as joias da coroa, como por exemplo, a GNT, nossa escola de pensamento e de cidadania; como, por exemplo, os calendários e postais, que projetam, todos os anos, a visão que temos da Guiné-Bissau. Até aqui a Tiniguena tem conseguido editar os seus calendários todos os anos, continuando a levar, através dele, imagens e mensagens em torno de sítios e de temáticas que mostram uma Guiné-Bissau bela e rica, onde há organizações e pessoas que, apesar de todas as adversidades, se mantêm de pé e na luta por um futuro mais digno. Graças ao empenho da atual Direção e de todos que trabalham na grande casa que é a Tiniguena e graças ao recurso à imaginação dos mais criativos, tem sido possível, até agora, resistir e inovar, mantendo alguns instrumentos de comunicação que fazem parte da ED e do ADN da Tiniguena e que se revelaram como essenciais ao precioso trabalho de informação, sensibilização e educação de um largo público. Mas muitos de nós temos consciência que o fazemos com cada vez menor margem de manobra e menos capacidade de autonomia.
S. – E como é que avaliam essa capacidade de autonomia?
A. – Há várias perspetivas. A positiva, que corresponde ao grau de autonomia que conseguimos ainda preservar, é por exemplo, quando somos capazes de aproveitar a oportunidade de um projeto sobre a monitorização dos recursos naturais para sua boa governação, projetando a sua execução na lógica de ED. Todo o trabalho que temos vindo a fazer de informação e sensibilização, de denúncia do abate massivo de essências florestais nobres, um capital precioso delapidado pelo negócio da madeira, constituindo um verdadeiro crime ambiental e económico, todo investimento que temos vindo a fazer na informação, sensibilização e denúncia de ameaças que pesam sobre as Lagoas de Cufada, principal reserva de água-doce do país. São ações que demonstram a margem de manobra e o grau de autonomia qua ainda conseguimos manter. Aproveitamos os recursos de projetos que gerimos e que tratam dessas questões para passar as mensagens, despertar o espírito crítico e de contestação do público, a capacidade de proposta de alternativas duráveis. Recorremos, para o efeito, aos instrumentos de comunicação da Tiniguena com maior potencial mobilizador, como o calendário, os programas radiofónicos, debates públicos e conferências de imprensa, marcando, de forma incontestável, a agenda nacional.
A perspetiva negativa é quando sentimos ou assumimos que a nossa capacidade de manobra é mínima, condicionando as nossas opções e/ou influenciando a comunicação que fazemos em torno do nosso trabalho, levando-nos à autocensura. Um indicador bastante expressivo está nos logos que se exige para serem colocados em tudo o que se faz hoje em dia…
S. – Logos e placas…
A. – Sim, enfim… Às vezes chega-se a situações caricatas, como aquela das placas que vi em muitas tabancas que visitei no sul do país, dizendo “Livre da defecação ao ar livre”, para assinalar um projeto de construção de latrinas… Pessoalmente, penso que é preciso lançar um alerta contra a tendência para certos exageros e apelar ao bom senso. Acredito que é possível conter esses exageros, em vez de se ceder a eles como algo inevitável, porque exigido pelos financiadores. Temos responsabilidade nisso. Recordo-me que, quando se negociou o programa de ajustamento estrutural na década de 80/90, houve contestação da parte de alguns quadros e intelectuais mais críticos, mas o programa era considerado intocável, ninguém o podia pôr em causa. Mas foi sendo denunciado, até que o próprio Banco Mundial acabou por reconhecer que essa receita contribuiu para aumentar a pobreza em África. Eu tenho esperança de que o bom senso vai acabar por imperar e todos acabarão por reconhecer que a preocupação da visibilidade deve ter limites para não ser interpretada como demarcação de território em busca de protagonismo e não comprometer os valores da cooperação sã entre organizações, países e povos.
S. – E achas que haveria aqui um papel para a ED?
A – Do meu ponto de vista, nos tempos que correm, acho que seria mesmo primordial voltar a apostar na educação para o desenvolvimento! Uma ED que envolvesse não apenas o público, mas também as nossas organizações promotoras e chegasse aos próprios financiadores, para além dos governantes. Neste momento é fundamental lutar por Soberania! Soberania das organizações. Soberania também das comunidades, que não devem sentir-se marcadas ou ofuscadas por projetos e organizações que são supostos apoiar sua autonomia. A questão dos logos não é importante em si, é-o pelo símbolo que pode encarnar. As tendências que se têm vindo a constatar não favorecem a boa cooperação Norte-Sul nem a indispensável solidariedade entre povos e organizações do Norte e do Sul. Não alimentam um olhar de dignidade na cooperação entre as organizações, os países e os povos. E é aqui que o trabalho de ED pode fazer a diferença. Esta não é uma visão institucional da Tiniguena, é a minha visão pessoal, que espelho nesta entrevista. Uma visão baseada nas experiências vividas e ensinamentos colhidos e que me sinto na responsabilidade de partilhar, enquanto alguém que contribuiu para a criação do movimento das ONGs nacionais na Guiné-Bissau; alguém que empenhou 25 anos da sua vida no processo de fundação, desenvolvimento e a consolidação de uma ONG guineense comprometida com este país e capaz de prestar bons e leais serviços à Guiné-Bissau e ao povo guineense.
S. – Voltando a esta questão fundamental da perspetiva política transformadora na ED, sei que tiveste no teu percurso muita proximidade com as metodologias freireanas, com a visão freireana e com a educação popular. Gostava de saber que influência teve este pensamento na génese da Tiniguena e no desenvolvimento do programa de ED na organização?
A. – Toda a Tiniguena foi muito marcada pela visão de Paulo Freire e também de Amílcar Cabral. É uma síntese dos dois. Amílcar Cabral dizia que a luta pela independência é um ato de cultura e inspirou a minha geração, levando-nos a assumir a Guiné-Bissau como a nossa Terra Prometida. Por isso chamámos à nossa organização Tiniguena, que significa em cassanga “Esta Terra é Nossa!” A Tiniguena foi e é a organização onde várias gerações de guineense lutam pela Guiné, revindicando o direito a esta Terra Prometida por Cabral. O Paulo Freire defendia a tese da codificação e descodificação da própria realidade, sendo o processo da alfabetização, no seu entender, um meio de ler e reescrever o seu meio. O trabalho de olhar para o nosso país e reinventá-lo está muito relacionado com essa metodologia de leitura e da escrita da sua própria realidade. Ou seja, a leitura que quer interpretar a realidade para a reescrever. Reescrever que também é a capacidade de proposta e de busca de alternativas. Eu não diria tanto a influencia freiriana na génese da ED na Tiniguena, mas antes neste casamento entre a ED e a AD, que penso se inscrever na dinâmica codificar/descodificar e de leitura/escrita. Da leitura e da escrita enquanto compreensão dinâmica da nossa realidade, enquanto procura dos nós, dos pontos de estrangulamento e de mobilização das forças a partir das quais podemos desfazer os nós, os obstáculos, podemos transformar; mas também em que sentido as transformar e como agir. O contrário, o mais fácil, é receber uma proposta com as políticas já delineadas.
Um exemplo, estamos agora muito focalizados na questão das políticas públicas. Acho que é interessante e útil, sim. Mas as políticas públicas acabam por ficar no gabinete quando não há governos com continuidade, que é o que acontece na GB. As leis existem, ainda que possam ser melhoradas. Mas quem assegura a sua implementação e a sua fiscalização? Estamos a fazer leis contra a excisão feminina, por exemplo, quando uma determinada representação do Islão está a levar muitos homens muçulmanos a quererem casar apenas com mulheres que tenham sido excisadas. Nesta lógica, as outras não encontrarão marido. Nestes contextos, a mulher que não tem homem não existe, não tem direitos, nem à terra, nem de herança, nem na separação, nem no acesso ao crédito, porque para apresentar uma contrapartida de crédito tem que ter autorização do marido ou do pai ou do irmão. Este é apenas um exemplo da distorção das tendências e paradigmas que estão proliferando num número cada vez mais preocupante de lugares e comunidades, onde a mulher é propriedade do homem e só existe em sua presença e onde o Estado não tem força de impor a lei. Por vezes esquecemos a necessidade de transformação profunda sim, mas feita a partir de uma leitura das novas tendências e especificidades de cada região e de cada comunidade. E da real capacidade de se fazer respeitar a lei. Focalizamo-nos nas mudanças de políticas que, na prática, são mais aparentes que reais, mas que correspondem bem ao que nos é pedido no quadro dos projetos que elaboramos: indicadores visíveis e tangíveis. Uma lei aprovada pela instância competente é um bom indicador. Se ela é cumprida ou não? Se as pessoas percebem sua importância e se engajam no seu cumprimento? Quem vai garantir a sanção dos infratores? Tudo isso num país com larga tradição de impunidade… Isso já é bem mais complexo e não dá para medir com facilidade… Eu não estou a negligenciar a importância das alterações a fazer no quadro das leis. Mas advogo que é preciso não esquecer que são um passo, muito importante, é certo, mas que não chega, é preciso mudar as práticas. Para mudar as práticas há que se tocar nos paradigmas. Qual é a nossa visão de direitos? E de bem-estar? Quais os nossos sonhos para um futuro de progresso para nós mesmos e nossos descendentes?
Numa visão monetarista do desenvolvimento e da ajuda, o que conta é o dinheiro, o capital financeiro. Assim, desenvolvem-se projetos e atividades para as pessoas terem dinheiro. Não é para terem bem-estar, não é para terem capital de segurança face aos imponderáveis do futuro num mundo em mudança fora do seu controlo. Por outro lado, a construção de capital monetário de investimento pedido pelos projetos obriga, muitas vezes, a alienar os teus próprios recursos naturais que são tua segurança, como as terras, acabando por dilapidar teu capital de base. Há ainda a considerar que há mudanças profundas que se estão operando nas sociedades tradicionais, as animistas em particular. Assim, por exemplo, entre os Bijagós, que têm uma sociedade onde a mulher tinha muito poder, mas que o está a perder atualmente, devido precisamente a essa transformação paradigmática do que é a família, do que é o bem-estar. Até nas cerimónias, que são os centros de renovação da identidade cultural, da solidariedade e da coesão social, o dinheiro já manda e já se vê alguma competição. O primado da solidariedade entre o homem, a mulher e a família, que providenciam os produtos da natureza necessários para as cerimónias (vinho e óleo de palma, arroz, feijão, ostra, etc.), foi substituído pelo dinheiro. Pelo dinheiro que pagas para alguém subir à palmeira em teu lugar, para te trazer o vinho de palma, para te cortar o chabéu para te fazer o óleo de palma, pagas a alguém para te trazer o peixe, o lingron, a ostra que precisas para os rituais. És menos soberano e tens menos segurança. E se não possuis uma atividade que se traduza numa remuneração monetária suficiente… Acabas por encorajar a exploração intensiva e com fins comerciais de recursos que estão na base da tua segurança alimentar, cultural e económica.
S. – É a economia de mercado que se imiscui em todas as frestas da estrutura social…
A. – Exatamente. Há novas tendências que levam a mudanças da própria conceção do bem-estar dentro de uma família. Muitas mulheres já não têm uma estratégia colaborativa entre elas, nem com os homens. É competitiva. O mesmo acontece com os homens, e de uma forma ainda mais marcante. O dinheiro delas ou deles é para elas ou para eles, para usarem como entenderem. Portanto, a solidariedade na família é afetada. Qual é o modelo projetado de bem-estar? É o que se mostra para fora, o que se veste, o que se usa para mostrar que se está dentro dos novos padrões de consumo: o telemóvel, o relógio, os sapatos os jeans e as roupas da moda, os cabelos e as unhas postiças, etc. E para estas coisas é preciso ter dinheiro e para ter dinheiro és capaz de vender tudo… Esta é a nova visão paradigmática, baseada em lógicas de acumulação. Lógicas e modelos que levam ao aumento das disparidades sociais e clivagens no seio das comunidades, contribuindo para abrir brechas a negócios obscuros e a tendências radicalistas, algumas destas próximas de esferas de influência jihadista. Porque quando a solidariedade e a coesão social são minadas, é cada um por si. Os que são mais fracos e necessitados, acabam por cair nas redes dos que lhes oferecem proteção e alguma esperança. E assim proliferam seitas e igrejas de todas as confissões, distantes da sua cultura, cada uma proclamando seu deus e suas verdades…
S. – O novo paradigma da Cooperação para o Desenvolvimento, de que falamos nesta conversa, têm responsabilidade nesse abrir de brechas?
A. Eu acho que sim. Há necessidade de confrontar os decisores de dentro e de fora de forma a trazer uma outra visão. Mas penso que há também necessidade de nos questionarmos a nós mesmas, as ONGs de apoio ao desenvolvimento local! Não somos inocentes neste processo, porque somos, mesmo que involuntariamente, um veículo poderoso e muito eficaz de transmissão destas lógicas, destes paradigmas, e mais ainda, sofremos transformações resultantes da dominação destas lógicas. A forma como o desenvolvimento e a cooperação estão a ser pensados e implementados, com mecanismos que traduzem uma visão neoliberal, que favorece, sobretudo, interesses do capital financeiro, está-nos a levar contra o muro. O encorajamento às lógicas mercantilistas e de acumulação que acarretam a alienação progressiva dos espaços e recursos essenciais para a vida, das comunidades locais, em particular, leva ao agravamento da pobreza e ao aumento de disparidades sociais e dos conflitos. Estamos a criar um terreno propício aos radicalismos e ao terrorismo, com a extremização da pobreza, a extremização das desigualdades, a extremização da falta de esperança. As pessoas refugiam-se onde se sentem protegidas.
S. – Muito obrigado Augusta.
[1] Entrevista realizada em Bissau, no dia 7 de dezembro de 2016.
[2] Fundadora da ONGD “Tiniguena – Esta Terra é Nossa”, que dirigiu de 1992 a 2013. Foi Diretora da “SOLIDAMI” (1985-1992) instituto público encarregue da coordenação da ajuda não-governamental e apoio à emergência de ONG’s nacionais. Assistente Social, integrou a equipa de “alfabetização” que era então dirigida pelo Professor Paulo Freire, sendo Diretora do Departamento de Educação de Adultos de 1980 a 1983.
[3] Membro do Conselho Diretivo do CIDAC. Trabalha nesta organização desde 1999, nas áreas da Cooperação para o Desenvolvimento e da Educação para o Desenvolvimento, particularmente dedicando a sua intervenção ao comércio justo, à economia solidária e à soberania alimentar.
[4] ONG fundada em 1992, na Guiné-Bissau. Tem como objetivo contribuir para a apropriação, gestão durável e valorização dos recursos e saberes da biodiversidade pelos atores sociais, a nível local e nacional, visando a soberania alimentar em benefício das gerações presentes e futuras. http://www.tiniguena.org/
[5] Instituto público que se encarregou da coordenação da ajuda não-governamental e apoio à emergência de ONGs nacionais.
[6] Fórum das Organizações Voluntárias Africanas para o Desenvolvimento.
[7] Finais dos anos oitenta e início dos anos 90, do século XX.
[8] OXFAM/Holanda
[9] Hoje Centro de Intervenção para o Desenvolvimento Amílcar Cabral e nessa altura, anos 1990, Centro de Informação e Documentação Amílcar Cabral
[10] União Internacional para a Conservação da Natureza
[11] Ecossistema costeiro de transição entre os ambientes terrestre e marinho, zona húmida característica de regiões tropicais e subtropicais.
[12] Rizicultura de sequeiro.
[13] Na Guiné-Bissau é o vocábulo utilizado para designar arrozal numa rizicultura de irrigação.