Cecília Fonseca1

A Educação para o Desenvolvimento (ED) tem um percurso histórico particular e para o qual contribuíram múltiplas inspirações. Para algumas organizações não-governamentais que atuam no campo da cooperação e, de consequência ou em ligação, também no campo da ED, existe uma procura de inspiração em pedagogias outras, tais como a Educação Popular (Rede Internacional ED e EP, 2003).

A educação popular, embora não unívoca e também ela uma construção multi-vozes, corpos, ideias, assume-se como uma pedagogia, uma pedagogia política, que procura a emancipação das classes populares a partir das suas experiências, práticas, teorias e cosmovisões.

A inspiração na educação popular em ED parece materializar-se, sobretudo, através do uso de metodologias e abordagens construídas nesse campo, na América Latina, como a sistematização de experiências (CIDAC, 2011 e 2012).

I. A Sistematização de Experiências na perspectiva da Educação Popular

“Finalmente, amigas y amigos, resaltar que nuestra propuesta de sistematización de experiencias tiene un sentido siempre de carácter transformador. No sistematizamos para informarnos de lo que sucede y seguir haciendo lo mismo, sino para mejorar, enriquecer, transformar nuestras prácticas.” (Jara, 2001)

A Sistematização de Experiências (SE) é uma abordagem à construção de conhecimento que surgiu na América Latina, a partir do cruzamento de diferentes atores e de propostas de emancipação social face à conjuntura política e económica em que vários países latino-americanos viviam, em especial na década de 1980.

O cruzamento dessas várias propostas criou alguns posicionamentos metodológicos distintos. Alguns posicionamentos mais flexíveis, mais adaptados a diferentes realidades (existem inúmeras publicações sobre SE tanto de organizações da sociedade civil como de entidades estatais de diversos países latino-americanos, versando sobre e aplicando a diferentes contextos, grupos, campos de ação, etc.), outros mais assertivos face à origem e intencionalidade da mesma, fortemente ancorados no espírito da educação popular:

“Se trata de una sistematización asociada a prácticas de educación popular, dispositivo pedagógico que instiga a colectivos humanos que vivencian alguna forma de opresión, a la producción de conocimientos y aprendizajes; que “contribuye para la formación de sujetos, de pensamiento y acción, que hace de sus prácticas oportunidad de estar en el mundo de forma reflexiva y al mismo tiempo, propositiva” (Falkembach, 2006: 51 in Santiago & Falkembach, 2010)

A SE, em Educação Popular, propõe-se como um campo específico e delimitado daquilo que geralmente é denominado como “sistematização”. “Sistematização” e “sistematização de experiências” têm como ponto comum a noção de processo de ordenação, de reconstrução de informação. No entanto, a SE vai além deste aspeto. Ela refere-se ao exercício de reflexão construído e conduzido por um grupo que viveu uma experiência ou prática social específica. Uma reflexão exercida sobre a sua experiência, num esforço de interpretação crítica (explorando os elementos e fatores que intervieram; como se relacionam entre si; porque é que sucederam dessa forma), em diálogo com o contexto, e consequente conceptualização da prática.

“(…) um elevar-se da prática mesma, para que os sujeitos entrem no mundo dos conceitos, das teorias, dos métodos e das bases filosóficas e epistemológicas que os sustentam.” (Falkembach, 1995)

Pode, deste modo, aproximar-se tanto da avaliação como da investigação (Jara, 2006). Embora não tenham a mesma natureza, estes três processos podem complementar-se ou interligar-se, sobretudo, e no caso da avaliação, se esta tiver uma natureza participativa e de investigação social (Santiago & Falkembach, 2010). De notar, porém, que na América Latina, terreno de intervenção de ONGD e fundações europeias e norte-americanas e de organismos de cooperação bilateral, a SE aparece como uma contra-proposta de alguns grupos sociais (alguns dos “grupos-alvo” ou “públicos” de projetos sociais) às exigências de uma racionalidade imposta por estes distintos organismos no quadro da avaliação de projetos.

Os processos de SE, tal como a Educação Popular, assentam na emancipação dos seres, na consciência do poder das suas práticas, a consciência do mundo vivido a partir do quotidiano, do trabalho, do território, da fala, da luta. É um movimento de dentro para fora que permite essa tomada de consciência. Um movimento de reflexão organizada por um grupo a partir das perguntas que quer colocar a si mesmo e de um plano – o plano de sistematização – construído pelo grupo e envolvendo todos os seus membros. A coincidência entre sujeito e objeto do conhecimento evidencia um posicionamento epistemológico crítico em relação à epistemologia científica dominante e coloca a SE enquanto prática (político-pedagógica) de auto-formação.

E enquanto prática participativa e formativa construída por cada grupo que a decide fazer, não oferece receitas nem resultados ou respostas definitivas. Porém, a partir dos múltiplos processos de SE realizados, alguns autores identificaram os passos centrais deste tipo de exercício, de modo a facilitar e promover a sua aplicação (Jara, 2001; 2006). A saber:

  1. Ponto de partida – Condições para sistematizar;
  2. Perguntas iniciais – Identificação do objetivo, objeto e eixo;
  3. Recuperação do processo vivido – Reconstrução histórica; ordenação e classificação da informação;
  4. Reflexão de fundo – Análise; síntese e interpretação crítica;
  5. Ponto de chegada – Formulação de conclusões e comunicação das aprendizagens.

Este percurso consubstancia-se como uma busca de sentido(s) inscrito(s) na realidade histórica, através do método dialético. As experiências são consideradas processos históricos e complexos, que acontecem num contexto económico-social determinado (Jara, 2001). A “Concepção Metodológica Dialéctica”, na SE, concebe a realidade como: a) uma totalidade, cujas partes não podem ser entendidas isoladamente, mas em relação; b) um processo histórico, um produto e uma construção humana; e c) a realidade como em movimento permanente. A mudança é produzida no seio da própria realidade, nas contradições e tensões entre os elementos que a constituem, alterando as relações entre eles. “Contradição” refere-se ao facto que, entre os vários elementos em causa numa dada experiência, existe tensão e luta. Tensão da qual não resulta o desaparecimento de um deles, mas uma nova síntese, que mantém esse contínuo movimento (Barnechea et al., 1998; Jara, 2006).

II. A Sistematização de Experiências no Sinergias ED (2016)

“Acho que ter mais consciência destas interações e das dinâmicas pessoais e institucionais pode-nos ajudar a estruturar melhor o “e agora?” (Participante)

Um exercício de SE permite explicitar a trajetória de um grupo localizando os elementos, características, contradições e desafios da etapa em que se encontra. A realização de uma SE no início da segunda fase do Sinergias ED (entre setembro e dezembro de 2016) procurou tentar elucidar e fortalecer um dos seus aspetos principais – as relações de colaboração – para a continuidade do projeto. O ponto de partida e algumas das perguntas iniciais foram identificados pela coordenação do projeto – um conjunto de entidades também elas envolvidas em trabalhos colaborativos no quadro do projeto – a partir desse desiderato.

As condições para sistematizar são: a identificação dos/as participantes – necessariamente as pessoas que viveram uma mesma experiência – e ter registos dessa experiência. Neste caso concreto, o grupo de SE foi definido como todas as pessoas envolvidas nas “duplas” (IES/OSC) que se formaram nos primeiros dois anos do projeto, independentemente do grau de execução dos trabalhos propostos.  Quanto às perguntas iniciais, os objetivos definidos foram os seguintes:

  • Dar continuidade à primeira fase do projeto, a partir de um exercício inicial de reflexão, análise e auto-aprendizagem sobre a experiência de trabalho colaborativo entre IES e OSC e no projeto como um todo.
  • Fortalecer o potencial desses processos colaborativos na segunda fase do projeto.
  • Transmitir, através da vivência, uma nova abordagem de trabalho e descobrir as ligações entre a SE e a ED.

E o objeto, o trabalho colaborativo das duplas, que aconteceu entre 2014 e 2015. Ou seja, experiências particulares, vividas de forma diferente por cada dupla, mas sob um denominador comum: o trabalho colaborativo.

“(…) começámos por uma revisitação individual do processo, depois em parcerias – alguns – e depois, agora, coletivamente. Foi uma aprendizagem para o grupo este processo.” (Participante)

Em relação à natureza desta SE, tentou-se promover a exploração de diferentes dimensões (das duplas, o trabalho individual, o trabalho com pessoas de outras duplas e a dimensão coletiva) através de diferentes atividades e modalidades de trabalho. Procurou-se que o trabalho relativo às onze experiências específicas fosse realizado pelas duplas e que o trabalho em grupo(s) dissesse respeito a um olhar mais amplo, de análise coletiva de todas as experiências. Permitindo, deste modo, a partilha, a escuta do outro e a negociação e deliberação conjuntas de visões e conclusões.

O encadeamento entre os passos da SE, as atividades realizadas, os materiais utilizados e os resultados das três oficinas está representado na figura 1.

Figura 1 – Percurso da Sistematização de Experiências no Sinergias ED

 

Passo fundamental da SE é a definição do eixo que cada exercício irá seguir. Neste caso, o eixo definido foi: a influência das características institucionais e da natureza das relações interpessoais sobre os processos colaborativos. Tendo como base o eixo foi pedido às/aos participantes que elaborassem uma linha do tempo do trabalho colaborativo da sua dupla.

A linha do tempo foi, assim, o dispositivo acionado para desencadear a reconstrução histórica, através do registo e de uma primeira organização da informação dispersa entre materiais e a memória das/os participantes. De seguida, em grupos, os/as participantes criaram categorias para reordenar a informação e para analisá-la criticamente, a saber:

  • Identificação e gestão das diversidades;
  • Comunicação;
  • Expectativas e motivações;
  • Construção da relação de confiança;
  • Apropriação institucional.

A aplicação das categorias para a interpretação crítica foi a base para que, em grupos, as/os participantes extraíssem as principais conclusões do exercício da SE na forma de resposta direta ao eixo. E daí, as principais aprendizagens (relativamente às experiências singulares e ao conjunto das experiências) e respetivas recomendações dirigidas tanto ao projeto Sinergias ED como, em geral, a colaborações futuras entre OSC e IES.

III.  Da Sistematização de Experiências à Reflexão Coletiva

“(…) ver o todo e, deste modo, compreender melhor a minha parte.” (Participante)

Os sentidos e sentimentos dos e das participantes na SE são, para nós, fundamentais para entendermos os caminhos a seguir. As suas expectativas iniciais diziam respeito tanto à continuidade do projeto quanto à possibilidade de refletir, aprender e partilhar. E, em menor medida, conhecer a abordagem da SE. Esta curiosidade, no entanto, foi bastante sublinhada no momento de relembrar como tinha sido o sentimento de partida.

Os entendimentos iniciais sobre “sistematização” apontavam para a ordenação objetiva de informação, para a aprendizagem e processo, sendo a análise e a reflexão crítica menos mencionadas. Mas a identificação dessa dimensão reflexiva foi-se acentuando ao longo das sessões, e as várias dimensões da SE, a perceção do que ela implica e permite, foram sendo gradualmente apropriadas pelas/os participantes, nomeadamente: o reviver emoções com algum distanciamento; o ir além do superficial, da parte “mais epidérmica” do vivido; e uma maior compreensão sobre os processos. O conhecimento daí derivado sedimenta-se, ganha uma nova dimensão e desagua em novos conhecimentos e instrumentos para enfrentar desafios futuros. Aspecto que também reconhecem no projeto Sinergias ED: a procura de novas gramáticas, novas agendas e de novas formas de produzir conhecimento.

Viver e experimentar um percurso de SE permitiu-lhes perceber não só como funciona, mas também adquirir algumas ferramentas práticas e compreender o seu grau de exigência em termos de tempo, envolvimento e de trabalho contínuo. Uma exigência porventura exacerbada pela natureza subjetiva e abstrata do objeto e eixo desta sistematização.

Persistiu, porém, um sentimento de vivência parcial. Para as duplas completas, a SE permitiu ouvir e refletir em conjunto. Para as duplas incompletas, a ausência, por um lado, obstou a uma maior partilha e profundidade nas reflexões e aprendizagens e, por outro, colocou algumas questões de ética e de parcialidade.

Um dos principais desafios encontrados na facilitação deste processo foi justamente a adaptação da metodologia a um grupo variável de participantes e o facto de se tratar de uma sistematização não de uma experiência conjunta, mas de tantas quantas as duplas existentes. Facto que agudizou a sensação de frustração, de unilateralidade, na ausência de “metades” das duplas. As onze duplas iniciais estiveram representadas na primeira oficina. Número que diminuiu para oito na segunda oficina e sete na última. E apenas quatro duplas trabalharam em dupla.

A disponibilidade para participar nas sessões (ou até ao final de cada sessão) e entre sessões foi diminuindo, levando, por exemplo, a que o eixo e as categorias de análise tenham sido deliberados por um número reduzido de participantes. Porém, apesar de ter sido um grupo variável, houve um núcleo que se manteve constante.

A variabilidade, diminuição ou até a não participação de todas as pessoas “convocadas” poderá ter tido origem no modelo escolhido: três sessões separadas. Optou-se por três encontros separados, porque se acreditou que as/os participantes não teriam possibilidade de se manterem dois ou mais dias nesta atividade; e para deixar em aberto a possibilidade de trabalharem “em casa”. Porém, foi salientado pelos/as participantes que o intervalo entre oficinas poderá ter provocado falta de coesão no grupo, pouca ligação e ritmo ao longo do percurso e induzido a variações na disponibilidade das/os participantes. Outra possível explicação poderá ser o grau de apropriação do processo como um todo. Idealmente, a SE – entendida como processo de auto-formação – é planeada e implementada pelo grupo de pessoas que a decide realizar. Esse grupo elabora um plano, no qual decide o que e como fazer, quem deverá ser envolvido, quem é responsável por cada atividade. Porém, dependendo dos processos, pode haver uma equipa de facilitação, envolvida ou não na experiência a sistematizar. Esta sistematização de experiências foi pensada e implementada por uma pessoa externa à experiência em questão e por duas pessoas de uma das organizações envolvidas no projeto.

Esta não apropriação da SE, enquanto abordagem e dos resultados deste percurso em particular, poderá também não se ter alargado às entidades que os/as participantes integram. Algumas pessoas referiram que iriam tentar promover essa apropriação. Nesse sentido, foi apontada a necessidade de manter registos contínuos e de aplicar algumas das técnicas utilizadas – tanto nas entidades como no âmbito da continuação do Sinergias ED.

A elaboração de registos e a reproposição de uma nova SE foram preocupações contínuas ao longo da segunda edição do projeto. Esta nova fase contou com algumas alterações de formato, algumas resultantes das aprendizagens da SE, como o número de atores OSC-IES: passou-se de duplas para grupos de número variável.

Um primeiro passo para pensar a continuidade do percurso iniciado com a SE foi criar instrumentos de registo, decidir sobre a manutenção ou não do eixo e criar processos coletivos que conduzissem o novo grupo (embora com elementos comuns ao anterior) a um maior envolvimento na SE. Para tal, em cada encontro de trabalho – onde todos/as ou a maioria dos/as participantes se juntam – foi sendo injetada esta possibilidade, invocando a experiência de 2016.

Uma das ideias iniciais seria promover breves sessões intercalares de sistematização combinadas com o registo contínuo das experiências. Isto, de modo a preparar de forma mais sólida, mais consistente e consciente o momento final e percecionar de modo mais claro a SE como uma prática contínua, mais do que um momento excecional. Tal não foi possível. Pensou-se, então, partir da forma como cada grupo colaborativo OSC-IES já comunicava e registava o seu funcionamento, na preparação e execução das ações conjuntas. Adicionalmente, foi proposto – e discutida a exequibilidade – de um modelo de registo de momentos significativos e respetivas aprendizagens, a preencher durante o trabalho colaborativo (e não necessariamente apenas no final deste). Um documento com uma dupla valência: representar uma memória, a ser publicada na revista Sinergias, e ser uma base de trabalho para a SE. Se para algumas pessoas ter um modelo específico seria realizável, para outras, representaria mais uma tarefa a cumprir.

O formato e conteúdos do segundo exercício de SE foram também discutidos coletivamente. A proposta em termos de tempo seria de dois dias, algo que suscitou dúvidas por parte de alguns/mas participantes. Foram sugeridas diferentes modalidades e combinações, como ter um dia de oficina e atividades anteriores realizadas à distância, formato residencial, entre outros. Foi proposto às/aos participantes serem parte ativa desta preparação, mas sem grande adesão.

Ao longo dos encontros de trabalho, e pela própria experiência nos grupos colaborativos, fomos percebendo vários obstáculos ao percurso idealizado para uma segunda SE. Um, ainda que tenham sempre existido bons contributos, o envolvimento na preparação deste processo não se materializou. Algo que podemos entender face ao número de atividades que o projeto Sinergias ED já implica para os/as participantes e à relevância dada ou ao lugar que o projeto ocupa nas diferentes entidades que nele participam. Dois, a disponibilidade dos/as mesmos/as para estarem em mais um momento conjunto, sobretudo numa altura de pico de atividades do projeto. Três, a percepção que o registo não foi uma tarefa fácil para grande parte dos grupos. O registo foi sendo pedido pela equipa coordenadora principalmente para a revista Sinergias e fomos percebendo que não estavam finalizados. Por último, fomos refletindo sobre a coerência da proposta, enraizada na educação popular, dentro do projeto. Reflexão a que voltaremos no final deste texto.

Reformulámos, deste modo, a proposta como uma reflexão coletiva – um exercício mais restrito do que a Sistematização de Experiências, mas que mantém o espírito de reflexão a partir do vivido pelas pessoas envolvidas. Esta modalidade foi apresentada e aberta a sugestões dos/as participantes no último encontro de trabalho do projeto, nomeadamente em relação aos pontos que gostariam de discutir.

IV. Reflexão Coletiva (2018)

O encontro para a Reflexão Coletiva aconteceu em maio de 2018 e contou com quinze dos e das participantes do projeto. Nele, visou-se extrair aprendizagens, tendo como pano de fundo o eixo da anterior SE – a influência das caraterísticas institucionais e da natureza das relações interpessoais sobre os processos coletivos; refletir sobre os processos colaborativos entre organizações da sociedade civil e instituições de ensino superior; e pensar formas e conteúdos a comunicar para fora do projeto, em particular no encontro final do projeto, em junho de 2018.

A reflexão seguiu um caminho de exploração dos significados pessoais e coletivos (em duplas e em grupos), primeiro sobre colaboração e conhecimento em geral, e, num segundo momento, olhando para as colaborações no âmbito do Sinergias. Este segundo momento teve como perguntas orientadoras:

  • o que motiva/ou a colaboração;
  • o que mudou na percepção do(s) outro(s);
  • o que alterou nas práticas individuais;
  • o que ficou da colaboração;
  • o que é que não foi possível ultrapassar.

Da discussão em grupos e, posteriormente, em plenário, surgiram questionamentos importantes como o que possibilita e quais os elementos constitutivos da colaboração. Outro questionamento relevante foi o explorar o sentido instrumental e/ou finalístico destas colaborações: a colaboração é um processo que tem um fim específico ou é um produto, um fim em si mesmo? Nesta linha, discutiu-se a relação entre a colaboração e a Educação para o Desenvolvimento: a ED é um objeto da colaboração, um elemento extrínseco, ou a ED é a base do processo de colaboração? Isto é, a colaboração é um elemento constitutivo da ED?

Em grupos, os/as participantes definiram também quais os conteúdos mais relevantes a serem comunicados e possíveis formatos.

Embora intenso, o encontro foi, segundo os/as participantes, profícuo em termos de aprofundamento, envolvimento e motivação, sentindo-se livres e predispostos para a partilha. Alguns ressalvaram, no entanto, que não foi muito conclusivo. Acrescentamos que os resultados surgidos deste exercício poderão ser menos incisivos e claros do que os saídos da SE, mas apontam questionamentos profundos que nos parece fundamental serem (mais) discutidos.

Ainda que tenha existido um momento focado na comunicação e, em especial, na comunicação do projeto e desta reflexão no encontro internacional, tal como na SE esta tarefa ficou novamente a cargo da equipa do projeto.

IV. Sobre a aplicação de abordagens da Educação Popular a processos colaborativos num projeto de Educação para o Desenvolvimento

“Entre a vontade de sistematizar uma prática e a criação de condições para tal, passam rios caudalosos. Além de questões conjunturais como as que enfrentamos, impedindo o desenvolvimento de muitos trabalhos (…), entram em cena resistências pessoais, institucionais, o exigente cotidiano do educador popular e a dificuldade de conseguirmos recursos financeiros com entradas regulares.

Para enfrentarmos todos esses entraves, temos aliado a discussão política sobre o potencial estratégico da sistematização a questões relacionadas às subjetividades dos educadores e educandos e às culturas institucionais. Tudo isso sem perder de vista o contexto e as armadilhas que nos apresenta a política neoliberal.

Ainda recusamos a hipótese de trabalhar a sistematização num clima paradigmático onde o caos epistemológico possa imperar.”

(Falkembach, 1995).

O caminho entre a proposta de uma Sistematização de Experiências até à Reflexão Coletiva, no quadro do Sinergias ED, é um caminho de dúvidas, de questionamentos, por vezes individuais, por vezes na equipa do CIDAC, por vezes na equipa do projeto. A visão sobre SE, sobre educação popular e sobre educação para o desenvolvimento é a um tempo pessoal-subjetiva e institucional-coletiva. As seguintes reflexões são fruto desse duplo (ou triplo) tecer.

Um ponto de partida essencial nesta reflexão é que o que se propôs fazer, no percurso de possíveis aproximações entre ED e educação popular, foi uma SE imbuída desse espírito e não uma mera metodologia ou um tecnicismo inovador, “diferenciado”, como as modas o exigem. A SE é, a nosso ver, uma abordagem à construção de conhecimento no quadro de um projeto político de transformação de um modelo de sociedade historicamente construído, oriundo do mercantilismo e nomeável como capitalismo avançado. Esse modelo é construído sob a exploração de grupos sociais, entre e dentro de territórios concretos. A educação popular é uma forma de resistência às múltiplas roupagens dessa exploração e opressão, a partir da noção que o conhecimento jaz dentro de cada pessoa, das pessoas em coletivo e da prática da quotidianidade. A consciência sobre esse conhecimento por parte dos grupos oprimidos é uma das suas formas de luta face às hegemonias impostas, colonizadoras, ou como diria Vandana Shiva às “monoculturas da mente”.

A Sistematização de Experiências traz a possibilidade de teorização sobre a prática – a consciência feita teoria – a partir dos/as sujeitos/as, prerrogativa que, na atualidade, é concedida e legitimada ao campo da “ciência”. Como noutros tempos culturais e materiais, pode ser prerrogativa do chefe de um clã, de um xamã ou de qualquer outra figura de autoridade.

Após dois anos do exercício de SE, percebemos apropriações dos conceitos (das teorizações) surgidos ou construídos nesse processo, como “híbridos” ou “sentido coletivo de ação”. E as aprendizagens daí resultantes foram relevantes na reformulação de alguns aspectos do projeto. Porém, como acima referido, há uma difícil apropriação do processo em si – planeá-lo, implementá-lo, comunicá-lo – por parte dos e das participantes que não estão na equipa de coordenação do projeto. É-nos difícil perceber igualmente se há e como se dá (ou se deu) a apropriação da SE nas entidades participantes como um todo. Uma reflexão que nos parece pertinente, tal como perceber como foi o preenchimento do registo pelos diferentes grupos que o realizaram e o quanto contribuiu para a reflexão dos mesmos.

Este não envolvimento poderá ter diferentes causas, como já mencionado. Numa auto-crítica, pensamos que existiu um grau considerável de intervenção (e controle) por parte da equipa, por exemplo na delimitação inicial do objeto ou na definição de uma dupla finalidade para o modelo de registo. Algo inevitável no quadro de um projeto que tem atividades a ser cumpridas e face à não participação ativa dos restantes elementos que dão corpo ao projeto. Por outro lado, este pode ser um processo “natural” de exposição e experimentação que poderá, ou não, ter frutos e distintas apropriações noutros contextos e temporalidades.

A opção por um dia de reflexão em conjunto poderá ter surtido menos resultados concretos, menos aprendizagens objetivadas e sistematizadas, mas parece ter sido igualmente frutífero no que diz respeito ao pensar o foco do projeto: a colaboração. Pareceu-nos também que foi menos notória a ausência de alguns elementos dos grupos, seja porque os grupos têm agora mais atores envolvidos – logo pesa menos a ausência de uma pessoa – seja porque a reflexão não partiu essencialmente dessa dimensão.

Esta opção parece-nos ser mais coerente – mas quiçá menos arriscada e (demasiado) cauta se pensarmos nos tempos dos processos – em relação aos valores e posicionamentos que acima referimos. A nosso ver, existe uma tensão latente e essencial entre uma abordagem de educação popular e o enquadramento na ED, já identificada: a ED e Educação Popular são complementares, mas apresentam diferenças significativas, sobretudo, no que se refere aos grupos sociais a que se dirigem (Rede Internacional ED e EP, 2003). Essa orientação faz-nos questionar, tal como uma participante na reflexão coletiva, de que transformação social estamos a falar? Estamos a percorrer um caminho para chegar onde e com quem?

“Convivemos, nos processos de sistematização, com um ‘trio amoroso’ – objeto/real, objeto/percebido e objeto construído – que nos desinstala a todos, integrantes das práticas e assessores. A necessidade de conhecer, acentuada pelo caráter social desse objeto/sujeito/real, exige rupturas epistemológicas em dois sentidos (Santos, 1989) para transformá-lo em objeto de conhecimento, objeto/construído. Ruptura com o senso comum, que tenderá a agarrar-se ao objeto percebido, e com o conhecimento da ciência, que tenderá a apropriar-se do objeto/construído, se não estivermos decididos às rupturas e reflexivamente vigilantes para torná–las possíveis.Essa nova atitude frente ao conhecimento implica consequências muito amplas, especialmente, porque nos encaminha, também, a romper com os paradigmas que, até então, nos permitiam manter, com uma certa segurança, o nosso discurso e a nossa prática.” (Falkembach, 1995)

Talvez isso ainda não seja visível e seja, uma vez mais, o tempo dos processos. Mas é um questionamento fundamental porque, mesmo admitindo que não estamos a sistematizar para fortalecer os “ausentes”, conforme nos fala Boaventura Sousa Santos, um processo de SE poderia desembocar em deslocamentos, em rupturas do eu e do coletivo relativamente ao “eu institucional” tão presente no eixo da SE. Nesse (contra-)sentido é particularmente sintomática a permanência de um auto-posicionamento dicotómico e ontológico dos/as participantes em dois mundos: o mundo “do terreno” e o “da teorização”.

Um dos pontos de convergência entre ED e Educação Popular seria precisamente a possibilidade e abertura para a desconstrução sistémica, ontológica e epistemológica, algo que nos parece essencial perante alguns dos valores e desideratos apontados pelos/as sujeitos/as que constroem a ED. A ontologia, o situar-se no âmago do questionamento, a reflexividade de si. Perguntar(-se): quem age? Quem investiga? Não como referido por um/a participante na SE, na junção entre sujeito e objeto, mas num sujeito que é simultaneamente objeto e sujeito em transformação.

Hablamos de una dinámica de producción colectiva de conocimientos, situada sobre prácticas sociales, que ocurre mediante el diálogo entre vivencias, reflexión y teoría. Promueve aprendizajes desde esas prácticas sociales, que ancla sujetos y les lleva a la discusión sobre esos aprendizajes e, incluso, sobre su condición y forma-sujeto, o sea, sobre su “ser-en sí” (relación consigo mismo), “ser-junto” (relación con los colectivos a que pertenece) y “ser-relación” (con el ambiente natural e social) en un tiempo y en un lugar. (Falkembach, 2006: 38, in Santiago & Falkembach, 2010)

Outras pedagogias, outros sujeitos-objetos, outras metodologias significam, na nossa opinião, conseguir, nos interstícios das estruturas, dos condicionamentos que nos definem e nos aprisionam, ir além das junções e dos diálogos entre coisas (sujeitos, conhecimentos…) para se transformar numa outra coisa.

Um primeiro passo nesse questionamento, baseado na ordenação da experiência vivida, é a capacidade de identificar as contradições (em) que cada pessoa vive nas múltiplas dimensões da sua vida. Este parece-nos ser um dos desafios inalcançados nestes dois processos, talvez pela dificuldade em lidar com o conflito, com a clivagem, com a reflexividade que tanta incerteza nos traz. Talvez por se continuar a encarar cada processo novo como uma técnica, um método, tão ao gosto do racionalismo científico em que somos socializados, e não como uma forma de estar e de ver o mundo. Em última análise, poderá derivar da não percepção de cada processo social como um processo eminentemente político-pedagógico (Leão, 2016) (ultrapassando as divisões estanques que a modernidade nos trouxe: a “educação”; a “política”, a “cultura”). Nesse sentido, seria interessante começar a perceber em que medida a ED representa ou assenta numa pedagogia própria.

Estas reflexões poderão ser demasiado ambiciosas e extemporâneas nesse caminho que se faz num lento caminhando. Mas elas alimentam-se da participação e da reflexão (recentes) sobre outros momentos deste e de outros projetos em ED. Embora percepcionemos a SE e a reflexão coletiva como momentos significativos e que proporcionaram um olhar profundo sobre as experiências individuais e coletivas, há um elemento de reflexividade mais lato a que não se chegou (ainda) e que concerne, como atrás referido, a ligação entre as experiências e os contextos político, económico, cultural, ecológico, social em que acontecem. Isto poderá não surgir se não for estimulado, mas parece-nos que atores que estão no campo da ED e que procuram a transformação social têm como desafio maior questionar os micro-sistemas em que estão/estamos contidos. A reflexividade estende-se, assim, ao questionar os lugares de privilégio dentro e fora das relações de colaboração. Questionar o que representam e reproduzem as OSC, nomeadamente as ONGD, no sistema económico, político, cultural global; o que representam e reproduzem as IES, no sistema económico, político, cultural global? Um caminho de sistematização de experiências que não esteja numa relação dialética com o contexto não surtirá os efeitos de transformação que tanto almejamos.

“Contudo há pontos que unem a maioria deles: a inconformidade com a alienação estrutural decorrente do modo de organização da produção capitalista e de suas inserções nesta; a consequente necessidade de fazer de sua prática elemento de rompimento com essa alienação estrutural; o desejo de realizar leituras teóricas das práticas para identificar as contradições, saber do alcance das mesmas e buscar maior coerência e eficiência no seu agir intencionado; e a necessidade de, no bojo dessas objetivações, fazer a discussão e contribuir para a construção de um projeto de sociedade que possibilite essas ultrapassagens.”(Falkembach, 1995)

 


[1] Membro da equipa do CIDAC – Centro de Intervenção para o Desenvolvimento Amílcar Cabral.

Referências bibliográficas:

  • Barnechea, María Mercedes; Gonzalez, Estela; Morgan, María de la Luz. La producción de conocimientos en sistematización. Taller permanente de sistematización. Apresentação no Seminario Latinoamericano de Sistematización de Prácticas de Animación Sociocultural y Participación Ciudadana en América Latina. Medellín, 1998.
  • CIDAC; Cabral, Adriana; Batista, Carla; Lima, Denise; Melo, Helena et. al. Histórias numa história: caminhos para uma educação transformadora. CIDAC, 2011.
  • CIDAC; Holliday, Oscar. Sistematização de Experiências: aprender a dialogar com os processos. CIDAC, 2012.
  • Falkembach, Elza. Sistematização… juntando cacos, construindo vitrais. Ijui: Ed. Da UNIJUI (Cadernos UNIJUI, 23), 1995
  • Jara, Oscar. Dilemas y desafios de la Sistematización de Experiencias. Apresentação no Seminario ASOCAM – Agricultura Sostenible Campesina de Montaña. Cochabamba, 2001.
  • Jara, Oscar. Para sistematizar experiências. Ministério do Ambiente. Brasília, 2006.
  • Leão, Carolina. A Pedagogia da Autogestão como Propulsora do Poder Popular. Comunicação. V Seminário Internacional de Práticas Educativas (V SECAMPO), 2016.
  • Rede Internacional de educação para o desenvolvimento e educação popular. Mosaico educativo: uma saída do labirinto. Polygone, 2003.
  • Santiago, Anna Rosa; Falkembach, Elza. Sistematización y evaluación:dispositivos pedagógicos de la educación popular. Tend. Retos n.º 15: 109-120, out. 2010.

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