Tânia Ramalho 1,2

Por ocasião da chamada de propostas para apresentação na conferência em maio de 2019 da ANGEL (Academic Network on Global Education and Learning-Rede Acadêmica de Educação e Aprendizagem Global), baseada no Centro de Educação sobre o Desenvolvimento do Instituto de Educação da Universidade Central de Londres, imediatamente pensei  em rever e esclarecer a contribuição de Paulo Freire aos fundamentos da educação para a cidadania global e planetária.  Recentemente, quando examinava textos da UNESCO sobre o assunto, para mim as idéias do conceituado educador progressista brasileiro se evidenciavam nas páginas, principalmente ao que se referia à pedagogia. O nome de Freire não constava das bibliografias, mas isto não era fato significativo. O importante era um senso freireano obviamente revelado na  pedagogia proposta para os educadores das nações-membros.

A UNESCO sugere que a educação para a cidadania global e planetária seja baseada fundamentalmente na comunicação entre professores e alunos, necessitando um nivelamento maior, apropriado, entre os poderes dos dois grupos. A pedagogia inclui identificação e questionamento de problemas comuns a serem interrogados e pesquisados conjuntamente; codificação dos conhecimentos alcançados através dos trabalhos; e ações condizentes com a natureza do projeto com o fim de resolver, em todo ou em parte, o problema em pauta. Em outras palavras, a UNESCO  demonstra a necessidade de uma pedagogia crítica, transformadora e ativa, aos níveis cognitivo, afetivo e de capacitação, para a educação para a cidadania global e planetária.

Quando iniciei a proposta para a conferência, veio-me a inspiração de escrever em forma de carta, já que o gênero epistolar era o preferido de Freire. Já havia escrito uma carta antes, de mim mesma para o mestre, sobre seu texto Pedagogia da Esperança. Desta vez, me perguntei:  Como Freire mesmo se dirigiria aos membros desta rede de pesquisadores e professores, caso ainda estivesse entre nós? Desta pergunta surgiu esta carta escrita “por Freire”, isto é, imaginada do ponto de vista da pessoa dele e de acordo com seus ensinamentos, exclusiva para os conferencistas da ANGEL e, agora, para seus leitores. Espero que a carta faça justiça à pessoa e ao pensamento de Paulo Freire.

* * *

Prezados leitores,

Já faz quase um quarto de século desde que parti, mais ou menos inesperadamente, devido a problemas de coração. Se estivesse vivo hoje, sem dúvida, escreveria também sobre educação para a cidadania global e planetária. Este não foi o foco do meu trabalho, criado durante a segunda metade do século XX, principalmente durante os anos 60 e 70. Foram tempos revolucionários que precederam os tempos atuais que podem ser chamados de antirrevolucionários, tudo parte dos infames passos para atrás quando demos só um à frente na sociedade.

Acima de tudo, a esperança sempre me conduziu. A esperança, um dos conceitos centrais na Pedagogia do Oprimido, pode ser encontrada em toda minha obra. Cheguei mesmo a nomear uma pedagogia como “da esperança” quando revi minhas memórias sobre a escrita da Pedagogia do Oprimido. Este meu senso de esperança veio da fé, literalmente. Como minha mãe, eu era profundamente religioso, embora há tempos não fosse mais à missa como ela, mulher de seu tempo e lugar. Fui religioso no sentido do termo latino componente da palavra religio, advindo de religar em uma das interpretações, mesmo sendo esta etimologia disputada.  Religião expressa uma ligação contínua ao espírito do mundo, do cosmos.

Eu era muito ligado. Primeiro, à minha família. (Quando exilado, tive que partir sem minha esposa Elza e nossos filhos, que só puderam se juntar a mim no Chile muitos meses depois; sofri muito.) Era ligado às minhas comunidades, aos colegas de trabalho, alunos, aos amigos e vizinhos. Fazia também parte do Nordeste, nossa região, do estado onde nasci e me criei, Pernambuco, e de sua capital, Recife, cidade bonita mas muitas vezes trágica por ser uma das mais violentas. Nestes meio-ambientes era conjugado à natureza e suas dádivas. E, sempre ligado ao Brasil, sofri tremendamente com a separação forçada da pátria.

Apesar das separações dolorosas, nunca perdi a esperança, pois ela está ligada ao amor. Eu era esperançoso simplesmente porque amava profundamente. Sim, posso ser chamado de amoroso, alguém que ama muito, que cuida dos seus amados, que é fiel e romântico. Essa sensação de romancear o mundo é muito clara na minha escrita. Basta perguntar à minha segunda esposa, Nita, a qual conheci menina e muito mais tarde viúva como eu. Juntos sempre viajamos a trabalho. Assim, me tornei o que a Tania Ramalho chama de cidadão global “acidental”, pois, sem ser nada previsto antes, desde o exílio fui chamado aos quatro ou cinco cantos do mundo. Por todo lado atendi aos pedidos de minha presença, minhas observações e palavras.

As pessoas me descreviam como um homem gentil e generoso, com capacidade de ouvir respeitosamente. Porque acreditava que a única vocação para a humanidade é nossa humanização, eu tinha esperança, uma espera com antecipação, mesmo vendo e sabendo da realidade concreta da desumanização resultante de ordens injustas. Mas estava claro, a desumanização não é nossa vocação real. Humanização é a única chamada autêntica da humanidade.

A educação para a cidadania global e planetária enfatiza esses conceitos: amor e esperança para a humanidade. Mesmo quando não aparecem em textos sobre estes assuntos como os da UNESCO, amor e esperança estão claramente subentendidos – fazem parte das entrelinhas. Se não fosse assim, porque a preocupação com dezessete metas de sustentabilidade para o mundo, de acordo com as Nações Unidas? Porque tentar melhorar a vida de mulheres e crianças, negros e indígenas, e buscar reparação para todos os oprimidos, inclusive para o meio ambiente do planeta, para não falar do clima?

Além de amor e esperança, um terceiro conceito compõe uma trilogia básica à educação para a cidadania global e planetária: a beleza. Nos meus textos, costumava chamar as situações de opressão, principalmente as que resultam de políticas neoliberais, de muito feias. Para o oposto usava a palavra boniteza, qualidade de ser bonita, de beleza. Mudanças sociais desejáveis – justas – constroem boniteza no mundo, junto com rios e mares limpos, ares respiráveis, solos saudáveis e florestas sustentáveis. Além do valor instrumental, estas necessidades iluminam a dimensão estética da inventividade humana e da qualidade de vida igualitária desejável para todos.

Sob o peso da modernidade, os sentimentos e as emoções foram quase expurgados do empreendimento humano e requerido pela investigação chamada científica.  Hoje, na pós-modernidade, especialmente quando começamos a entender mais a fundo as forças do colonialismo de todo tipo, é hora de proferir as palavras amor, esperança e beleza em relação às capacidades – aos valores, as atitudes e os comportamentos – do tipo de cidadão global e planetário que desejamos educar e em nossas ações em geral.

Mas vou ser mais concreto. Quando escrevi sobre a dinâmica do poder na relação entre opressor e oprimido na Pedagogia do Oprimido, eu conhecia pessoalmente opressores de carne e osso, os proprietários locais de plantações de cana-de-açúcar, comumente conhecidos no nordeste por seus postos militares como “coronéis” ou de educação como “doutores”.  Tinham poder às vezes de vida e morte sobre as pessoas que trabalhavam em suas grandes propriedades ou mesmo sobre outros residentes das cercanias.

Quando eu era jovem, as condições de vida destes trabalhadores nos campos e engenhos de açúcar não eram muito melhores do que sob a escravidão. (Cerca de 50 anos antes a escravidão legal fora abolida, depois de muita atividade política, pela assinatura de uma mulher, a regente Princesa Isabel, da chamada Lei Áurea, no ano tardio de 1888.) De certa forma, posso dizer que as condições dos trabalhadores chamados livres eram ainda bem piores, já que os patrões não tinham mais obrigação de garantir moradia e comida, por mais básicas que fossem. Com salários ínfimos, de fome, estes homens e mulheres contavam com pouco para sobreviver com suas famílias na miséria.

Hoje em dia, as opressões continuam reais e verdadeiros opressores existem mesmo em carne e osso.  Estes podem ser indivíduos poderosos para quem podemos apontar um nome reconhecido, ou “pessoas” jurídicas com nomes e direitos corporativos: ExxonMobil, ATT, Bayer-Monsanto, Eli Lilly. Existem sistemas opressivos difíceis de se identificar e esclarecer, exceto quando percebemos como um determinado grupo oprimido é excluído e/ou prejudicado por sistemas complexos envolvendo políticas econômicas, sociais e culturais. Exemplo aqui é a situação dos povos indígenas em todo o mundo, lutando para manter suas suas culturas e formas de vida, e mesmo suas existências, em frente a tanta violência sistêmica. Infelizmente ainda, os conceitos oprimido e opressor são especialmente importantes para a educação para cidadania global e planetária porque assistimos ao restabelecimento e continuação do colonialismo e do imperialismo, mantidos por um ou outro subterfúgio tornado perfeitamente legal, e através de guerras, inclusive econômicas.

Antes, mostrei que o oprimido “abriga” o opressor dentro de si mesmo. Em outras palavras, o oprimido internaliza os modos do opressor, assim legitimizando formas de pensar e agir muito contrárias aos seus interesses próprios, aos interesses da sociedade e da própria natureza. O sistema opressor cria certas condições e condicionamentos para a vida do oprimido, digamos, a condição de consumismo. Acriticamente o oprimido aceita, promove e defende a condição considerada “normal” até ao ponto de automutilação física, emocional, espiritual e política, e de destruição ambiental, como vemos no caso de uso único de plásticos e o lixo criado e atirado a toda parte. Numa outra dinâmica, o opressor pode oferecer ao oprimido algum direito ou benefício menor. Aqui, a falsa caridade do opressor é geralmente reconhecida pelos oprimidos como amor e consideração sinceros. Na verdade, a caridade sem respeito à autodeterminação do outro é condescendente e ineficaz a longo prazo; a natureza do relacionamento de dominação não se modifica.

A educação para a cidadania global e planetária precisa esclarecer essa dinâmica do relacionamento entre opressor e oprimido a fim de superar a contradição de dominação e trabalhar para avançar as ideias relativas à reciprocidade e igualdade como fruto de negociações entre os grupos com interesses opostos. Minha conterrânea Andreotti examina cada vez mais profundamente estes temas em Headsup e outras publicações, palestras e oficinas.

Um conceito final advindo do meu trabalho, que eu gostaria de discutir como relevante para a educação para a cidadania global e planetária, é o das situações limites. Essa é mais uma maneira de perceber as questões socioeconômicas e ambientais que efetivamente limitam a capacidade da sociedade, do indivíduo e grupos de transformar a realidade em direção à uma maior libertação; quer dizer, em rumo à um alívio das dores e problemas causados pela opressão.

Ter uma perspectiva clara da situação limite ajuda a planejar ações que transformarão estas zonas de limitações. Por exemplo, compreendendo os objetivos do desenvolvimento sustentável como situações limites, o que constitui uma ligeira mudança de foco interpretativo, abre possibilidades de convergir ações para as zonas limite. O racismo, o sexismo, o elitismo, a riqueza excessiva tanto individual como corporativa, e seus contrários, pobreza e miséria, são exemplos de grandes situações limites. Estes limites, de onde partimos para o aquém, podem ser vistos também em problemas constitutivos menores e mais específicos tais como, no caso do sexismo, as tentativas de limitar, com legislação restritiva e punitiva, o direito da mulher controlar seu corpo e escolhas reprodutivas. O conhecimento das situações limites advém de processos de tomada de consciência, conscientização.

Em todo o meu trabalho, nunca aceitei existência de uma grande teoria que determine exatamente como se deve proceder para se efetuar mudanças liberatórias no mundo. As soluções para as inúmeras situações limites contemporâneas só surgem de processos comunicativos e de ação entre os membros dos grupos em movimento, preocupados e envolvidos com o problemas. Assim, são abertas, e sujeitas à evolução que leva em consideração os tempos e as gerações nelas envolvidas. Sugeri sim, pragmaticamente, que através de processos de investigação e de reflexão surjam ações com resultados que alimentam novos ciclos de investigação, reflexão e ação.

Assim, somente através desta praxis, desta educação cuja pedagogia é a da prática da liberdade, poderemos nos tornar cidadãos globais, conscientes das situações limites em nossas vidas e comunidades locais e com compreensão das ligações destas com outras vidas, partes do mundo e sistemas globais. O global é local, e vice-versa, como revela a palavra glocal.

Com estas realizações, o oprimido assim nem será mais oprimido ou se tornará um novo opressor. Ele se torna um ser humano em processo de libertação, liberando-se das condições opressoras e também liberando o opressor, o qual se transforma. E é isso que a educação para a cidadania global e planetária pode fazer, facilitar este processo de liberação através da praxis da educação como prática da liberdade, sempre radicalmente amorosa, esperançosa e criando a boniteza no mundo.

Ficamos por aqui. Desejo-lhes muita sagacidade e coragem para lidar com o neoliberalismo e as forças conservadoras que o sustém. Do além, mas vivo dentro das comunidades humanizadas que lutam por uma humanização ainda maior, me despeço, amorosamente.

Hasta la victória, siempre!

Paulo Freire.


[1] State University of New York at Oswego, Curriculum & Instruction Department, School of Education.

[2] Agradeço à Mary Lou Rebelo, escritora e tradutora brasileira, por ter lido, comentado e editado este trabalho (nota da autora).

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