Vanessa Andreotti1

Resumo: Utilizando imagens e metáforas para contestar a escrita convencional acadêmica, esse artigo levanta questões relacionadas aos desafios de imaginar e existir na beirada-limite dos paradigmas vigentes. O artigo propõe uma reflexão sobre a relação que estabelecemos com o conhecimento no contexto da modernidade através de economias intelectuais, afetivas e materiais que estão entrando em crise. Nessa reflexão, leitores e leitoras são convidados/as a imaginar os trabalhos e as responsabilidades intelectuais e existenciais envolvidos no processo educativo de transição pelo qual estamos passando no mundo inteiro. Esse processo educativo consiste na administração de tratamento paliativo no declínio de um sistema insustentável, e no prestar assistência em “partos” de possibilidades inéditas que possam valer-se das lições aprendidas com os erros recorrentes do passado, para que somente erros novos sejam cometidos no futuro.

Palavras-chave: Crises globais; Transição; Responsabilidades existenciais; Educação.

Abstract: Using images and metaphors that challenge conventional academic writing, this article raises questions related to the challenges of imagining and existing in the boarders/limits of current paradigms. The paper proposes a reflection on the relation we establish with knowledge in the context of the modernity. A reflection through intellectual, affective and material economies, which are in crisis. Readers are invited to imagine the labour and the intellectual and existential responsibilities involved in the transition educational process we are going through all over the world. This educational process consists in administering palliative treatment to the decline of an unsustainable system and in supporting the “birth” of unprecedented possibilities that can draw on the lessons learned from past recurring errors, so that only new errors will be committed in the future.

Keywords: Modernity; Global crisis; Transition; Existential Responsabilities; Education.

Resumen: Utilizando imágenes y metáforas para cuestionar la escritura convencional académica, este artículo plantea cuestiones relacionadas con los desafíos de imaginar y existir en el límite de los paradigmas vigentes. El artículo propone una reflexión sobre la relación que establecemos con el conocimiento en el contexto de la modernidad a través de economías intelectuales, afectivas y materiales que están entrando en crisis. En esta reflexión, los lectores y las lectoras son invitados a imaginar los trabajos y las responsabilidades intelectuales y existenciales involucrados en el proceso educativo de transición por el que estamos pasando en todo el mundo. Este proceso educativo consiste en la administración de tratamiento paliativo en la decadencia de un sistema insostenible, y en prestar asistencia en “partos” de posibilidades inéditas que puedan valerse de las lecciones aprendidas con los errores recurrentes del pasado, para que solamente nuevos errores se cometen en el futuro.

Palabras-clave: Modernidad; Crisis globales; Transición; Responsabilidades existenciales; Educación.

 

Resumé: En utilisant des images et des métaphores pour contester l’écriture académique conventionnelle, cet article soulève des questions liées aux défis de l’imagination et de l’existence à la frontière des paradigmes en vigueur. L’article propose une réflexion sur le lien que nous établissons, aujourd’hui, avec la connaissance sur la base de valeurs intellectuelles, affectives et matérielles qui entrent en crise. Dans cette réflexion, les lectrices et lecteurs sont invités à imaginer les travaux et les responsabilités intellectuelles et existentielles, induits dans le processus éducatif de transition vécu dans le monde entier. Ce processus éducatif consiste à administrer un traitement palliatif au déclin d’un système non durable et à aider à l’émergence de solutions inédites intégrant les leçons tirées des erreurs récurrentes du passé, en évitant qu’elles se reproduisent dans le futur

Mots-clés: Modernité; Crises mondiales; Transition; Responsabilités existentielles; Éducation.

  1. Introdução

A versão inicial deste texto foi escrita como resposta a um convite de palestra no contexto da conferência Conexões Deleuze e Máquinas e Devires, que ocorreu entre os dias 28 e 30 de Setembro de 2015 na Faculdade de Educação da Universidade de Campinas (UNICAMP), no Brasil. Nesta versão, editada para a revista Sinergias, eu inclui alguns conceitos e experimentos que venho trabalhando com meu grupo de pesquisa desde então.

A ideia original da palestra era a de levantar questões relacionadas ao processo de imaginar e vivenciar a educação ao mesmo tempo em que se imagina e se vive o cruzar, sedimentar e/ou desmontar fronteiras. O conceito de alicerce era a educação enquanto expansão de horizontes, saberes, vivências, afetos, sensibilidades, e possibilidades de (co)existência. Minha proposta inicial era a de mobilizar conceitos de resistência a fronteiras nos trabalhos de Gilles Deleuze e Gayatri Spivak (ver por exemplo Deleuze e Guattari 1988; e Spivak 1999;2012) para nos ajudar a aprofundar questionamentos relacionados a imaginários globais/locais arborescentes e rizomáticos, a éticas de linhas de voo e de fuga, e a desejos ativos e reativos de/na produção de novos afetos, relações e conhecimentos.

Minha relação com os trabalhos de Deleuze e Spivak partem do processo de elaboração do texto “Cumplicidade, ética e educação: leituras políticas e existenciais dos trabalhos de Spivak e Deleuze” (Stein e Andreotti 2014), escrito com Sharon Stein. Esse texto aborda a interface complicada entre o trabalho de Deleuze e Spivak, enfocando uma discussão exposta no livro “Deleuze e o pós-colonialismo” (Bignal e Paton, 2010), onde, em um dos capítulos, Andrew Robinson e Simon Tormey (2010) defendem Deleuze contra a acusação (da Spivak) de propor uma crítica Eurocêntrica ao Eurocentrismo. O texto-resposta se concentra nas tensões e paradoxos que encontramos ao tentarmos articular alternativas de existência para além daquelas viabilizadas pelas economias intelectuais, performativas, afetivas e relacionais existentes, economias estas que são vinculadas a sistemas capitalistas, imperialistas e coloniais.

Com o intuito de mover discussões educacionais para além de conceitos baseados na pedagogia crítica, que enfoca principalmente questões epistemológicas e de representação, este texto enfoca questões ontológicas e de representabilidade que se remetem a interação conflituosa e paradoxal entre demandas políticas e existenciais em relação à diferença, à imanência, ao sentir, e ao devir. O texto chama atenção a (in)viabilidades relacionais na prática da solidariedade em relação a grupos sociais mais vulneráveis à ação direta da violência sistêmica. Gaztambide-Fernández (2012) articula alguns dos questionamentos abordados que permeiam a interface entre os projetos político-pedagógicos deste texto, bem como os trabalhos do Deleuze e da Spivak:

Até que ponto a solidariedade precisa de categorias sociais e politicas herdadas e até que ponto pode desistabilizá-las? A solidariedade requer necessariamente interesses compartilhados e destinos comuns, ou ela pode ser exercida em contextos comprometidos com uma forma de interdependência que não exige comensurabilidade? A solidariedade insinua uma hierarquia de relações entre aqueles que a praticam e aqueles que são o alvo da solidariedade? A solidariedade depende de algum tipo especial de moralidade, ou ela pode existir em um contexto de posições morais diferentes e até contraditórias? (p.50)

Figura 1: A ilusão da percepção ilimitada circunscrita por um imaginário sensual delimitado por noções de futuridade, progresso e tempo linear (na escola) e de agência, significado e individualidade (na sociedade)

Meu objetivo era o de convidar os interlocutores a imaginar uma educação para além de fronteiras ideológicas, geográficas, emocionais, semânticas, políticas e existenciais (principalmente aquelas cerceadas pela ideia de que o significado é tanto a estrutura quanto o propósito da existência humana). Ao invés de somente discorrer sobre esse assunto, eu queria que o convite proporcionasse uma vivência dessa tentativa de imaginar para “além” do que somos autorizados, porém essa vivência não poderia acontecer a partir de uma escrita logocêntrica. Pedi então ajuda a imagens que resistem à estabilidade da articulação. No entanto, em nosso processo de colaboração, as imagens acabaram exigindo a própria agência e direcionando a agenda do texto. Escrevemos juntas um texto não linear, com vozes múltiplas, sem muita explicação que brinca com o sentido duplo da palavra “sentido”: com a relação complicada entre o sentir e o articular.

 

Figura 2: Eu faço qualquer coisa pra te ajudar, exceto descer das suas costas

A imagem de um homem branco pesado, com uma venda nos olhos, carregando o símbolo da justiça e sendo carregado por uma mulher não branca, amordaçada é inspirada na escultura (modificada) de Jens Galshiot: Justitia, a Deusa Europeia da Justiça. Eu tenho usado essa imagem para ilustrar alguns aspectos importantes do trabalho de Gayatri Spivak (Spivak, 1999; 2004; 2012; Andreotti ,2007; 2014), como a gramática imperialista de sentidos e de distribuição de recursos, trabalho, valores, justiça e relações de poder. A imagem visibiliza a contradição de se querer transformar relações sem questionar o sistema que torna essa ação/opção possível de forma assimétrica, sem o engajamento com a autoimplicação e cumplicidade, e sem perder a “soberania” inculcada exatamente na gramática que sustenta o que se quer transformar. Outro aspecto importante, é a possibilidade de inteligibilidade do Outro: se tirarmos a mordaça, o que exatamente desejamos e temos condições de escutar? O trabalho da Spivak chama a atenção para a necessidade da hiperautorreflexividade e autoimplicação em análises críticas, para além da narrativa de vilões, vítimas e salvadores da pátria, e dos desejos problemáticos de heroísmo e de inocência que acompanham essa narrativa. Na interface com Deleuze e Guattari (1988), Spivak nos leva a indagar se estamos realmente em linha de voo ou se estamos grudados no tronco da árvore escrevendo (ou sonhando) voar.

Figura 3: O touro da vaidade que anseia por sentir-se conectado, amado e útil, mas que insiste no caminho do narcisismo procurando segurança na anestesia confortável do individualismo

Nesse contexto, o trabalho da Spivak nos força a olhar no olho do touro da nossa própria vaidade. Com o olhar firme nas tendências narcisistas da (pós)modernidade, ela nos leva a desconfiar de autoimagens que insistem na inocência, benevolência, e autoafirmação, e de desejos ocultos que subvertem as nossas intencionalidades.

Através dessa educação ela quer criar a possibilidade de um imperativo ético em relação ao Outro, que anteceda a vontade: que não dependa de um ato de escolha ou de agência racional. No encontro com o Outro, esse imperativo demanda a priorização do desnudamento e do redescobrimento como parte desse Outro e também de um metabolismo maior. Esse imperativo também nos chama a desinvestir no senso de virtude que geralmente acompanha o cruzar de fronteiras e a reinvestir na integridade de se caminhar e respirar em conjunto, sem fugir das dificuldades e desconfortos inerentes a esse processo educacional (Zembylas, 2014; Andreotti, 2013; 2016; Andreotti, Pereira, Edmundo, 2017). Esse tipo de educação nos leva a questionar a origem e a satisfação que nos proporcionam os nossos desejos e significados: quem achamos que somos, de onde falamos, nossos sentidos de tempo, de espaço, de responsabilidade, e de liberdade.

 

Figura 4: O Estado-Clínica-Laboratório-Sala-de-Aula

A nossa participação em instituições modernas, como o Estado-Nação e o processo de escolarização, inculcam desejos (com vários graus de sucesso e fracasso) que nos orientam a uma forma de pensamento enquadrada na proteção da individualidade e da separabilidade (ver Silva 2014) enquanto alicerces ontológicos (ver Stein, Hunt, Andreotti, Susa, 2017). Essa proteção restringe as possibilidades de interação com o mundo a relações mediadas pelo significado, pelo conhecimento, e pela identidade. Essas relações são baseadas em uma concepção de linguagem (logocêntrica) que intermedia a relação entre experiência e narração, enraizadas no desejo da totalidade (um conhecimento que possa envolver o mundo em um manto de categorias estáveis e duradouras). Desejo este que envolve uma associação direta entre o sentido (significado) e o sentir. Assim, nossas subjetividades modernas são autorizadas a reconhecer o “sentir” somente naquilo que “faz sentido”. O espaço criado (e muitas vezes vigiado) para a suspensão temporária dessa relação entre sentir e sentido é chamado de “artes”. Nesse contexto o espaço é ambíguo e pode funcionar tanto como válvula de escape que ajuda a equilibrar as energias do sistema normalizado, ou pode se tornar um agente desestabilizador da naturalização dessa normalidade (ver Andreotti e Souza, 2016).

Figura 5: O sujeito dividido entre o que faz e não faz sentido e o que anestesia ou inflama o sentir

A associação direta entre o sentido (narratividade) e o sentir restringe o âmbito de experiências socializáveis dentro de instituições modernas, pois delimita o campo de inteligibilidade (que por sua vez delimita o campo de possibilidade de mobilizações de afetos e esperanças), supervalorizando o que está dentro deste campo e abafando e apagando o que está fora. Assim, se precisamos inibir ou reprimir o sentir e a porosidade e maleabilidade de nosso ser para fazer sentido, acabamos anestesiados em nossa relação com o que é inteligível no restrito campo de sentidos e sentires do tronco-modernidade. A escrita desse texto dentro de categorias inteligíveis é um exemplo deste cerceamento, pois para ser lido precisa reproduzir economias autorizadas de inteligibilidade, performatividade e autoridade para ter visibilidade e credibilidade. E assim criamos a circularidade…

O significado é a estrutura de aço do ser moderno – o cimento é o desejo de segurança ontológica, e de gozo e satisfação na realização das promessas (impossíveis) da modernidade, que dão substância a essa estrutura. Temos também azulejos e rejuntes que personalizam a nossa fachada, por isso nos percebemos como únicos e distintos. Quando nos damos conta de que as promessas são falsas e sentimos a insegurança da falta de alicerces ontológicos, a estrutura do ser moderno racha. A resposta mais óbvia e comum é procuramos mais cimento, azulejo e rejunte para consertar nossa esperança, ao invés de buscarmos outros materiais, formas e estruturas de existência. Quando entramos nesse processo de defesa de estruturas já comprometidas, agimos por impulso, a partir do medo da perda, da dor, e da morte simbólica. Na iminência do colapso das economias que sustentam nossas posições em hierarquias sociais e nossa audibilidade política, nesse processo de defesa criamos bodes expiatórios e procuramos salvadores da pátria que possam trazer novamente o senso de ordem e progresso.

Figura 6: Boxhead e o enquadramento da inteligibilidade do alicerce do ser moderno no pensamento dialético, utilitário, antropocêntrico, alocrônico, teleológico, universalista e evolucionário.

A dificuldade da possibilidade real de se transmutar a estrutura de concreto e alcançar voo em formas mais leves, rizomáticas e dinâmicas está no desejo de segurança ontológica. É muito mais fácil falar sobre a vontade de voar (como se já estivéssemos voando), do que se jogar de um despenhadeiro com uma chance mínima de não se esborrachar. Quanto mais tivermos a perder dentro da economia moderna de sentidos e sentires (ex. prestígio, opção, autonomia, status, objetos de consumo, etc.), mais pesada é a nossa estrutura, e mais difícil é o desapego, que é pré-requisito do voo. Estruturas de aço não são feitas para voar.

Figura 7: A escada-oportunidade de mobilidade social

 

Por outro lado, se nossos desejos mais íntimos (e secretos) são sequestrados e a nossa existência cerceada pela promessa de mobilidade social na escada de uma sociedade de consumo fomentada por percepções historicamente situadas de prestígio social e de valor humano, como poderíamos narrativizar a possibilidade de voo, de ruptura para uma outra existência, de forma a efetivamente abrir essa possibilidade (para além da narrativa)? Esse é um grande desafio, pois abrir efetivamente essa possibilidade depende da interrupção da satisfação com a segurança ontológica (e material) que o sistema atual nos concede, principalmente enquanto acadêmicos cujo o trabalho de pensar, ensinar, e escrever é financiado pelo sistema que depende da violência-que-subsidia-a-existência que se deseja transcender.

Então como poderíamos imaginar uma educação “para além de fronteiras” que possa traduzir o pensar e narrativizar o voo na possibilidade (mesmo que ínfima) do “voar”?

O paradoxo entre a integridade do pensar e a realidade material da subjetividade pertencente ao sistema que o pensar critíco cria uma compreensível resistência de minar as estruturas que são essenciais a (uma forma específica de) sobrevivência. Porém o declínio e a morte do sistema já foram anunciadas por limites naturais de um único planeta e pela crise existencial em massa criada pelo vazio de promessas falsas de realização humana baseadas no ato de subir escadas (a promessa de que todos possam pertencer a classe média).

Se a morte simbólica dessa forma especifica de existência é questão de tempo, o que a educação pode fazer para ajudar no tratamento paliativo do sistema em fase terminal e no parto de algo novo e indefinido, potencialmente (porém não necessariamente) mais sábio? Como diz o ditado brasileiro, em situação de enchente só podemos começar a nadar quando a água atinge os quadris, antes disso, apesar das dificuldades, só conseguimos mesmo andar. Assim, a possibilidade de mudança ontológica genuína depende da inviabilidade do conforto proporcionado pela segurança ontológica existente. No processo de transição entre uma e outra, é preciso uma educação que possa dar conta tanto de questões epistemológicas de representação (no processo de tratamento paliativo da estrutura antiga), quanto de questões ontológicas de representabilidade (ao enfrentar a incerteza do novo que não cabe em categorizações). Nesse sentido, seria importante uma educação que promovesse:

  • o decentramento de investimentos egológicos para a expansão de noções de ser e devir;
  • o desarmamento de minas afetivas e confinamentos simbólicos para o acolhimento da incerteza, da indeterminação, da improvisação e de uma relação desapegada com o significado;
  • o desentulhamento intelectual, afetivo, físico e existencial (projeções, compensações, neuroses, distrações, evasões, desconexões);
  • o discernimento que precede a sobriedade, através da sobreposição de conhecimentos e sensibilidades;
  • a dissolução de limites de pensamento, sentidos, sentires, relações e percepções de ser e de individualidade.

Figura 8: cuidado paliativo, parto, e a educação no olho do furacão

Os conceitos engendrados nos trabalhos do Deleuze e da Spivak podem oferecer subsídios para nortear esse processo. O trabalho da Spivak (2004) nos ajuda a pensar sobre a responsabilidade intelectual necessária para deixarmos de virar as costas aquilo que nos é desconfortável para que possamos aprender com erros recorrentes com o intuito de cometermos apenas erros novos no futuro. Esse trabalho pode nos ajudar a encarar de frente a nossa cumplicidade naquilo que criticamos e queremos transcender e nos ajudar a perceber nossas próprias contradições, com ênfase na diferença entre o dizer e o fazer. Essa responsabilidade intelectual (no tratamento paliativo) é a base da responsabilidade existencial no parto (ou voo) de novas formas de existência. O trabalho do Deleuze (Deleuze e Guattari 1988), complementa o da Spivak ao mostrar que a responsabilidade intelectual ainda nos aprisiona, e portanto a entrega existencial é necessária para que possamos sentir novamente aquilo que o intelecto do sistema corrente nos levou a anestesiar. A entrega existencial no processo de tratamento paliativo prepara o caminho para a entrega intelectual no parto (ou voo) de outras formas de existência. Na educação, enquanto Spivak nos ajuda a pensar sobre o “abrir os olhos” (responsabilidade intelectual) no sistema atual para que possamos subsequentemente “abrir a carne” (responsabilidade existencial) na possibilidade do novo, Deleuze nos ajuda a pensar sobre o “abrir os poros” para além da representação, para que possamos subsequentemente “abrir os sonhos” para além da percepção de existência enraizada na temporalidade da matéria.

Acho importante concluir com uma observação de cautela: a elevação de Spivak ou Deleuze ao status de cânone pode ser contra-produtiva ao propósito da educação. Enquanto seres humanos complexos, contraditórios, parciais e falíveis, os dois autores também nos ensinam, através de suas trajetórias pessoais, sobre os limites da forma de produção de conhecimento (acadêmico) e, principalmente, da relação (problemática) que estabelecemos com o conhecimento enquadrados nos referentes, expectativas e economias da modernidade. O tratamento paliativo de morte digna dessa produção/relação requer um esforço nosso no sentido de se desvincular o conhecimento do desejo de estabilidade proporcionado por autoridades infalíveis e estáveis. Essa ruptura com a estrutura acadêmica esperada, nos convida a assumir coletivamente a responsabilidade sobre o imaginar e vivenciar a educação “sem fronteiras”, a partir e para além de nossos próprios contextos, com autocrítica e humildade, usando constelações múltiplas de referentes em movimento, sem a necessidade de heróis, messias ou salvadores da pátria, e sem medo da complexidade, da pluralidade de entendimentos, dos paradoxos e das incertezas de mares instáveis e cheios de possibilidades, porém nunca antes navegados.

Imagens: As imagens reproduzidas nesse texto foram desenhadas por Vanessa Andreotti e podem ser encontradas no sítio: http://blogs.ubc.ca/andreotti. As imagens são registradas através da licença pública Creative Commons Attribution-NonCommercial-ShareAlike 4.0 International License, podendo ser reproduzidas em publicações sem fins lucrativos.

Agradecimentos: Gostaria de agradecer ao Professor Dr. Antônio Carlos de Amorin pelo convite para participar da conferência em Campinas, a Renato Pereira, pelas revisões do texto em Português, aos meus filhos, companheiro e grupo de pesquisa pelo trabalho intelectual e afetivo que torna possível a articulação das ideias neste texto.

 


[1] Ocupa a Cátedra de Pesquisa Canadense em questões relacionadas à globalização, desigualdades e transformações sociais na Faculdade de Educação da Universidade da Columbia Britânica, no Canadá. É doutora em Educação, Teoria Crítica e Estudos Culturais pela Universidade de Nottingham (2006), mestre em Educação pela Universidade de Manchester (2003) e licenciada em Letras-Inglês pela Universidade Federal do Paraná (1998).

Referências bibliográficas:

  • Andreotti, V. O. (2013). Conhecimento, escolarização, currículo e a vontade de ‘endireitar’a sociedade através da educação. Revista Teias, 14(33),215-227.
  • Andreotti, V. (2016). Research and pedagogical notes: The educational challenges of imagining the world differently. Canadian Journal of Development Studies, 37(1), 101-112.
  • Andreotti, V. (2007). An ethical engagement with the Other: Gayatri Spivak on education. Critical Literacy: Theories and Practices, 1(1), 69-79.
  • Andreotti, V., Souza, L. (2016). Critical education and postcolonialism. Springer Encyclopedia of Educational Philosophy and Theory (1-6). New York: Springer.
  • Andreotti, V., Pereira, R., Edmundo, E. (2017). O imaginário global dominante e algumas reflexões sobre os pré-requisitos para uma educação pós-abissal. Sinergias: Diálogos educativos para a transformação social, 5, 41-54
  • Bignall, S. & P. Patton (Eds.) (2010). Deleuze and the postcolonial. Edinburgh: Edinburgh University Press.
  • Da Silva, D. F. (2014). Toward a Black Feminist Poethics: The quest (ion) of Blackness toward the End of the World. The Black Scholar, 44(2), 81-97.
  • Deleuze, G., & Guattari, F. (1988). A thousand plateaus: Capitalism and schizophrenia. London: Bloomsbury Publishing.
  • Gaztambide-Fernández, R. A. (2012). Decolonization and the pedagogy of solidarity. Decolonization: Indigeneity, Education & Society, 1(1), 41-67.
  • Robinson, A., & Tormey, S. (2010). Living in smooth space: Deleuze, postcolonialism and the subaltern. In S. Bignall & P. Patton (Eds.), Deleuze and the postcolonial, (pp. 20-40). Edinburgh: Edinburgh University Press
  • Spivak, G. C. (1990). The post-colonial critic: Interviews, strategies, dialogues. London: Psychology Press.
  • Spivak, G. C. (2004). Righting wrongs. The South Atlantic Quarterly, 103(2), 523- 581.
  • Spivak, G. C. (2012). An aesthetic education in the era of globalization. Cambridge, MA: Harvard University Press.
  • Stein, S. , Andreotti, V. (2015). Complicity, ethics and education: Political and existential readings of Spivak’s work [Special issue on Gayatri Spivak]. Critical Literacy: Theories and Practices, 9(1), 29-43.
  • Stein, S., Hunt, D., Susa, R., Andreotti, V.(2017): The Educational Challenge of Unraveling the Fantasies of Ontological Security, Diaspora, Indigenous, and Minority Education, 11(2), 69-79.
  • Zembylas, M. (2014). Theorizing “difficult knowledge” in the aftermath of the “affective turn”: Implications for curriculum and pedagogy in handling traumatic representations. Curriculum Inquiry, 44(3), 390-412.
  • Andreotti, V., Pereira, R., Edmundo, E. (2017). O imaginário global dominante e algumas reflexões sobre os pré-requisitos para uma educação pós-abissal. Sinergias: Diálogos educativos para a transformação social, 5, 41-54

Download do artigo.

Compartilhe nas suas redes