Tania Ramalho[1]Professora Emerita. State University of New York – Oswego.

Meu querido Paulo,

A questão da paz como tema de época continua a se ressaltar pelas razões usuais — os problemas de dominação e a opressão na humanidade. A nível global, as ameaças presentes provêm de duas nações exageradamente armadas desde a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos da América e a Rússia. Tecnológica e militarmente, estas são capazes de destruir a vida inteira no planeta a qualquer momento, com suas pilhas de armas nucleares. Recentemente as substituem por outras armas mais dissimuladas, sanções econômicas, não menos letais. Os velhos inimigos continuam instigando uns aos outros. E há novos donos de arsenais nucleares: França, Israel, Coreia do Norte, Índia, Paquistão, e China, cada um com uma justificativa para adotá-las. Israel, um estado vassalo e nuclear, armado com serviços de inteligência e armas, controla as nações vizinhas ricas em petróleo e posições geopolíticas, tanto islâmica como outras, vistas como adversárias.

Em outras palavras, querido Paulo, cenários de inimizade ainda não foram removidos de todo o mundo. Cada um deles estrangula as condições e caminhos requeridos pela sustentabilidade social, política, econômica, e da biosfera. O próprio conceito de sustentabilidade, que descreve o objetivo central das Nações Unidas na atualidade, presume comunicação e a cooperação a nível global, um processo de paz, fundamentalmente dialógico com vistas à compreensão e resolução dos desafios à sobrevivência que enfrentamos em comum.

Em 1986 você fez um discurso como laureado do Prêmio da Educação para a Paz da UNESCO. O discurso demonstra seu compromisso com a educação, a justiça social, e a paz. Você iniciou pedindo desculpas pelo uso de uma mistura de português e espanhol, preocupado com o sotaque que poderia tornar difícil o trabalho dos intérpretes durante a apresentação. Os brasileiros tendem a usar o “portunhol” (português + espanhol) quando tentando comunicar-se em espanhol, recorrendo a algumas expressões em português. Você se referiu a ter “aprendido a destorcer” a língua espanhola no Chile, um país que você amava e onde vivera depois de escapar da ditadura militar no Brasil que durou 20 anos.

Na UNESCO, seu discurso (1998) entrelaçou conversa informal e espontânea — característica da cultura do Nordeste do Brasil, seu modo de falar preferido — com a leitura de um texto preparado para a ocasião. Começando com conversa, você revelou as emoções contraditórias que sentia naquele momento, descrevendo o quanto era difícil fazer um discurso convencional. Você estava jubilante. Ao mesmo tempo, se sentia embaraçado.

Para resolver o dilema, você expressou sua apreciação e gratidão “…para reiterar a importância das contribuições, muitas delas anônimas, que foram feitas ao seu trabalho prático e teórico…” (p. 25). Disse: “Estou aceitando primariamente como um tributo ao que consegui alcançar como educador junto com outros homens e mulheres” (p. 27).

No seu desconforto, modéstia e humildade, você desmascarou a falsidade do individualismo. “Seu” trabalho nunca foi seu unicamente, mas resultado de processos sociais coletivos. Você reconheceu muitos pensadores cujos conceitos estão registrados na sua teoria e prática educacional. Reconheceu também, efusivamente, a Elza — como esposa e avó — e pela sua capacidade como professora e aluna, quem possibilitou o recebimento do prêmio.

Você se identificou como educador cujo trabalho deve ser compreendido dentro de circunstâncias sociais, culturais e políticas. Nunca sobrestimando ou subestimando sua contribuição à teoria e prática da educação progressista, foi crítico de sua própria pesquisa e insistiu que aprendia enquanto ensinava. Nunca diferenciando o ensino da aprendizagem, não minimizou o ato de ensinar, mantendo uma “atitude responsável” frente a ele:

“… significando que o professor deve ter a competência necessária em termos de conhecimentos e métodos, e do alvo do ensino. Só posso conceber o ensino como um complexo totalizante.” (p. 26).

De estudantes de todo o mundo — camponeses e trabalhadores de várias origens étnicas, incluindo povos indígenas e de áreas rurais e urbanas da América Latina, Caribe, Norte América, Europa, África e Ásia — você recebeu muitos presentes:

Suas dúvidas, seus medos, suas faltas de certeza, mas também convicções as quais sempre compartilhei, me ajudaram a ver melhor as coisas e compreender mais claramente o que eu pensava e já sabia. O que fiz foi exercitar minha curiosidade em relação às suas convicções e faltas de certeza, suas dúvidas e medos, seus conhecimentos fragmentados do mundo, o que fosse — como tem acontecido através da minha vida consistentemente — refletindo no que estou fazendo para aprender a pensar claramente e trabalhar melhor (p. 27).

Tendo reconhecido o poder da contribuição do outro para sua vida acadêmica, você falou sobre a paz:

Dos explorados povos do mundo, sem nome e sem sorte, aprendi acima de tudo que a paz é fundamental, indispensável, pela qual se precisa lutar. A paz é algo criada, construída, transcendendo a realidade dos fatos perversos da vida social. A paz é criada e desenvolvida na construção inacabável da justiça social (p. 27, minha ênfase).

Esta afirmação me fez parar para pensar, Paulo, enquanto lia suas palavras. Não necessariamente por não estar familiarizada com as ideias, mas pela força de sua realização. Sim, paz é fundamental, essencial e definitiva! Sim, paz é indispensável, requerida e imperativa. Porém, paz não é simplesmente dada — paz é construída socialmente ao sobrepassarmos as realidades opressivas. Reiterando o que você disse: “A paz é criada e desenvolvida na construção inacabável da justiça social.” Este é o refrão: Sem justiça, não há paz. Sem justiça, não há paz. Sem justiça, não há paz.

Educação para a paz que não traga à luz a injustiça, ou que não examine as condições de opressão de suas vítimas, não merece este nome, você admoestou. Somente uma forma de educação progressista, “rigorosa, responsável, essencialmente democrática,” pode encorajar os alunos a aprender, contestar e examinar criticamente as condições de opressão e agir para sobrepassá-las pode representar a verdadeira educação para a paz.” (p. 27).

Paulo, quero contar um pouco sobre o trabalho que tentamos fazer em educação de professores na minha universidade americana, dedicada à educação para a justiça social contra a opressão. Pedimos que os alunos discutam as realidades, imaginem e tentem intervenções apropriadas. Por exemplo, compreender a hegemonia do capitalismo neoliberal e sua cumplicidade com o militarismo, engendrando desigualdade e pobreza em meio à fartura, e impactando a crise ambiental e climática global, para não falar dos próprios bolsos, pois muitos alunos se formam com dívidas para toda a vida. (Sob a ideologia neoliberal, que você detestava pela falta de ética, educação superior é mercadoria, considerada primariamente um bem privado, não público.)

Pedimos que os alunos examinem as raízes patriarcais da história e da cultura nas Américas, e as condições das vidas das mulheres, homens e minorias sexuais informadas pelas regras de gênero e sexualidade historicamente construídas.

Mais além, dialogamos sobre a supremacia branca ocidental e seu racismo e subjugação dos conhecimentos dos outros povos das Américas, particularmente nossas populações indígenas e africanas escravizadas. Pedimos aos futuros professores para considerar o privilégio dos seus alunos portadores de mentes e corpos mais saudáveis, e a aprender a respeitar aqueles com desabilidades assim como a dimensão importante da experiência humana que trazem para as salas de aula onde são incluídos.

Mais importante ainda, examinamos as intersecções (Crenshaw, 1994) destas opressões devidas às condições econômicas, de sexo/gênero/sexualidade, “raça”[2]Sempre uso “raça” entre aspas para ressaltar a natureza deste conceito construído socialmente. Só existe uma “raça”, homo sapiens, seres humanos. e habilidade que impõem hierarquias de dominação e subordinação muitas vezes não identificadas ou mencionadas. Estas intersecções de opressões, que constituem o sistema denominado por bell hooks (1997) patriarcado capitalista branco-supremacista (e podemos adicionar, heterossexual e pro-capacidades), se refletem no caráter das nações e suas políticas contínuas de agressão que levam à guerra e destruição generalizada. Exigimos dos professores — e de todos os educadores — que considerem o desenvolvimento de atitudes de ternura radical (D’Émilia et al., n.d.) em relação a si e ao Outro, e o apoio sem preconceitos à justiça social, nacional e globalmente.

Trabalho de justiça social—de paz—não é fácil, como você mesmo compreendia ao afirmar no seu discurso que “uma visão menos inocente do mundo não resulta necessariamente num compromisso para transformar o mundo” (p. 27). Como educadores de professores, nós tentamos e não desistimos. Afinal, sem justiça, não há paz.

Paulo, a UNESCO reconheceu você como um educador para a paz do mundo. Na sua perspectiva, o prêmio não deveria ter o “efeito de fossilizar, paralisar ou mumificar” o recipiente e deveria ser encarado como um “aviso e encorajamento” (p. 28). Você admoestou: “Ser laureado não lhe intitula a descansar nos seus lauréis; como vejo, é um incentivo para se tornar digno do tributo” (p. 28).

Merecedor, você continuou a trabalhar com outros pela justiça e a paz até quando nos deixou, sem anúncio, nove anos mais tarde. Agora guardamos você bem perto na nossa memória, quando trabalhamos com a finalidade de construir a paz ao desamarrar e liberar os labirintos das relações opressivas, de modo lento, mas com firmeza.

Referências

References
1 Professora Emerita. State University of New York – Oswego.
2 Sempre uso “raça” entre aspas para ressaltar a natureza deste conceito construído socialmente. Só existe uma “raça”, homo sapiens, seres humanos.
[1]Professora Emerita. State University of New York – Oswego. Meu querido Paulo, A questão da paz como tema de época continua a se ressaltar pelas razões usuais — os problemas de dominação e a opressão na humanidade. A nível global, as ameaças presentes provêm de duas nações exageradamente armadas desde a Segunda" data-link="https://sinergiased.org/discurso-de-paulo-freire-laureado-do-premio-unesco-da-educacao-para-a-paz-1986/">

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1 Professora Emerita. State University of New York – Oswego.