Vanessa Andreotti, Sharon Stein, Rene Susa & coletivo de arte/educação “Sinalizando rumo a futuros descoloniais” 1
Resumo: Este texto é um experimento pedagógico na forma de cartografia social que convida os leitores a refletir sobre suas teorias de mudança. O texto apresenta a metáfora da ‘Casa construída pela modernidade´ enquanto construção humana que ultrapassa os limites do planeta. A metáfora da casa oferece um diagnóstico possível de crises globais contemporâneas em sociedades modernas. O texto também apresenta um possível horizonte de esperança através de uma analogia orgânica que propõe uma forma de justiça transformadora e regeneradora vindoura que integre as justiças ecológica, econômica, cognitiva, afetiva e relacional.
Palavras-chave: Modernidade; Crises globais; Justiça global; Justiça cognitiva, Pensamento pós-abissal.
Resumen: Este texto es un experimento pedagógico en forma de cartografía social que invita a los lectores a reflexionar sobre sus teorías de cambio. El texto presenta la metáfora de la “Casa construida por la modernidad” dónde una construcción humana sobrepasa los límites del planeta. La metáfora de la casa ofrece un diagnóstico posible de crisis globales contemporáneas en sociedades modernas. El texto también presenta un posible horizonte de esperanza a través de una analogía orgánica que propone una forma de justicia transformadora y regeneradora que integre la justicia ecológica, económica, cognitiva, afectiva y relacional.
Palabras-clave: Modernidad; Crisis globales; Justicia global; Justicia cognitiva; Pensamiento pós-abisal.
Abstract: This text is a pedagogical experiment in the form of a social cartography that invites readers to reflect on their theories of change. It presents the metaphor of ‘the house that modernity built’ as a human construction that exceeds the limits of the planet. The house metaphor offers a possible diagnosis of cotemporary global crises in modern societies. The text also presents a possible horizon of hope through an organic analogy that proposes a form of transformative regenerative justice-to-come that can integrate ecological, economic, cognitive, affective and relational forms of justice.
Keywords: Modernity; Global crises; Global justice; Cognitive justice; Post abyssal thinking.
Resumé: Ce texte est une expérience pédagogique ayant la forme de cartographie sociale qui invite les lecteurs à réfléchir sur leurs théories de changement. Le texte présente la métaphore « La maison construite par la modernité » en tant que construction humaine qui outrepasse les limites de la planète. La métaphore de la maison offre un diagnostique possible de crises globales contemporaines dans les sociétés modernes. Le texte présente aussi un possible horizon d’espérance par une analogie organique qui propose une forme de justice transformatrice et régénératrice à venir qui intègre les justices écologique, économique, affective et relationnelle.
Mots-clés: Modernité; Crises globales; Justice globale; Justice cognitive; Pensée post-abyssale.
1. Introdução
Este texto é uma cartografia social usada no coletivo de arte/educação “Sinalizando rumo a futuros descoloniais” (ver http://decolonialfutures.net). Essa cartografia social é um experimento educacional e uma ferramenta pedagógica que incentiva conversas sobre a nossa existência coletiva num planeta que está enfrentando crises inéditas. Essas conversas também mudam a cartografia enquanto instrumento pedagógico, havendo, portanto, muitas versões diferentes (como um palimpsesto). Em sintonia com o convite de Boaventura de Sousa Santos (2007) a enxergarmos o conhecimento não como uma representação da realidade, mas como uma intervenção nesta, os autores estão mais interessados nas conversas mobilizadas pela cartografia social do que na exatidão das descrições. Igualmente em resposta ao chamado de Sousa Santos (2007) sobre ecologias de saberes, raciocínio pós-abissal e formas alternativas de se pensar alternativas, essa cartografia social não é normativa nem busca totalidade ou hegemonia na produção de conhecimento: ela é uma dentre tantas proposições e diagnósticos possíveis.
Essa cartografia social apresenta duas imagens que constituem uma teoria de mudança. Toda teoria de mudança é composta de um diagnóstico do presente e uma proposição de um horizonte para a mudança. A primeira imagem (a casa) apresenta um diagnóstico enquanto que a segunda imagem (cogumelos e micélio) apresenta a proposição de um horizonte e uma forma de nos movermos juntos. A imagem de “A Casa Construída pela Modernidade” oferece um diagnóstico do presente com enfoque num imaginário global moderno/colonial em que “ser” é reduzido a “saber”, os lucros prevalecem sobre as pessoas, a terra é tratada como um recurso ao invés de uma relação viva, e as promessas cintilantes dos estados, mercados e da racionalidade ocidental são subsidiadas com a negação dos males da pobreza, genocídio e destruição ambiental. A imagem de cogumelos e do micélio, a qual faz parte do projeto “Aos CUIDADOS da Terra” (In Earth’s CARE), promove conversas sobre a possibilidade de se criar horizontes de esperança que ultrapassem a casa construída pela modernidade. Por meio de uma metáfora centrada na terra, essa imagem propõe que a justiça ecológica e econômica (cogumelos) não são viáveis sem a justiça cognitiva, afetiva e relacional (micélio saudável). Juntas, essas duas imagens apontam para a necessidade de um tipo diferente de educação em que nos vejamos como parte de um metabolismo maior e na qual aprendamos a dar tratamento paliativo à modernidade em fase terminal, aprendendo com seus recorrentes equívocos a fim de abrirmos nossos imaginários e cometermos apenas erros novos enquanto auxiliamos no nascimento de algo novo, indefinido e potencialmente, mas não necessariamente, mais sábio.
2. A casa construída pela modernidade
A imagem de “A casa construída pela modernidade” foi inspirada pela famosa e genial percepção de Audre Lorde (1984) de que
“…as ferramentas do senhor jamais desmantelarão a casa-grande. Talvez elas nos permitam temporariamente derrotá-lo em seu próprio jogo, mas jamais nos permitirão provocar uma mudança de verdade.” (p.112)
As quatro primeiras imagens no topo da cartografia trazem uma breve análise das instituições e estruturas sociais contemporâneas que estão enfrentando crises de ordem social, política, ecológica e econômica. As quatro imagens na base da cartografia oferecem uma análise de como a modernidade afeta nosso raciocínio, nossa noção do eu e da realidade, nossos desejos e a percepção das nossas prerrogativas, prejudicando a nossa capacidade de sentir, de ter esperança, de se relacionar, de ser e imaginar de um modo diferente.
Essa cartografia sintetiza críticas à modernidade promovidas dentro dos Estudos Indígenas, Negros, Descoloniais, Pós-Desenvolvimento, Pós-Coloniais e dentro (de diferentes formas) da Psicanálise através das obras de estudiosos como Gayatri Spivak, Frantz Fanon, Denise Ferreira da Silva, Nelson Maldonado-Torres, Fred Moten, Arturo Escobar, Vandana Shiva, Boaventura de Sousa Santos, Silvia Rivera Cusicanqui, Sylvia Wynter, Glen Coulthard, Michalinos Zembylas, Ilan Kapoor, Sara Ahmed, Leela Gandhi, David Scott, M. Jacqui Alexander e muitos outros. Uma descrição da casa foi primeiramente publicada em Stein & Andreotti (2017), sendo posteriormente desenvolvida em Stein, Hunt, Susa & Andreotti (2017) e Andreotti, Stein, Sutherland, Pashby, Susa, & Amsler (2018).
3. A casa e o planeta
A primeira imagem da cartografia mostra uma casa construída pela modernidade que ultrapassa os limites do planeta. Essa casa consiste de:
- um alicerce de separabilidade (separações entre seres humanos e a terra, assim como hierarquias de valor humano);
- uma parede de apoio da razão universal baseada no humanismo iluminista;
- uma parede de apoio dos estados-nações modernos baseada nos princípios de justiça e direitos liberais;
- um telhado (atual) de capital global representando o capitalismo financeiro com seus acionistas, o qual substituiu os telhados do capitalismo industrial e de diferentes formas de socialismo em diferentes contextos.
Figura 1: A casa e o planeta
4. Custos Invisíveis
A segunda imagem chama a atenção para os custos externos e invisibilizados da construção e manutenção da casa por meio de expropriação histórica e contínua, de roubo de terras, de exploração, de miséria, de desalojamento e epistemicídios, de ecocídios e genocídios (tal como ocorrem na contemporaneidade, por exemplo, com a extração de minerais à custa de muito sangue humano, o comércio de armas, a negação dos direitos que os povos indígenas adquiriram com tratados, o policiamento violento tanto dentro quanto nos limites da casa, a contaminação de terras e águas para a extração de recursos, o tráfico de seres humanos, os episódios evitáveis de fome e desnutrição, o fator racial no encarceramento humano, a testagem de novas drogas e tratamentos em populações vulneráveis, a interferência nas eleições de outros países, etc.). Uma seta aponta para a extração de recursos do planeta para a casa; uma outra mostra a casa despejando seu esgoto e água contaminada no planeta.
Figura 2: custos invisíveis
5. Andares
A terceira imagem complexifica as divisões dentro da casa e problematiza os desejos relacionados à promessa de mobilidade social para todos. O nível superior da casa é apresentado como o “norte-do-norte”: aqueles que acumularam mais riqueza e poder na casa e que asseguraram e estabilizaram sua posição como legítimos produtores de valor e como herdeiros da casa. No segundo nível, o “norte-do-sul” se dedica a subir os degraus da mobilidade social, esforçando-se para atingir o padrão estabelecido pelo “norte-do-norte”. O porão é o lugar do “sul-do-norte” onde as pessoas que foram exploradas e marginalizadas dentro da casa e que se desidentificam com as aspirações do segundo andar e do andar superior constroem sua comunidade. Fora da casa se encontra o” sul-do-sul”: aqueles que vivem sem as seguranças e certezas oferecidas pela casa e que subsidiam a existência da casa pagando o mais alto preço para sua manutenção e que lutam para proteger alternativas à vida dentro da casa.
Figura 3: Andares
6. Dano Estrutural
A quarta imagem mostra a casa rachando debaixo de um telhado danificado pela água que está desabando com o peso das crises sociais, ecológicas, econômicas e políticas, incluindo o crescimento insustentável, o consumo desenfreado, o excesso de mão-de-obra, as crises de saúde mental, a anulação da previdência social e de direitos. A imagem evoca as perguntas: devemos consertar a casa? Expandi-la? Construir outra casa? Ou criar outros tipos de abrigo? Em muitas conversas sobre essa imagem, tornou-se importante mencionar as diferenças entre diferentes telhados, incluindo o capitalismo industrial e diferentes tipos de socialismo. Essa mudança do capitalismo industrial para o capitalismo financeiro é extremamente importante nessa imagem uma vez que isso muda a fachada da modernidade com respeito ao papel do Estado.
Muitos críticos já ressaltaram que o Estado-nação moderno foi criado para proteger a propriedade privada (e seus donos). Eles argumentam que os direitos humanos e civis foram outorgados somente quando houve a convergência de interesses entre a proteção de pessoas e a proteção do capital, muitas vezes dentro do contexto da guerra fria (quando o capitalismo precisava ser visto como a melhor alternativa frente aos – também imperialistas – movimentos socialistas de Estado). Uma vez que esses movimentos não são mais tidos como uma ameaça ao capitalismo, a fachada não se faz mais necessária e as convergências são bem mais raras, o que provoca o cancelamento de direitos (trabalhistas, civis, humanos). Além disso, na forma industrial do capitalismo, os donos de fábricas eram conhecidos publicamente, estando muitas vezes diretamente envolvidos na gestão da produção, detendo um nível de responsabilidade pessoal, social e jurídica em relação à mão-de-obra e sendo considerados responsáveis pelo impacto de suas atividades no âmbito nacional. Com a deslegitimação das alternativas socialistas e as mudanças tecnológicas e estruturais do capitalismo globalizado, o capitalismo industrial se converteu no capitalismo financeiro de acionistas anônimos interessados simplesmente no retorno de seus investimentos. Essas mudanças estão ligadas à automação, à tecnologia da informação, à liberalização dos fluxos de comércio e capitais, à dívida normalizada, à especulação financeira, à expansão da cultura enraizada no desejo de consumo, entre outros fatores. Diferentemente do capitalismo industrial, o capitalismo financeiro é anônimo (sem obrigação de prestar contas), difundido (pessoas comuns também são – muitas vezes sem saber – acionistas já que os fundos de pensão, por exemplo, dependem de rendimentos financeiros) e unicamente focado na pressão de se maximizar os rendimentos dos acionistas (ou seja, lucro a curto prazo).
Figura 4: Custo estrutural
7. Raciocínio (Estampado)
A quinta imagem retrata como a casa determina as possibilidades de experienciarmos o mundo reduzindo o “ser” ao “saber” e a “vida” à “produção de significado”. Essa estrutura funciona como uma gramática que define o que é inteligível, legítimo, viável e desejável dentro da casa. A imagem do Boxhead, um ser com uma grande cabeça quadrada e com um corpo diminuto delineado (inacabado), tem os referentes que atribuem coerência ao projeto da modernidade estampados em sua cabeça: o sonho moderno de um progresso, desenvolvimento e evolução ininterruptos realizados pela ação humana através do uso de conhecimento objetivo para se controlar o meio ambiente e construir uma sociedade melhor.
O Boxhead ‘pensa, logo existe”: sua relação com o mundo é mediada por seu repertório cognitivo de significados ao invés de seus sentidos corporais. Cada referente permite uma certa forma de produzir significado ao mesmo tempo que desativa todas as outras formas, destarte limitando e amortecendo seu senso de realidade. O logocentrismo o obriga a acreditar que a realidade, em sua totalidade, pode ser descrita em linguagem. O universalismo o leva a entender sua interpretação da realidade como sendo objetiva e a projetá-la como a única visão de mundo legítima e valiosa. O raciocínio antropocêntrico o faz ver a si mesmo como separado da natureza e como tendo um mandato para gerenciá-la, explorá-la e controlá-la. O pensamento teleológico o faz querer planejar a construção de um futuro que ele já consegue imaginar. O pensamento dialético o prende numa lógica linear obcecada com consenso e resoluções e contrária a paradoxos, complexidades e contradições. O pensamento alocrônico e evolutivo o faz julgar outras pessoas com base num critério pelo qual ele é representado como estando no presente do tempo (linear), enquanto que os outros estão no passado, e pelo qual ele lidera a humanidade por um caminho único de evolução (como o ápice da civilização). Essa imagem sugere que o esboço do Boxhead pode ser interrompido por meio de forças sensuais/encarnadas e estéticas, tais como o erótico, o sobre-humano, o divino, o lúdico e o hilário.
Figura 5: Raciocínio estampado
8. Medos Explorados
A casa da modernidade está ligada a medos existenciais criados pelo alicerce da separabilidade e seu projeto de transcendência (da “natureza”). A separabilidade sustenta a casa: quando não somos mais percebidos como seres entrelaçados com a terra, uns com os outros e com o cosmo, e a terra se torna “recurso” ou “propriedade”, todos os outros corpos (incluindo os corpos humanos) precisam justificar sua existência produzindo valor em economias de valor predeterminadas. O projeto de transcendência da natureza pode assumir diferentes formas, mas ele é frequentemente caracterizado por uma aversão à morte, à dor e à perda, à superação da natureza/imperfeições/condições materiais/interdependência e ao controle de um caminho que possa assegurar o alcance de um ideal maior específico (que pode estar ligado ou não à noção de Deus), por exemplo: uma vida melhor, “grandeza”, soberania, civilização, progresso, desenvolvimento, evolução, etc., definidos de múltiplas maneiras. A casa construída pela modernidade cria e explora certos medos a fim de mobilizar nossa motivação para investirmos em sua reprodução e expansão. Esses medos se convertem em inseguranças existenciais ligadas à nossa vulnerabilidade, falta de autonomia e autoinsuficiência perante a morte, dor, “natureza” e o universo em geral. Nossos medos de escassez, demérito, miséria, vazio existencial, perda, dor, morte, impermanência, incompetência e insignificância são todos mobilizados nas modernas economias de produção de valor, nas quais o valor intrínseco da vida humana e não humana é negado. A criação e atrelamento de nossos medos através de economias afetivas, cognitivas, relacionais e materiais da modernidade traduzem-se em desejos compensatórios (coloniais) e prerrogativas de direitos adquiridos. Por exemplo, o medo da escassez se traduz no desejo da acumulação que, por sua vez, se manifesta como senso de direito adquirido a propriedade privada.
Se a terra em si é um metabolismo do qual fazemos parte, talvez o anseio fundamental que sentimos em relação ao vazio criado pela modernidade seja uma intencionalidade metabólica de religação, de cura e de recuperação da integridade do “todo” (de interrupção da separação). Porém, dentro da casa da modernidade, esse anseio fundamental é sequestrado por desejos projetados de seguranças, de prazeres através do consumo de sensações, relações, narrativas, experiências, promessas impraticáveis e ilusões.
9. Aos CUIDADOS da Terra (In Earth’s CARE)
A segunda cartografia social tem como base uma análise que pressupõe que a separabilidade (a tentativa de se negar o nosso entrelaçamento com a terra, com o cosmo e uns com os outros) é a raiz dos problemas que enfrentamos ao não conseguirmos imaginar uma existência fora da casa da modernidade. Nesse sentido, os desafios que enfrentamos não estão relacionados à falta de informação ou estratégia, mas a um hábito colonial de ser. Como resposta, a cartografia centraliza o trabalho invisibilizado da Terra a nos oferecer cuidado, nossas responsabilidades de reciprocidade como parte integrante de seu metabolismo e nosso dever de prestar contas às futuras gerações de seres humanos e não humanos. A analogia do micélio é usada com referência ao papel dos fungos na decomposição, regeneração, comunicação e distribuição dos nutrientes dentro dos sistemas ecológicos. Essa analogia também é usada para expressar que a justiça ecológica e econômica (cogumelos) não são viáveis sem a justiça cognitiva, afetiva e relacional (micélio saudável). Nós trabalhamos com noções transformadoras e regeneradoras (ao invés de liberais/representativas) da justiça transformadora vindoura.
Figura 5: Aos cuidados da Terra
Justiça ecológica é definida como “ação a partir da e rumo à saúde e bem-estar metabólicos” e justiça econômica é definida como “cooperação rumo ao equilíbrio (metabólico) sistêmico”. Abaixo da superfície, o micélio representa a justiça cognitiva, afetiva e relacional.
Justiça Cognitiva refere-se ao “estímulo de encontros de conhecimentos e ignorâncias e ao reajuste da nossa relação com a linguagem, com o significado e com o conhecimento (o conhecido, o desconhecido e o incognoscível)” – desaprendendo o legado da casa da modernidade estampado no nosso raciocínio (Boxhead).
Justiça Afetiva refere-se à “reconfiguração das nossas conexões neurobiológicas (neurogênese) com a digestão e transformação dos nossos traumas, medos, negações e contradições em adubo” – o confrontamento das nossas inseguranças e a realocação dos nossos desejos longe dos investimentos e vícios coloniais modernos.
Justiça Relacional refere-se ao “estabelecimento de relações para além do conhecimento, identidade e entendimento, e ao desempenho da política a partir de um espaço de entrelaçamento coletivo e de ternura radical” – a encarnação das condições existenciais da responsabilidade antes da vontade, pela qual a generosidade, a humildade e a compaixão não são empenhadas como escolhas intelectuais, mas como um hábito que leva ao surgimento de novas formas de política relacional.
O vento evoca a aspiração de se criar horizontes de esperança para além (do fim) da casa da modernidade e, especialmente, de seus conceitos liberais de justiça e direitos. A chuva representa lições aprendidas com as lutas raciais, de gênero, de classe, de pessoas queer, de portadores de deficiência e outras tantas lutas por reconhecimento, acesso, redistribuição e representação política dentro da casa, assim como aquelas aprendidas com os movimentos indígenas, anticoloniais e abolicionistas que sinalizaram para fora da casa.
Notas:
A proposta desse texto é fundamentalmente inspirada por cosmo-visões indígenas da América do Sul e do Norte que enfatizam a não separabilidade entre homem e (a dita) natureza. Somos gratos especialmente por visões compartilhadas por membros das comunidades de etnia Guarani (Wera Mirim), Pitaguary (Benicio Pitaguary), Fulnio (Fakho Fulnio), Blackfoot (Keith Chiefmoon), Cree (Cash Ahenakew), Quechua (Maria Jara), Nahuatl (Carmen Ramos), e Maori (Carl Mika), dentre outros colaboradores do projeto “Sinalizando rumo a futuros descolonizados”. Apesar do diagnóstico crítico dessa perspectiva ressoar com críticas socialistas ao capitalismo, as perspectivas indígenas que são base para este texto não são antropocêntricas, não entendem o processo histórico a partir do tempo linear e não se baseiam na produção econômica, divisão do trabalho ou prazer como centro de organização social.
[1] Tradução de Renato da Silva Pereira e Vanessa Andreotti.
Referências Biliográficas
- Andreotti, V., Stein, S., Sutherland, A., Pashby, K., Susa, R., & Amsler, S. (2018). Mobilising different conversations about global justice in education: toward alternative futures in uncertain times. Policy & Practice: A Development Education Review, 26, 9-41.
- Lorde, A. (1984). Sister outsider: Essays and speeches. Trumansburg, NY: Crossing Press.
- Stein, S., & Andreotti, V. D. O. (2017). Afterword: provisional pedagogies toward imagining global mobilities otherwise. Curriculum Inquiry, 47(1), 135-146.
- Sousa Santos, B. (2007). Beyond abyssal thinking: From global lines to ecologies of knowledges. Review (Fernand Braudel Center), 45-89.
- Stein, S., Hunt, D., Suša, R., & de Oliveira Andreotti, V. (2017). The educational challenge of unraveling the fantasies of ontological security. Diaspora, Indigenous, and Minority Education, 11(2), 69-79.