Alberto Melo[1]Nasceu em 1941 em Lisboa, onde se licenciou em Direito, tendo concluído em 1971 a pós-graduação em Educação de Adultos (EA), em Manchester. A sua vida profissional foi dedicada a este campo, … Continue a ler
Neste texto pretendo apresentar tendências actuais no que se refere ao reforço da participação activa dos cidadãos, tanto pela intervenção directa nos vários sectores da vida social, como em processos de decisão política. O objectivo central é o de procurar justificar e apontar para a necessidade urgente, e em especial no nosso país, de um enquadramento institucional e legal realmente propício à emergência e ao normal funcionamento das organizações de cidadãos com finalidades cívicas e solidárias. No meio da inquietação e da incerteza que se vivem à escala planetária, terá chegado o momento em Portugal, após quase 50 anos de construção democrática, de inscrever na agenda política um programa de reafirmação e renovação do nosso regime constitucional, introduzindo estruturas e práticas capazes de assegurar um maior e melhor equilíbrio entre as dimensões representativa e participativa da Democracia. Será esta, a meu ver, uma das vias mais importantes para se superar a actual indiferença, se não mesmo descrença e hostilidade, de um largo sector da população portuguesa perante a cena política e os seus actores.
Democracia e Cidadania
Desde finais do século XVIII que se assistiu a uma nova formulação do vínculo político, da relação entre pessoas e Estado, e se verificou uma significativa inflexão nos modos de construção do poder. Instituiu-se então o “colectivo de cidadãos”, como fonte de todo o poder político, considerando-se como única autoridade legítima a “que emana do povo”. No entanto, esse poder não se exerceu por vias de democracia directa, como fora possível outrora em sociedades de pequena dimensão (Atenas, nos séculos V e IV a.C., tinha entre 30.000 e 60.000 cidadãos), mas sim através de um processo representativo. Como nos lembrou Alain Bertho (“Contre l’Etat, la Politique”, Ed. La Dispute / SNEDIT, Paris, 1999), “a lógica do Estado afasta o povo em proveito de uma profissionalização do pessoal político”. Não há pois uma responsabilidade directa dos indivíduos, pois estes delegam o seu poder em representantes eleitos. As pessoas, de uma maneira geral, são desapossadas do exercício efectivo do poder a favor dos governantes, embora estes sejam – em regime democrático – escolhidos pela maioria dos votantes. Todavia, se aceitarmos que ser cidadão é, acima de tudo, ter acesso à decisão política, vemos quão efémera e precária é a condição de cidadão no eleitor contemporâneo, limitada ao instante de introdução de um voto na urna eleitoral.
No século XX, e mormente após 1945, vigorou nas sociedades democráticas um “Contrato Social” tacitamente aceite, mediante o qual os cidadãos se despojavam dos seus poderes políticos (e se desresponsabilizavam de muitos dos seus deveres cívicos) a favor de dirigentes e administradores profissionais, que por sua vez asseguravam e geriam um Estado Providência capaz de prover às necessidades básicas da população, em matéria de rendimento, saúde, educação, cultura, alojamento, segurança, etc. Este sistema, de social-democracia, assentou numa redistribuição da colecta fiscal, geralmente elevada, e no alargamento do sector público que, de forma algo paternalista, mas com relativa eficácia, garantia directamente os diferentes serviços sociais às populações enquanto geria igualmente um largo quinhão da economia de produção material e de serviços.
Após quase 50 anos de vigência, entrou em crise este sistema de organização político-social nos Estados mais prósperos. Assentara numa “aliança histórica” entre sindicatos, patronato e governos, mas à custa, acabou por reconhecer-se, tanto das populações do 3.º Mundo, cujos rendimentos relativos se tinham depreciado durante os chamados “trinta anos dourados” (1945-1975), como dos ecossistemas, que se iam degradando a olhos vistos. Tinha ainda reduzido a grande maioria da população a uma massa de “utentes” de serviços públicos, sobre os quais exerciam pouca ou nenhuma influência. E evoluíra, com o decurso dos anos e com a erosão dos valores cívicos no seio do funcionalismo público, para burocracias e tecnocracias cada vez mais ineficazes e ineficientes, senão mesmo corruptas, o que tornava intolerável a pesada carga fiscal e dificilmente aceitáveis certos protagonismos e monopólios do sector público. Esta situação acabou por abrir as portas, a partir de 1979/80, a um neoliberalismo fundamentalista, determinado a reduzir o Estado à “sua expressão mais simples”, no horizonte, às meras funções de Defesa e de Justiça, através da crescente privatização – para fins de criação e apropriação privada dos lucros – do anterior “espaço público” das sociedades modernas.
Neoliberalismo versus Cidadania
Reabilitam-se então velhas ideologias de que “o homem é o lobo do homem”, “a sociedade não existe” e o mundo é uma selva de competitividade onde, num processo de darwinismo social, vencerão os mais fortes. E, à regulação política, definida pela inteligência e pela vontade humanas, substitui-se o dispositivo do mercado, onde tudo é efeito de oferta e procura, onde tudo e todos passam a ter um preço, mas deixam de ter valor(es)… É o tempo do domínio quase absoluto da Economia (e, acima desta, o da Finança), traduzida em catecismo universal, onde passa a reinar o Mercado, praticamente sem restrições. Ora, o mercado é míope, no que se refere aos efeitos ambientais e a longo prazo das transacções a que dá lugar. E é implacável quanto às consequências sociais das suas operações. Não é, pois, de surpreender que, tanto as desigualdades socioeconómicas entre pessoas, grupos, regiões, países, continentes, se agravaram drasticamente nas últimas décadas, como se acelerou de forma dramática a degradação ambiental e se multiplicaram os desastres ditos naturais, incluindo as epidemias e pandemias.
Além disso, a afirmação de um mercado todo-poderoso e a entronização da economia como uma ciência exacta põem necessariamente em causa a democracia e a cidadania. De facto, se “les jeux sont faits”, se uma lei económica é tão inexorável como a da gravidade, se já atingimos “o fim da história”, para que servem a política e os políticos? E como é possível ser cidadão de um Estado que é servo dos mercados e dos potentados mundiais? Se o mercado e a sua “mão invisível” dominam toda a vida social, se tudo se transforma em mercadoria e se sujeita à lei da oferta e da procura, que margem de intervenção humana ainda resta para além da “escolha de consumidor”, da possibilidade (para alguns) de puxarem pelo porta-moedas? Será possível ser cidadão de um mercado?
É ainda de observar que a privatização do sector público não significou apenas a venda a particulares de acções de empresas públicas, mas também e talvez sobretudo a adopção gradual de uma lógica mercantilista por parte das próprias estruturas públicas. Desta forma, os governos contemporâneos tornaram-se rapidamente seguidores e propagandistas da ideologia neoliberal, enquanto operavam como simples gestores e avalistas das condições mais favoráveis à acumulação de lucros por parte das empresas privadas dominantes.
E as consequências reducionistas deste processo unidimensional vão ainda mais longe: o não-mercantil (valores sociais, culturais, estéticos) é excluído do quadro das decisões económicas, se não puder ser inteiramente absorvido pelo mercado; o longo-prazo (projecto de sociedade, preservação da biosfera, desenvolvimento justo e sustentável) é banido dos planos e programas, sempre baseados e motivados por perspectivas de lucro imediato, por calendários eleitorais ou por cálculos de obsolescência. A dimensão ética passa a estar “fora de moda” e é afastada dos parâmetros definidos e utilizados pelos decisores. Por fim, o “político” perde todo o seu sentido e esvazia-se de conteúdos, quando a classe política renuncia à sua missão de construir um futuro comum e de exprimir uma vontade colectivamente assumida e expressa e se deixa reduzir a funções de mera intendência.
Perante esta abdicação por parte dos poderes políticos, e os efeitos secundários que dela advém, como por exemplo o aumento em flecha dos exemplos mercenários e corruptos da actividade pública, não é surpresa que em todos os países democráticos se verifique uma acentuada quebra na participação em eleições e na adesão aos partidos políticos. Se o próprio Estado não cessa de reduzir a margem e o nível do “político”, da sua intervenção em prol do bem público… À medida que os políticos se vergavam perante os poderes financeiros e económicos, o seu descrédito só poderia aumentar, enquanto o cinismo e a anomia faziam a sua irrupção na cena social. E se o espaço público se não encontra hoje ainda mais reduzido, isso deve-se em grande parte à emergência e ao funcionamento de inúmeras e variadas organizações cívicas e solidárias (OSC) que conseguiram preservar o espaço público, “recriar Estado”, conceber e concretizar as necessárias intervenções e alargar assim a responsabilidade e a solidariedade sociais e ambientais a uma dimensão global, graças à multiplicação de micro-iniciativas, de acções concebidas e empreendidas, geralmente em pequena escala, por actores privados, mas tendo como finalidade o bem público.
As Organizações Cívicas e Solidárias
Como expressões concretas de resistência, simultaneamente, à ocupação monopolista do espaço público pelo poder político e à usurpação crescente desse espaço por empresas de finalidade lucrativa, têm surgido nos últimos anos múltiplas e variadas estruturas e iniciativas de cidadãos, para as quais se procura actualmente uma caracterização e denominação que as defina com rigor e as distinga das mais convencionais “mútuas, cooperativas, fundações e associações”, que tinham nascido sob inspiração dos princípios de entreajuda operária do século XIX: fala-se agora de “Novos Movimentos Sociais”, “Économie Solidaire”, “Voluntary and Community Sector”, “Organizações Cívicas e Solidárias”,…
Multiplicam-se hoje em dia estas formas de cidadania activa e, paralelamente, os autores e as obras que pretendem dar maior visibilidade e compreender a natureza e a extensão deste novo fenómeno social. Entre muitos outros, temos nomeadamente Boaventura Sousa Santos ou Liszt Vieira (“Cidadania e Globalização”, Editora Record, Rio de Janeiro e S. Paulo, 1999), este último proclamando que “os chamados novos movimentos sociais – ecológicos, feministas, de minorias, de consumidores, (…) – entidades e processos da sociedade civil, de carácter não-governamental, não mercantil, não corporativo, não partidário, podem assumir um papel estratégico quando se transformam em sujeitos políticos autónomos, levantando a bandeira da ética, da cidadania, da democracia e da busca de um novo padrão de desenvolvimento que não produza a exclusão social e a degradação ambiental”.
Trata-se, com efeito, de um fenómeno sem precedentes, dada a sua dimensão mundial: homens e mulheres unindo-se para a acção, visando melhorar a sociedade em que vivem, quer enfrentando o conjunto de problemas referentes ao espaço preciso onde residem, quer optando por intervenções especializadas e a escalas geográficas mais alargadas. Encontramo-nos agora muito longe da “revolução leninista”, pois estas organizações não se mobilizam para a conquista do poder, embora possamos falar de uma revolução no quotidiano e até de uma procura de conquista de poder, isto é, de um maior grau de influência sobre os acontecimentos e até sobre as políticas, as medidas e os planos que afectam, todos os dias, a vida de todos. As finalidades são, de facto, as mais variadas: para lutar por um desenvolvimento mais justo ou por um ambiente mais seguro, para ajudar a melhorar a qualidade de vida quotidiana, em especial dos mais carenciados, para libertar as capacidades de expressão artística ou elevar o nível de competências e de conhecimentos da maioria, para procurar dar voz aos mais esquecidos e oprimidos, para defender a vida e a dignidade de todos os seres, etc.
Afinidade na diversidade
A acção dos cidadãos é efectivamente multidimensional e estas iniciativas caracterizam-se por uma variedade extrema – locais ou globais, pequenas ou vastas, permanentes ou efémeras, espectaculares ou invisíveis, de confronto ou de cooperação, espontâneas ou organizadas, … – unindo-as, embora, alguns traços comuns fundamentais na sua identificação. Têm como objectivo central o assegurar um serviço de interesse geral, um “bem público”, que o Estado não pode (ou não quer) assumir e que o Mercado menospreza, por falta de rendibilidade. Correspondem à consciência de um dever de intervenção na sociedade: têm uma natureza cívica. Resultam da empatia sentida para com outros seres, da capacidade de ultrapassar os próprios “ids” e projectar as aspirações e necessidades de outrem: têm uma natureza solidária. Se é verdade que sempre existiu entre os seres humanos esta pulsão de ajudar os outros, o que haverá hoje de novo, de inédito, será a clara extensão desta solidariedade, desta responsabilidade individual, para dentro da esfera pública, e tratar-se de um fenómeno que hoje ocorre à escala planetária. Como será ainda algo de novo a tomada de consciência de que, neste empenhamento social, se trata, afinal e sempre, de “lutar por uma causa própria”, pois não se pode ser feliz em comunidades onde grassa uma imensa infelicidade, não se pode viver justamente numa sociedade assente na injustiça, não se pode ser “desenvolvido” ou “emancipado” num planeta onde existem múltiplas e extensas zonas de subdesenvolvimento e de povos ou grupos ainda oprimidos.
Perante o acumular de problemas a que as pessoas devem hoje fazer face, que se manifestam na sua vida quotidiana ou de que têm conhecimento através dos canais e redes informativos da “aldeia global”, levanta-se naturalmente, para cada “cluster” de problemas, um dilema estratégico crucial: ou fazer pressão e reivindicar, a título de “sindicalismo de utentes”, para que o Estado resolva, reforçando ou (re)construindo assim o “Estado Providência”; ou procurar resolver directamente, de forma colectiva e organizada, gerindo para isso uma parte do Orçamento de Estado, com relativa autonomia e recorrendo geralmente a parcerias operacionais com as instâncias públicas existentes, o que nos conduzirá à “Sociedade Providência.” Obviamente, e consoante as situações, será em certos casos mais conveniente a primeira opção, noutros a segunda, mas certamente em quase todas se deveria procurar construir uma combinação das duas abordagens, o que abrirá a via a uma democracia mais participativa, a uma cidadania mais interveniente e a uma administração mais relevante e eficaz.
1 | Nasceu em 1941 em Lisboa, onde se licenciou em Direito, tendo concluído em 1971 a pós-graduação em Educação de Adultos (EA), em Manchester. A sua vida profissional foi dedicada a este campo, com alternância em três sectores: Administração Pública – (Director-Geral de Educação Permanente, Conselheiro na Delegação Permanente junto da UNESCO, Coordenador do Grupo de Missão para o Desenvolvimento da EA; Ensino Superior – (Inglaterra, França e Portugal); Associativismo – In Loco, ANIMAR, APCEP (da qual é correntemente Presidente da Comissão Directiva). O autor recusa adoptar o Novo Acordo Ortográfico. |
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