Sandra Fernandes[1]Fundação Gonçalo da Silveira (FGS) , Teresa Paiva Couceiro[2]Fundação Gonçalo da Silveira (FGS)  , Ana Barbosa de Melo[3]Fundação Fé e Cooperação (FEC) , Hannah Danzinger[4]Fundação Fé e Cooperação (FEC)  , Manuel Martins[5]Fundação Fé e Cooperação (FEC)   , Ana Gaspar[6]Voluntariado Internacional para o Desenvolvimento Africano (VIDA) , Ana Margarida Vaz[7]Voluntariado Internacional para o Desenvolvimento Africano (VIDA)  , Patrícia Maridalho[8]Voluntariado Internacional para o Desenvolvimento Africano (VIDA)    & Marta Monteiro[9]Fundação Gonçalo da Silveira (FGS), Fundação Fé e Cooperação (FEC) e Voluntariado Internacional para o Desenvolvimento Africano (VIDA).

Introdução [10]Desafios e aprendizagens de uma experiência de trabalho conjunto entre 3 ONG portuguesas no âmbito do projeto de Ajuda Humanitária de Emergência Somos Moçambique. Outubro de 2022.

O Projeto Somos Moçambique constitui uma resposta concertada de um consórcio composto por três organizações da sociedade civil portuguesa (FEC| Fundação Fé e Cooperação, FGS| Fundação Gonçalo da Silveira e VIDA| Voluntariado Internacional para o Desenvolvimento Africano) iniciada em maio de 2019 com apoio financeiro do Camões – Instituto da Cooperação e da Língua, I.P. face ao evento climático que afetou a Beira com o ciclone tropical Idai e posteriormente com o Kenneth nesse mesmo ano.

Com a disponibilidade de fundos internacionais geridos nomeadamente pelo Camões – Instituto da Cooperação e da Língua, I.P., pelo Fundo Global Education cannot wait (ECW), pelo Fundo Global para a Educação em Emergência, os fundos bilaterais dos doadores internacionais, entre outros, várias intervenções na área da educação, saúde e reforço alimentar, foram apoiadas e implementadas nas províncias moçambicanas mais afetadas. Um dos projetos apoiados foi o projeto Somos Moçambique.

Este projeto dividiu-se em 2 momentos distintos: um primeiro designado de Somos Moçambique I (entre maio de 2019 e março de 2020) e um segundo sob o título Somos Moçambique II (entre fevereiro de 2020 e agosto de 2022). O Somos Moçambique I tinha uma forte componente de reabilitação e apetrecho das escolas que haviam sido identificadas na missão de diagnóstico: a Escola Primária Completa da Manga Mascarenhas (EPCMM) e a Escola Comunitária Santos Inocentes (ECSI). No âmbito deste projeto, foram identificadas uma série de necessidades e vulnerabilidades no sistema educativo que iam ao encontro do trabalho e experiência das organizações que compõem o Consórcio Somos Moçambique. Posteriormente, com o projeto Somos Moçambique II pretendeu-se reforçar a resiliência e autossuficiência das famílias do bairro Manga-Mascarenhas através da capacitação das estruturas de educação e do desenvolvimento individual e comunitário.

As atividades implementadas foram pensadas de forma a contribuir para uma comunidade mais resiliente e capacitada ao nível da educação, saúde e geração de rendimentos para fazer face a situações de vulnerabilidade futura, com espaços educativos reabilitados e equipados segundo critérios de resiliência propostos no Cluster de Educação da Beira.

Relativamente à sua origem, este trabalho nasce do desafio lançado pela entidade financiadora – Camões IP às 3 ONG para que trabalhassem em conjunto no seguimento do Ciclone Idai. Este pressuposto colaborativo de base constitui um fator identificador e diferenciador deste projeto relativamente a outros no que diz respeito ao trabalho realizado no âmbito da Ajuda Humanitária de Emergência e até da Cooperação para o Desenvolvimento.

É sobre este trabalho conjunto entre as 3 ONG que pretendemos deixar algumas reflexões, a partir do quadro conceptual trazido pela Educação para o Desenvolvimento e da Transformação Social e do pressuposto do trabalho colaborativo como condição essencial para a construção da paz, e que esperamos que possam ser úteis para outras organizações que queiram aprofundar caminho dentro do trabalho colaborativo entre organizações nacionais no âmbito da Ajuda Humanitária de Emergência e da Cooperação para o Desenvolvimento. Estas reflexões dizem respeito a duas vertentes: 1) às aprendizagens realizadas ao nível do trabalho colaborativo entre ONG da área do Desenvolvimento em projetos internacionais; 2) à reflexão que realizámos a partir das atividades desenvolvidas no projeto sob a lente da transformação social.

Trata-se de uma leitura que parte da visão das 3 organizações, procurando explorar a reflexão numa área que nos parece pouco aprofundada em Portugal que diz respeito à colaboração entre ONGD em projetos internacionais. Por esse motivo, o foco neste caso não está no projeto e nas suas atividades concretas, mas antes na forma como o consórcio trabalhou em conjunto neste projeto. No que diz respeito à vertente 2), seria, no entanto, interessante que em futuras abordagens fosse possível envolver o público do projeto e os parceiros locais na reflexão sobre em que medida o projeto contribuiu ou não para a transformação social como ferramenta importante para construção da paz. Trata-se de um primeiro passo nesta reflexão, que temos expetativa de no futuro poder explorar com outra profundidade.

Como surge este projeto?

A necessidade de resposta urgente a uma situação de emergência e a existência de ONGD portuguesas com trabalho prévio e experiência relevante em Moçambique esteve na base do desafio lançado pelo Camões IP às organizações para trabalharem em conjunto na resposta às necessidades decorrentes do Ciclone Idai. Foram identificadas as ONG com atuação em Moçambique e reunidas por áreas estratégicas e proximidades identitárias e de atuação.

O intuito seria o de beneficiar dos conhecimentos e redes que as organizações já tivessem no terreno, aumentando a eficácia da resposta, e potenciar um conjunto de fundos privados que o Camões IP conseguiu reunir para este efeito. Este apelo ao trabalho conjunto às organizações motivou também um esforço de recolha de fundos pelas organizações parceiras, que foi essencial para que o projeto pudesse financiar aquilo a que se tinha proposto, potenciando a ação.

Havia por isso um conjunto de expetativas do financiador em relação ao trabalho concertado entre organizações, mas também das ONG e, obviamente, por parte dos beneficiários a que este trabalho conjunto deveria dar resposta.

1. Trabalhar de forma colaborativa na área da Ajuda Humanitária de Emergência e na Cooperação para o Desenvolvimento: aprendizagens realizadas

O projeto Somos Moçambique estava estruturado de modo a que todas as organizações envolvidas tivessem um foco de trabalho específico dividido nas áreas da Educação, Saúde e geração de rendimentos. FEC e FGS tiveram a seu cargo o setor da Educação e a VIDA os setores da saúde e geração de rendimentos. A articulação entre 3 organizações com diferentes formas de trabalhar foi um dos principais desafios que tivemos de ir depurando ao longo de todo o processo. Este desafio materializou-se a 3 níveis:

1) Ao nível da realização das atividades na Beira;

2) Ao nível da articulação entre pontos focais e de gestão das 3 organizações;

3) Ao nível da articulação na área da comunicação e financeira das 3 organizações.

1) Ao nível da realização das atividades na Beira

A equipa técnica responsável pela implementação do projeto e presente na Beira representava as 3 organizações e as suas diferentes formas de proceder, pelo que a flexibilidade e capacidade de adaptação da equipa na Beira, e em especial da gestora de projeto, foi fundamental para que o projeto pudesse caminhar no sentido de se constituir enquanto ação una estruturada e não 3 ações desagregadas. Uma necessidade de tripla articulação que se torna exigente para a gestora de projeto e que implica, da parte das organizações promotoras, um cuidado redobrado de modo a evitar sobrecarga de trabalho e gestão de informação. Os espaços de gestão e coordenação entre os pontos focais das organizações são essenciais para isso e devem ter como preocupação transversal e intencional o acompanhamento e garantia do “bem-estar” da equipa de gestão no projeto no terreno face aos vários interlocutores.

2) Ao nível da articulação entre pontos focais e de gestão das 3 organizações

O espaço de articulação entre os pontos focais e de gestão das 3 organizações foi fundamental para a boa concretização do projeto, tendo sido essencial que esta articulação se tenha materializado num espírito de partilha crítico, construtivo, fraterno e respeitador de todas as organizações que integram o consórcio, bem como na preocupação em promover de forma conjunta a avaliação conjunta de estratégias do projeto.

Não só constituiu um contexto importante de partilha e discussão das atividades lideradas por cada uma das organizações, como também se revelou um espaço importante para gestão de tensões e diferentes ideias e formas de olhar e concretizar o projeto. Esta abordagem permitiu dar unidade ao projeto e tornar cada organização parte integrante das componentes das outras organizações.

Criar intencionalmente estes espaços de diálogo no projeto co-promovidos por mais do que uma organização constitui por isso, e da nossa perspetiva, uma estratégia-chave na gestão e concretização colaborativa de projetos conjuntos e partilhados, onde exista efetivamente uma co-liderança e não apenas o foco na organização que se constitui enquanto líder formal do consórcio. Neste consórcio houve o esforço de dar corpo a essa co-liderança, avaliando-se que teria sido benéfico para o próprio projeto e para as organizações, um ainda maior aprofundamento e multiplicação dos espaços de partilha.

Em projetos futuros será, por isso, importante criar momentos regulares de discussão a nível institucional e técnico, mas também instrumentos que permitam apoiar essa partilha, como instrumentos de planificação, de partilha sistemática de informação e de avaliação. Consideramos que seria benéfico investir logo desde início na identificação dos riscos do trabalho conjunto do consórcio, evitando assim problemas de comunicação, articulação e coordenação entre as organizações do consórcio. O espaço de diálogo e articulação entre pontos focais e de gestão das organizações deverá ainda privilegiar o cuidado com a gestão de informação e acompanhamento da equipa no terreno, garantindo a comunicação fluída e articulada com os elementos da equipa responsáveis pela implementação do projeto em representação das organizações.

Neste espaço de co-liderança, deve, no entanto, salientar-se o papel da organização líder formal do consórcio que deverá ter a preocupação em garantir esse espaço de co-promoção, de definir em conjunto com o consórcio as regras e circuitos de comunicação e decisão, o papel das equipas e de acompanhar e promover a partilha entre as organizações, bem como a gestão mais geral do projeto.

Finalmente, é pertinente investir na sistematização periódica da informação e das decisões e em avaliações regulares do trabalho do consórcio, refletindo, não apenas sobre as atividades, mas também sobre a própria lógica do projeto e os intuitos de transformação social que nos movem. Foi esta ambição que nos fez desenvolver uma linha de reflexão paralela a todo o trabalho na Beira que dissesse respeito à meta reflexão sobre o trabalho desenvolvido, avaliando e debatendo o seu sentido e pertinência, que abordaremos mais à frente. Esta linha de reflexão corresponde a uma das atividades do projeto (“Atividade de sistematização do percurso e aprendizagens resultantes do projeto”) submetida em sede de candidatura, o que permite demonstrar a importância que o consórcio lhe atribuiu desde o início.

3) Ao nível da articulação na área da área da comunicação e financeira das 3 organizações

Para além dos dois pontos anteriores, também as áreas da comunicação e gestão orçamental e financeira exigiram naturalmente uma articulação permanente. No caso da comunicação, houve um esforço de juntar as 3 pessoas responsáveis pela comunicação nas 3 organizações logo no início do projeto, de modo a articularem e comunicarem de forma concertada os desenvolvimentos do projeto. Este esforço exigiu um trabalho de equipa que posteriormente permitiu responder em coletivo em nome do projeto Somos Moçambique ao desafio trazido pelo Camões IP no que se refere à disseminação do trabalho e resultados de todos os consórcios selecionados para intervenção na Beira na sequência do Ciclone Idai. A equipa de comunicação foi a que mais rapidamente e facilmente conseguiu efetivar uma lógica de trabalho colaborativo entre as 3 ONGD, mas a sobrecarga de trabalho sobre as equipas de comunicação de cada organização fizeram com que este trabalho tenha ficado aquém do pretendido no final. Acabou por ficar apenas uma das organizações como responsável central e operacional pela comunicação do projeto, ao contrário do inicialmente previsto, o que fragilizou a sua disseminação.

No que diz respeito à gestão geral do projeto, para além da gestão relativa às atividades específicas de cada organização, houve um esforço de debate e discussão coletivo relativamente aos ajustes que foram sendo necessários realizar e que teve lugar também nos espaços de articulação entre os pontos focais e de gestão das 3 organizações. Apesar deste esforço, notamos como relevante para futuro a ideia de criar grupos transversais nestas duas áreas com comunicação regular, que permita aprofundar o sentido de unidade das organizações em relação ao projeto.

Para além das 3 dimensões anteriores, destacamos ainda uma dimensão transversal, com aspetos que nos parecem relevantes de evidenciar relativamente ao processo de colaboração neste projeto:

Em primeiro lugar, gostaríamos de destacar a importância do interconhecimento e de tecer laços de confiança entre as organizações para uma comunicação aberta e verdadeira, de modo a que o trabalho desenvolvido possa ser realizado com confiança recíproca (que constitui a chave nos processos colaborativos). Consideramos que o desafio de trabalho conjunto lançado, neste caso, pelo Camões IP às organizações faz todo o sentido, mas é importante salientar que a sua mera junção sem conhecimento prévio e aprofundamento da relação pode ser contraproducente para o próprio projeto. Nesse sentido, é importante que exista uma fase de interconhecimento que seja intencionalmente alimentada, quer pelo financiador, quer por iniciativa das próprias organizações. Esta fase de interconhecimento e relação parece-nos essencial enquanto metodologia de “construção de paz” nos processos nos quais estamos envolvidos. Neste caso, e a partir da experiência deste projeto, também nos parece que a junção de “organizações likeminded”, ou seja, com valores de base semelhantes poderá facilitar o processo de trabalho conjunto, não sendo esse um fator inequívoco de viabilidade ou de sucesso.

Terá de estar bem consciente para todos os intervenientes que o desenvolvimento de um projeto em consórcio tem características diferentes de outro que seja desenvolvido de forma individual. Essa opção tem implicações no desenho e desenvolvimento do projeto. Nesta medida, faz também sentido parar para identificar e discutir as mais valias de cada organização do consórcio e refletir sobre como podem ser potenciadas ao longo do projeto.

Em segundo lugar, e como já referimos anteriormente, as organizações têm modus operandi diferentes (quer na implementação, quer na monitorização de projetos), o que significa que poderá existir algum “choque” ou “tensão” no momento da implementação das atividades. É, pois, necessário que exista um esforço conjunto de cedências de parte a parte e a definição clara do objetivo e estratégias comuns pelas quais se irá optar. Este passo é fundamental, de modo a não alimentar constrangimentos e relações tensas dentro do consórcio, mas antes tirar partido da sua riqueza e diversidade, promovendo relações construtoras de paz e não o seu contrário.

Da parte das organizações, vale também a pena parar para refletir antes do início do projeto sobre qual a grande mais-valia de um trabalho cooperativo? O que é que se ganha em ter ONGD portuguesas a trabalhar em conjunto para além dos parceiros locais? Até que ponto o conseguimos fazer? E qual o impacto deste formato de trabalho nos beneficiários do projeto e nas organizações envolvidas.

Da parte do financiador, destacamos como relevante o papel assumido pelo Camões IP neste processo na mobilização de fundos com origem noutros atores que que podem reforçar o trabalho na área da Ajuda Humanitária de Emergência e Cooperação para o Desenvolvimento. Questionamos se não poderá ser também papel do financiador o de refletir sobre como incentivar verdadeiramente o trabalho em consórcio e o seu potencial em termos de impacto, e se essa opção poderá ou não ser uma prioridade na aplicação dos valores orçamentais disponíveis, uma vez que os fundos necessários para um projeto em consórcio, implicam necessariamente/ou na sua maioria das vezes maior volume de recursos humanos e financeiros. O financiador poderá por isso ter um papel de promoção de trabalho conjunto, de gestão e de financiador, acompanhando de perto o projeto.

Trabalho colaborativo entre organizações na área da Cooperação para o Desenvolvimento?

Lições aprendidas a partir de uma prática[11]A ordem das aprendizagens aqui apresentadas não se encontra listada por ordem de importância.:

1. Ao iniciar o projeto:

a) Garantir que as equipas de comunicação articulam a divulgação das atividades de uma forma coerente e concertada, não só no início, mas também no desenvolvimento e fim do projeto.

b) Garantir que a organização líder do consórcio se revê e promoverá o formato de co-liderança. Para tal deverão, desde logo, ser definidas em conjunto as regras e circuitos de comunicação e decisão, bem como, o papel das equipas.

c) Clarificar entre as organizações do consórcio os espaços de gestão e coordenação de cada uma.

d) Identificar e discutir as mais valias de cada organização do consórcio e refletir sobre como podem ser potenciadas ao longo do projeto.

e) Parar para refletir antes do início do projeto sobre o que é que se ganha em ter ONGD portuguesas a trabalhar em conjunto para além dos parceiros locais. Refletir sobre até que ponto é possível fazê-lo e analisar o impacto deste formato de trabalho nos beneficiários do projeto e nas organizações envolvidas.

2. Durante o projeto:

a) Garantir que a gestora/gestor de projeto tem flexibilidade e capacidade de articulação para o diálogo entre diferentes organizações, que, ao mesmo tempo, representa.

b) Criar momentos regulares de discussão a nível institucional e técnico, mas também instrumentos que permitam apoiar essa partilha, como instrumentos de planificação, de partilha sistemática de informação e de avaliação.

c) Criar grupos transversais às organizações do consórcio nas áreas da gestão do projeto, comunicação e financeira, de modo a que seja possível assegurar a unidade das organizações em relação ao projeto.

d) Investir na sistematização periódica da informação e das decisões e em avaliações regulares do trabalho do consórcio, refletindo, não apenas sobre as atividades, mas também sobre a própria lógica do projeto e os intuitos de transformação social que o movem.

e) Promover espaços de interconhecimento e de partilha que permitam tecer laços de confiança entre as organizações para uma comunicação aberta e verdadeira, de modo a que o trabalho desenvolvido possa ser realizado com confiança recíproca.

f) Analisar os resultados e processos desenvolvidos pelo consórcio, apresentar as conclusões e conquistas aos beneficiários e parceiros, sistematizar as avaliações relativas aos conteúdos do projeto e à metodologia e instrumentos utilizados, promovendo assim a melhoria progressiva das práticas.

g) Planear com antecedência a fase final do projeto, a nível técnico e financeiro, em conjunto, para melhor integração das diferentes componentes do projeto e potenciação das sinergias.

Tabela 1 – Trabalho colaborativo entre organizações na área da Cooperação para o Desenvolvimento? Lições aprendidas a partir de uma prática.

2. Olhar o trabalho em Ajuda Humanitária de Emergência e Cooperação para o Desenvolvimento pela lente da transformação social

Como referimos previamente, o projeto investiu também intencionalmente na reflexão e discussão das atividades desenvolvidas numa perspetiva da Educação para o Desenvolvimento e da Transformação Social. Para tal, socorremo-nos de algumas ferramentas já desenvolvidas por um dos membros do consórcio noutros projetos[12]Reflexão realizada a partir das 4 dimensões identificadas no Estudo Exploratório – Iniciativas de Educação para a Cidadania Global em meio escolar (2018), disponível em … Continue a ler e procedeu-se a uma avaliação das atividades sob 4 perspetivas:

  1. Perspetiva política
  2. Perspetiva colaborativa
  3. Perspetiva pedagógica
  4. Perspetiva ética

O nosso objetivo foi refletir sobre de que modo: 1) a nossa intervenção permitiu desenvolver e potenciar, a nível individual e coletivo, um olhar informado e crítico para uma postura ativa e transformadora das causas estruturais das situações de injustiça e desigualdade existentes no mundo, a nível local e global (dimensão política); 2) a nossa intervenção se constituiu enquanto processo dialógico, construído de forma conjunta e colaborativa com as pessoas envolvidas no projeto (dimensão colaborativa); 3) a nossa intervenção recorreu a processos de aprendizagem e criadores e críticos que partissem da realidade quotidiana das pessoas, nos quais as metodologias e abordagens utilizadas são coerentes com uma aprendizagem que se pretende transformadora (dimensão pedagógica); 4) e a nossa intervenção procurou trabalhar a partir de princípios e valores como a justiça social, a equidade e o Bem Comum (dimensão ética). Este Bem Comum é na verdade o objetivo que nos move enquanto ONGD no trabalho desenvolvido no âmbito da Ajuda Humanitária de Emergência e da Cooperação para o Desenvolvimento e parece-nos um elemento fundamental quando falamos de uma construção da paz que não seja apenas a ausência de guerra bélica. É para esse Bem Comum e Paz que trabalhamos e é por isso que se revelou tão importante para nós parar para refletir em conjunto sobre este aspeto. Tratou-se de um primeiro passo e abordagem, uma vez que consistiu de um exercício realizado apenas pelas organizações do consórcio. No futuro, seria de extrema relevância efetuá-lo com o público com quem fomos trabalhando ao longo destes anos na Beira. Apesar de naturalmente parcial, não deixa de constituir um exercício válido e um ponto de partida para futuras reflexões. Partilhamos abaixo as principais conclusões desse exercício a partir do caso e de exemplos concretos do projeto Somos Moçambique:

1. Política

Como chave de leitura desta esfera, colocámo-nos a questão: “De que modo potenciámos, a nível individual e coletivo, um olhar informado e crítico para uma postura ativa e transformadora das causas estruturais das situações/problemas existentes no contexto?”

A questão política é sempre uma das dimensões mais delicadas de tratar. Confunde-se com frequência o político com partidário e subvaloriza-se a importância e papel que as pessoas concretas e as organizações têm ao nível do seu papel político. Neste projeto procurou-se aprofundar o nível do “ser político” das pessoas com quem fomos trabalhando, mas também das instituições e poderes local. Na verdade, a intervenção implicou o envolvimento intencional de entidades e autoridades públicas a nível local, que tinha por fim promover um sentido de pertença em relação ao trabalho que desenvolvemos, mas também influenciar políticas a partir dos resultados das práticas do próprio projeto. Um exemplo disso foi o envolvimento do Conselho Municipal da Beira. Para além das entidades públicas, foram chamados a tomar parte no processo de identificação famílias/beneficiários(as)/participantes o projeto os/as líderes e sublíderes dos bairros, que têm uma enorme relevância no que diz respeito à influência na comunidade que permita conduzir à transformação de problemas estruturais.

No que diz respeito aos efeitos das atividades específicas realizadas, no setor da geração de rendimentos, a partir da formação em construção resiliente e agroecologia, foram empoderadas as pessoas participantes também na temática do trabalho associativo, o que conduziu a uma transformação estrutural ainda em tempo de vida do projeto: a constituição de uma associação comunitária na área na qual receberam formação, por iniciativa dos formandos e de forma autónoma e independente do projeto.

No que se refere ao eixo da educação, o facto das formações com os atores escolares terem sempre envolvido, não só professores/as, mas também Direções, permitiu que, por um lado, as Direções se tornassem sensíveis às temáticas abordadas e passassem a considerar relevante a transformação da escola e que, por outro, os/as professores/as fossem capacitados/as. Este investimento permitiu que surgissem transformações na utilização do espaço exterior da escola, nos jardins e machambas escolares para as crianças e nas rotinas das escolas.

A própria estruturação da formação transversal partiu de um olhar crítico da realidade e assentou num diagnóstico realizado pelos próprios professores/as. A construção conjunta de um manual para professores/as e a promoção de atividades de intercâmbio e partilha conferiram autoconfiança e autovalorização aos/às professores/as, ao seu trabalho e às suas escolas de pertença. Este processo integrado de capacitação permitiu promover o empoderamento dos/as professores/as, de modo a se sentirem com maior legitimidade para dialogar e propor sugestões a partir das suas ideias.

Outro aspeto ainda relacionado com o âmbito escolar, tem a ver com o facto de atualmente a escola já ser considerada uma referência para o conjunto das escolas circundantes, o que poderá potenciar efeitos multiplicadores noutros contextos escolares. Finalmente, o próprio facto do consórcio ter procurado produzir e entregar a autoridades locais e parceiros do setor documentos com resultados que permitam influenciar políticas públicas ao nível escolar constitui um resultado significativo ao nível da dimensão política que o projeto também assumiu.

2. Colaborativa

Como chave de leitura desta esfera, colocámo-nos a questão: “de que modo promovemos processos dialógicos, construídos de forma conjunta e colaborativa?”

Consideramos que quando colocamos as pessoas que não se conhecem a trabalhar em conjunto e com um objetivo comum são criados laços de confiança que lhes permitem aspirar a trabalhar em conjunto, fomentando relações sociais mais justas, democráticas e humanas. Esta promoção do encontro e do trabalho em conjunto foi algo intencionalmente desenvolvido no projeto. Estabeleceram-se parcerias e dividiram-se responsabilidades nas atividades desenvolvidas no âmbito da educação, saúde e geração de rendimentos. A comunidade foi envolvida, bem como os parceiros, na preparação e desenvolvimento das atividades do projeto. Para além disso, existiu uma colaboração ativa com os líderes comunitários e partidários, o Conselho Escolar, com as Direção(ões) Distrital(ais) de Educação e Saúde e parceiros locais com os quais foram desenvolvidas atividades específicas e relevantes do projeto com metodologias participadas de implementação.

Finalmente, o próprio facto de termos enveredado pela apresentação de uma proposta conjunta ao Camões IP potenciou, como vimos no ponto anterior, um trabalho conjunto entre 3 ONG portuguesas que se materializou depois também ao longo de todo o projeto.

3. Pedagógica

Como chave de leitura desta esfera, colocámo-nos a questão: “de que modo fomentámos processos educativos criadores e críticos que partem da realidade quotidiana dos aprendentes, nos quais as metodologias e abordagens utilizadas são coerentes com uma aprendizagem que se pretende transformadora?”

Ao nível pedagógico, as metodologias e abordagens utilizadas foram muito diversificadas. No caso das formações, por exemplo, o ponto de partida foi exatamente as capacidades das pessoas e do coletivo, tentando promover, aprofundar e criar conhecimento em conjunto. Todos os passos foram acompanhados pelos atores envolvidos, o que contribuiu para um sentido de apropriação que foi sendo desenvolvido com o projeto. Para isso, nos processos de aprendizagem desenvolvidos, recorreu-se a diferentes tipos de linguagens como ferramenta pedagógica para chegar ao maior número possível de pessoas e não restringir a aprendizagem a um grupo restrito. Abordagens como ações práticas e participativas, teatro, criação de espaços de convívio e de partilha, acompanhamento próximo nos processos de supervisão foram extremamente importantes no processo de aprendizagem. Podemos mesmo afirmar que em alguns momentos, mais do que os conteúdos da formação, o mais importante na aprendizagem foi o acompanhamento próximo e personalizado. Este tipo de metodologias permitiu construir e estreitar as relações de confiança e de trabalho conjunto, essenciais para o desenvolvimento do projeto.

Outra opção pedagógica que tomámos foi a da realização de alguns momentos nos quais os diferentes públicos pudessem estar “misturados”, nomeadamente professores/as, diretores/as, conselho escolar, técnicos de saúde, etc. Esta abordagem permitiu promover a horizontalidade e a troca de experiências a partir de diferentes temáticas e perspetivas.

Ao nível conceptual, esta dimensão pedagógica foi trabalhada ao promovermos uma perspetiva crítica a partir das realidades/da experiência das pessoas da Beira com que estávamos a trabalhar (como é o caso das questões climáticas).

Finalmente, a dimensão pedagógica foi também trabalhada em espaços de aprendizagem informal, como são o caso as conversas com as famílias, fora dos tempos de formação e reuniões.

4. Ética

Como chave de leitura desta esfera, colocámo-nos a questão: “de que modo promovemos princípios e valores basilares, como a justiça social, a equidade e o Bem Comum?

Como referimos logo de início, o nosso objetivo enquanto organizações que trabalham na área do desenvolvimento foca-se no Bem Comum e bem-estar comunitário nomeadamente das pessoas com quem trabalhamos nas diferentes geografias.

Por isso, estes temas foram diretamente introduzidos na formação ao nível da formação de professores/as, trazendo para a discussão as questões da igualdade entre homens e mulheres, do ambiente, direitos humanos, direitos das crianças e participação, que vão ao encontro dos princípios éticos de justiça social, equidade e Bem Comum. Nestes espaços formativos dentro da escola, houve também a preocupação e cuidado em fomentar a relação professor/a – aluno/a, que permite trabalhar ou dar alguns primeiros passos para a horizontalidade das relações, que, uma vez mais, conduzem aos princípios éticos de Bem comum, equidade e solidariedade que nos norteiam. Na verdade, consideramos que quando colocamos as pessoas que não se conhecem a trabalhar em conjunto e com um objetivo comum são criados laços de confiança para quererem trabalhar no futuro em conjunto, fomentando relações sociais mais justas, democráticas e humanas. Essa opção é um passo fundamental quando falamos de Bem Comum e de construção da paz.

Trabalhar princípios de Justiça Social é fundamental, mas para isso é necessário existir um cuidado de base e coerência entre forma e conteúdo. Nessa medida, da nossa perspetiva a preocupação simultânea em criarmos um espaço escolar digno com condições e que permita uma aprendizagem segura, inclusiva, em contacto com a natureza, inserido na comunidade, e que se norteie pelos princípios climate smart (como é o caso do aproveitamento de águas) foi algo essencial. A reconstrução da Escola Pública Completa da Manga Mascarenhas foi, neste caso, um trabalho simultâneo entre princípios teóricos e a criação das condições práticas para que esses princípios possam ser experimentados e potenciados.

Estes princípios foram também desenvolvidos com a promoção da relação das pessoas com o espaço escolar. As metodologias participativas utilizadas permitiram promover um sentido de apropriação por parte das pessoas envolvidas, de modo a que criassem uma relação de cuidado com o espaço da escola. O lema “escola limpa, linda e organizada” passou a materializar a preocupação dos atores no cuidado com o espaço, agora sentido como espaço comum e comunitário, e no envolvimento de todas as pessoas nesse trabalho. Para além do espaço escolar, também no trabalho comunitário e na vertente agroecológica foram encontradas formas de proceder que promovessem valores de Justiça Social e de Bem Comum, associados ao respeito pela natureza, ecossistemas e biodiversidade na produção alimentar. Por outro lado, na vertente da construção resiliente, destaca-se a opção de que o resultado final das “aulas práticas” consistisse na construção de uma nova habitação resiliente para uma família identificada entre as mais necessitadas do Bairro da Manga Mascarenhas, contribuindo diretamente para reduzir a situação de vulnerabilidade extrema desta família. Ambas as ações promoveram na comunidade (famílias e entidades) abrangida pela ação um movimento de apoio e solidariedade inequívocos.

Finalmente, resta-nos destacar que a opção intencional neste projeto por soluções locais e não internacionais também contribuiu, a nosso ver, para o trabalho nestes princípios de justiça social que norteiam o projeto, uma vez que permitem responder e garantir princípios de sustentabilidade ambiental, social e económica fundamentais para o Bem Comum e para a Justiça Social.

Conclusão

Colocar ONG da área do Desenvolvimento a trabalhar efetivamente em conjunto em projetos internacionais continua a constituir um verdadeiro desafio. Trata-se de um espaço de diálogo e de cooperação que consideramos ainda pouco comum no panorama português, mas cada vez mais necessário, sobretudo se nos detivermos no tema da construção da paz, não apenas enquanto ausência de guerra beligerante, mas como um processo de construção permanente baseado no respeito e valorização da diversidade. Este processo de valorização ganha sempre que se promove o trabalho conjunto e colaborativo entre diferentes atores. A construção da Paz passa por isso também pela capacidade que as organizações vão desenvolvendo em trabalhar em conjunto, compreendendo e respeitando os seus diferentes modos de ver e proceder. Se as ONG que trabalham na área da Cooperação para o Desenvolvimento não conseguem trabalhar em conjunto, que testemunho deixam neste caminho da construção da paz?

O projeto Somos Moçambique constituiu um palco de experimentação desse trabalho colaborativo. No final deste percurso, no qual foram várias as dificuldades sentidas mas também as aprendizagens realizadas, continuamos a questionar-nos sobre como podemos melhorar os processos colaborativos entre ONG, de modo a potenciar e aprofundar trabalho entre organizações com vista a um fim comum.

Por outro lado, e tão importante como as intervenções realizadas, cremos que a meta-reflexão sobre os processos que desenvolvemos na área da Ajuda Humanitária de Emergência e da Cooperação para o Desenvolvimento, parando para refletir sobre o sentido e o rumo do nosso trabalho, é essencial na construção de sociedades mais justas, críticas e conscientes da necessidade de trabalhar globalmente para a transformação social com vista ao Bem Comum global e à própria construção da paz. Uma análise trazida pela Educação para o Desenvolvimento e que pode ser extremamente útil em processos de Ajuda Humanitária de Emergência e Cooperação para o Desenvolvimento. Neste documento propusemos e apresentámos essa reflexão em 4 categorias de análise: política, ética, pedagógica e colaborativa. Seria interessante que no futuro fosse possível fazer esta reflexão também com os públicos e parceiros locais com quem trabalhamos. Será um potencial passo seguinte neste processo de aprendizagem colaborativo na área do Desenvolvimento.

É esse o desafio que deixamos às organizações que aqui representamos, mas também a todas as outras que em Portugal desenvolvam trabalho no âmbito da Ajuda Humanitária de Emergência e Cooperação para o Desenvolvimento.

References
1 Fundação Gonçalo da Silveira (FGS)
2 Fundação Gonçalo da Silveira (FGS) 
3 Fundação Fé e Cooperação (FEC)
4 Fundação Fé e Cooperação (FEC) 
5 Fundação Fé e Cooperação (FEC)   
6 Voluntariado Internacional para o Desenvolvimento Africano (VIDA)
7 Voluntariado Internacional para o Desenvolvimento Africano (VIDA) 
8 Voluntariado Internacional para o Desenvolvimento Africano (VIDA)   
9 Fundação Gonçalo da Silveira (FGS), Fundação Fé e Cooperação (FEC) e Voluntariado Internacional para o Desenvolvimento Africano (VIDA).
10 Desafios e aprendizagens de uma experiência de trabalho conjunto entre 3 ONG portuguesas no âmbito do projeto de Ajuda Humanitária de Emergência Somos Moçambique. Outubro de 2022.
11 A ordem das aprendizagens aqui apresentadas não se encontra listada por ordem de importância.
12 Reflexão realizada a partir das 4 dimensões identificadas no Estudo Exploratório – Iniciativas de Educação para a Cidadania Global em meio escolar (2018), disponível em https://fgs.org.pt/pt/estudo-exploratorio-iniciativas-de-educacao-para-a-cidadania-global-em-meio-escolar/.
[1]Fundação Gonçalo da Silveira (FGS) , Teresa Paiva Couceiro[2]Fundação Gonçalo da Silveira (FGS)  , Ana Barbosa de Melo[3]Fundação Fé e Cooperação (FEC) , Hannah Danzinger[4]Fundação Fé e Cooperação (FEC)  , Manuel Martins[5]Fundação Fé e Cooperação (FEC)   , Ana Gaspar[6]Voluntariado Internacional para o Desenvolvimento Africano (VIDA) , Ana Margarida Vaz((Voluntariado Internacional para o" data-link="https://sinergiased.org/colaborar-e-refletir-como-estrategia-de-paz-e-de-transformacao-social/">

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References
1 Fundação Gonçalo da Silveira (FGS)
2 Fundação Gonçalo da Silveira (FGS) 
3 Fundação Fé e Cooperação (FEC)
4 Fundação Fé e Cooperação (FEC) 
5 Fundação Fé e Cooperação (FEC)   
6 Voluntariado Internacional para o Desenvolvimento Africano (VIDA)