Alexandre Martins1Eliana Madeira2 & Teresa Gonçalves3

Resumo: O presente artigo apresenta um trabalho colaborativo desenvolvido entre uma Instituição de Ensino Superior (ESE-IPVC) e duas Organizações da Sociedade Civil (AO NORTE e Graal) que teve a sua origem no contexto do projeto Sinergias ED. Este projeto tem como objetivo geral a promoção da capacitação em temáticas de Educação para o Desenvolvimento e da investigação associada. No âmbito deste trabalho colaborativo foi selecionado o tema igualdade de género que constituiu o foco para a elaboração e desenvolvimento de um módulo de aprendizagem dirigido a estudantes de formação inicial de docentes. Paralelamente foi realizada uma investigação adotando uma metodologia de investigação-ação que teve como objeto de análise todo o trabalho desenvolvido, focalizando-se mais na sua dimensão processual de colaboração. São apresentadas e discutidas as potencialidades e dificuldades do projeto colaborativo segundo três eixos de análise: (i) a dinâmica interpessoal de colaboração, (ii) a tensão entre pedagogias formais e informais e (iii) aprendizagem, conhecimento e autoconhecimento.

Palavras-chave: Trabalho colaborativo; Educação para o Desenvolvimento; Igualdade de género; Formação de professores; Literacia audiovisual.

Resumen: El presente artículo presenta un trabajo colaborativo desarrollado entre una Institución de Educación Superior (ESE-IPVC) y dos Organizaciones de la Sociedad Civil (AO NORTE y Graal) que tuvo su origen en el contexto del proyecto Sinergias ED. Este proyecto tiene como objetivo general la promoción de la capacitación en temáticas de Educación para el Desarrollo y de la investigación asociada a este tema. En el ámbito de esto trabajo colaborativo fue seleccionado el tema igualdad de género que constituyó el foco para la elaboración y desarrollo de un módulo de aprendizaje dirigido a estudiantes de la formación inicial de docentes. Paralelamente se realizó una investigación adoptando una metodología de investigación-acción que tuvo como objeto de análisis todo el trabajo desarrollado, enfocándose más en la dimensión del proceso de colaboración. Se presentan y discuten las potencialidades y dificultades del proyecto colaborativo según tres ejes de análisis: (i) la dinámica interpersonal de colaboración, (ii) la tensión entre pedagogías formales e informales y (iii) aprendizaje, conocimiento y autoconocimiento.

Palabras-clave: Trabajo Colaborativo; Educación para el Desarrollo; Igualdad de Género; Formación de Profesores; Alfabetización Audiovisual.

Abstract: This paper presents a collaborative work developed between a Higher Education Institution (ESE-IPVC) and two Civil Society Organizations (AO NORTE and Graal) that had its origin in the context of the project Sinergias ED. This project has as main goal the capacity building in Development Education themes and the promotion of the associated research. In the scope of this collaborative work, gender equality was selected as the focus for the development of a learning module for students of initial teacher education. At the same time, an investigation adopting an action-research methodology was carried out analyzing the whole project, focusing more specifically on its collaborative dimension.

The strengths and difficulties of the collaborative project are presented and discussed according to three axes of analysis: (i) the interpersonal dynamics of collaboration; (ii) the tension between formal and informal pedagogies; and (iii) learning, knowledge and self-knowledge.

Keywords: Collaborative Work; Development Education; Gender Equality; Teachers’ Training; Audiovisual Literacy.

Resumé: Cet article présente un travail collaboratif mis en oeuvre par une institution d’enseignement supérieur (ESE-IPCV) et deux organisations de la société civile (AO NORTE et Graal) dans le cadre du projet Sinergias ED. Ce projet a pour objectif général la promotion du renforcement des capacités en matière d’Éducation au Développement et de la recherche qui lui est associée. Dans ce cadre, le travail collaboratif s’est centré sur le thème de l’égalité de genre à partir duquel a été élaboré et développé un module pédagogique à destination des étudiants en formation initiale de professeurs. En parallèle, et en adoptant une méthodologie de recherche-action, une étude ayant pour objet d’analyse de tout le travail développé dans sa dimension collaborative a été réalisée. Les potentialités et difficultés du projet collaboratif sont présentées et discutées selon trois axes d’analyse: (i) la dynamique interpersonnelle de collaboration, (ii) la tension entre pédagogies formelles et informelles et (iii) l’apprentissage, la connaissance et la connaissance de soi.

Mots-clés: Travail collaboratif; Éducation au Développement; Égalité de Genre; Formation de professeurs; Alphabétisation audiovisuelle.

Alice: Would you tell me, please, which way I ought to go from here?

The Cheshire Cat: That depends a good deal on where you want to get to.

Alice: I don’t much care where.

The Cheshire Cat: Then it doesn’t much matter which way you go.

Alice: …So long as I get somewhere.

The Cheshire Cat: Oh, you’re sure to do that, if only you walk long enough.

  1. Introdução

Desenvolvido no âmbito da 2ª edição do projeto Sinergias ED: Fortalecer a ligação entre investigação e ação na Educação para o Desenvolvimento em Portugal (2016-18), o projeto que apresentamos neste texto partiu da vontade de explorar a dimensão de colaboração entre Instituições de Ensino Superior (IES) e Organizações da Sociedade Civil (OSC) no âmbito da Educação para o Desenvolvimento (ED). Isto é, na génese do projeto, a dimensão relativa ao “processo” era prevalecente, enquanto os “conteúdos” se encontravam formulados de uma maneira muito lata como pertencendo às temáticas ligadas à Educação para o Desenvolvimento. A perspetiva adotada era que a especificação do projeto deveria ser gerada dentro do próprio processo colaborativo. Encontrávamo-nos, pois, como Alice escutando o conselho do gato “se fizerem caminho suficiente, chegarão a um destino”.

Evidentemente, como assinalou Wenger (1998) a propósito das comunidades de aprendizagem, numa aprendizagem realizada em contexto social a “participação” não existe isoladamente e está necessariamente em interação com o “conteúdo”. Neste sentido, a construção de conhecimento em comunidades de aprendizagem caracteriza-se por um processo dual: por um lado, o envolvimento direto em atividades, diálogos, reflexões e outras formas de participação na vida social e, por outro lado, a produção de artefactos físicos ou conceptuais que constituem formas de reificação/materialização que refletem a experiência partilhada.

Partimos, pois, da construção de uma parceria, na qual se juntaram uma instituição escolar do ensino superior (ESE-IPVC) com formações de nível de licenciatura e mestrado nas áreas da educação, artes e envelhecimento e duas organizações da sociedade civil (AO NORTE e Graal) que desenvolvem projetos educativos, em contextos de educação não-formal, com objetivos de transformação social. O Graal tem desenvolvido diversas intervenções educativas nas áreas da cidadania e igualdade. Por seu lado, a AO NORTE tem estado envolvida em projetos de cooperação para o desenvolvimento na área do ensino, educação e cultura.

Previamente à constituição desta parceria no projeto Sinergias ED, existia já algum trabalho conjunto da IES com cada uma destas OSC.

Desde os primeiros encontros que levaram à constituição da parceria foi sendo construída uma visão partilhada sobre colaboração, na qual as diversidades foram valorizadas e constituíram-se como ponto de partida para a co-construção do projeto.

Para iniciarmos o “caminho” conjunto e definirmos um “destino”, partilhávamos um terreno comum que consistia na importância atribuída às temáticas de ED para a educação de cidadãos e cidadãs com pensamento reflexivo e crítico relativamente à complexidade e interdependência do mundo atual, que sejam pessoas ativas, participativas e agentes de transformação social, tal como tem sido reconhecida em documentos orientadores internacionais (e.g. Iniciativa Global pela Educação das Nações Unidas, 2012; Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, Nações Unidas, 2015; Repensar a educação: rumo a um bem comum mundial?, UNESCO, 2016) e nacionais (e.g. Estratégia Nacional de Educação para o Desenvolvimento, 2009; Conceito Estratégico da Cooperação Portuguesa 2014-2020, 2014; Referencial de Educação para o Desenvolvimento, 2016). Tínhamos também em comum a crença no poder transformador da educação e o reconhecimento de que os avanços na ED são tornados possíveis através de uma mudança no paradigma educativo tradicional e transmissivo. Partilhávamos ainda uma disponibilidade para o envolvimento num trabalho colaborativo e para enfrentar os múltiplos desafios que coloca enquanto processo recíproco, recursivo e reflexivo realizado através de partilha horizontal da experiência de aprendizagem, conhecimento e saberes no sentido de objetivo comum (Bevins & Price, 2014).

A exploração daquilo que nos aproximava e também da diversidade existente na parceria levou à co-construção do “conteúdo” do projeto: elaborar e desenvolver um módulo de educação no âmbito da igualdade de género, dirigido a estudantes do curso de Licenciatura em Educação Básica, explorando o cinema como recurso pedagógico. Para este projeto disponhamo-nos a partilhar saberes específicos, aprender, construir conhecimento e estabelecer a ligação entre conhecimento e uma intenção de ação educativa.

Neste artigo apresenta-se uma análise realizada pelos membros do trabalho colaborativo. O “nós” utilizado no texto é constituído pelas autoras e pelo autor do artigo que, em termos individuais e também da organização que representam no projeto, desenharam, desenvolveram e analisaram o projeto. Mantendo naturalmente a sua individualidade, e sem iludir as sempre presentes negociação de poder dentro do trabalho de equipa (Perrenoud, 1996) e gestão de tensões (Bowers, 2017), constituíram-se ao longo do projeto como um “investigador coletivo”, utilizando o conceito de Bataille (1981).

Como grupo temos uma história baseada em objetivos e conteúdos co-elaborados, interações sustentadas ao longo do tempo e paradigmas partilhados, condição que nos permite reconhecermo-nos como um “nós”. No entanto, revelou-se difícil contar essa história numa narrativa que respeitasse a sequência diacrónica dos acontecimentos. A investigação-ação, com o seu caráter interativo como traço distintivo, com constantes movimentos entre análise, ação e reflexão, pareceu-nos ser um dispositivo adequado para acompanhar e apresentar o trabalho desenvolvido.

Assim, a nossa narrativa apresenta-se subdividida em secções que não correspondem exatamente a etapas numa sequência temporal, antes foram caraterizadas por movimentos cíclicos entre análise, ação e reflexão.

2. O projeto

2.1. Metologia do estudo

Com o objetivo de produzir conhecimento baseado no desenvolvimento do projeto e de utilizar esse conhecimento com a finalidade de transformar a realidade social, foi realizada uma pesquisa que adotou uma metodologia de Investigação-Ação (IA). Esta metodologia foi adotada por constituir uma abordagem adequada para desenvolver e analisar estratégias de mudança em que os próprios objetivos e resultados decorrem do processo de interações entre participantes e para integrar a complexidade dos contextos reais e os resultados inesperados (Benavente, Costa & Machado, 1990).

Com efeito a IA assume-se como colocando no centro da investigação o seu contributo para a mudança e melhoria das práticas e dos contextos em investigação. Interpela, pois, os paradigmas dominantes nas ciências sociais e inscreve-se num paradigma de investigação socio-crítico que salienta a conceção ideológica e política da produção de conhecimento e questiona as suas finalidades e ética enquanto transformador da realidade social e emancipador dos atores sociais (Nunes, 2010).

No caso presente, poderemos caracterizar a abordagem adotada como partilhando o campo das modalidades de IA prática e de IA crítica (ver a este propósito Coutinho, Sousa, Dias, Bessa, Ferreira & Vieira, 2009) reconhecendo-se as suas finalidades não só de produção de conhecimento e de modificação da realidade, mas também os seus propósitos de transformação dos atores como referido anteriormente. Para tal, os participantes implicaram-se colaborativamente em cada uma das fases da pesquisa, o que exige uma comunicação em termos de igualdade e participação colaborativa no discurso teórico, prático e político (Latorre, 2008).

Trata-se, então, de uma posição muito próxima da práxis, da participação e da reflexão crítica que quisemos adotar como dispositivo de acompanhamento do trabalho desenvolvido. Constituindo um processo que acompanha um ciclo no qual se pretende transformar a prática pela alternância sistemática entre agir no campo da prática e investigar a partir/sobre ela, procurámos considerar e equilibrar a dupla vertente de compreensão e análise dos fenómenos em causa e de ação orientada para a mudança.

2.2. A construção da parceria – processo e motivações

ESE-IPVC

A área da ED encontra-se integrada no Plano Estratégico do Instituto Politécnico de Viana do Castelo (IPVC) e a sua Escola Superior de Educação (ESE-IPVC) tem um trabalho desenvolvido na área da Cooperação e Desenvolvimento desde a década de 90, que ganhou maior dinâmica com a criação do GEED (Gabinete de Estudos para a Educação e Desenvolvimento) em 2000; a partir de 2010, a ESE-IPVC envolveu-se num processo de capacitação institucional na área de ED que decorreu do processo de acompanhamento da Estratégia Nacional de Educação para o Desenvolvimento e, em 2011, as temáticas de ED foram integradas no currículo da Licenciatura em Educação Básica (Coelho, Mendes & Gonçalves, 2015; Gonçalves, Coelho & Dias, 2014).

No presente projeto envolvemos uma Unidade Curricular (UC) do 2º ano do plano de deste curso – intitulada “Aspetos psicopedagógicos da inclusão” – cujos objetivos se relacionam com a aquisição de conhecimentos e desenvolvimento de competências no campo da educação inclusiva. Nesta UC adota-se a perspetiva de escola inclusiva como aquela que acolhe e reflete a comunidade como um todo. O foco predominante tem sido o campo das necessidades educativas especiais, numa conceptualização interativa pessoa-contexto, tal como resulta dos desenvolvimentos deste conceito a partir do relatório Warnock produzido no Reino Unido em 1978 e, em especial, da declaração de Salamanca (UNESCO, 1994) e da agenda política mundial relativa à meta de Educação para Todos. Esta conceptualização abrange diferentes condições da pessoa, mas acentua o papel dos fatores contextuais, nomeadamente sociais, organizacionais e educacionais para a criação de situações de desigualdade (como as incapacidades resultantes de deficiência ou as desigualdades resultantes de pertença a grupos sociais, étnicos e culturais minoritários ou em desvantagem social e económica). Os grupos de estudantes são ainda estimulados a analisar criticamente o conceito de necessidades educativas especiais e pensar uma educação para todos que acolhe e se adequa à diversidade existente na sua comunidade. As questões associadas ao género têm sido abordadas como um dos aspetos da diversidade naturalmente existente na escola, não sendo tratadas como um tema específico.

Neste quadro identificámos como motivação para desenvolver o módulo sobre igualdade de género a vontade de dar uma maior relevância ao tema no currículo de formação dos estudantes.

AO NORTE

A AO NORTE – Associação de Produção e Animação Audiovisual foi fundada em Dezembro de 1994 e é uma associação sem fins lucrativos. Tem por fim a produção e a divulgação audiovisual, bem como a cooperação para o desenvolvimento na área do ensino, educação e cultura. Tem o estatuto de ONGD (Organização Não Governamental para o Desenvolvimento) e o de utilidade pública. Ao longo dos últimos anos, tem desenvolvido atividades junto das escolas, com o objetivo de permitir às crianças e jovens o contacto com um cinema de qualidade e com experiências práticas ligadas aos meios audiovisuais.

Estas ações assentam em três eixos fundamentais, que são contemplados no Currículo Nacional do Ensino Básico: Fruição – Contemplação; Produção – Criação e Reflexão – Interpretação, e têm como suporte a ideia-chave de educar para a imagem através do contacto participado de toda a comunidade escolar com o cinema e a linguagem audiovisual.

Neste trabalho com as escolas têm sido postas em prática propostas originais e diversificadas de aprendizagem que atravessam os vários níveis de ensino e promovem a literacia audiovisual, o sentido crítico, a capacidade de compreender, o saber fazer, pensar e refletir com as imagens.

Graal

O Graal é um movimento internacional de mulheres, de inspiração cristã, que tem como missão construir uma cultura de cuidado, contribuindo para que o mundo se torne um lugar onde haja justiça, paz e respeito por todos os seres vivos e pela própria Terra.

Foi fundado na Holanda em 1921, espalhou-se pelos cinco continentes e está atualmente ativo em 18 países. Em Portugal desde 1957, o Graal constituiu-se como Associação de Carácter Social e Cultural em 1977, que é, desde 1982, reconhecida como Pessoa Coletiva de Utilidade Pública.

Nos seus 60 anos de experiência de intervenção em Portugal, o Graal tem procurado proporcionar à sociedade portuguesa, e em particular às mulheres, contextos propícios à análise crítica e à mobilização no sentido da transformação social.

Respondendo a diferentes desafios sociais e éticos, nos últimos anos, o Graal tem-se empenhado em projetos que visam o desenvolvimento comunitário e a construção da igualdade, procurando contribuir para o combate ao sexismo, racismo e xenofobia. Tem também, ao longo da sua história, desenvolvido ações de Cooperação para o Desenvolvimento e de Educação para o Desenvolvimento/Educação para a Cidadania Global.

A temática da igualdade de género é uma causa muito valorizada pelo Graal que tem sido transversal a todo o seu percurso de intervenção.

3. Análise: fundamentação do projeto

3.1. Trabalhar a igualdade de género. Porque faz sentido hoje?

Apesar dos avanços na redução das desigualdades em termos de direitos, responsabilidades e oportunidades entre os homens e as mulheres na esfera pública e privada, estamos ainda longe da eliminação de todas as formas de discriminação contra todas as mulheres e meninas no mundo. Efetivamente, as conquistas alcançadas não se aplicam a todas as mulheres, independentemente do seu grupo social de origem, da região do mundo onde habitam (UNESCO, 2016). A análise da situação, quer a nível nacional quer a nível global, evidencia que as desigualdades de género e a violência de género são persistentes e que, apesar de uma tendência geral positiva na evolução para a igualdade de género, esta é demasiado lenta, como reconhecem organismos como a Comissão Europeia (e.g., EIGE, 2017) e as Nações Unidas (e.g., UNDP, 2016).

Em todas as sociedades, persistem estereótipos sexistas que funcionam como “espartilhos sociais” que condicionam percursos de homens e mulheres, as suas escolhas, oportunidades e projetos de vida.

No mercado de emprego, a segregação horizontal é uma realidade que espelha a persistência de escolhas estereotipadas de mulheres e homens que se concentram em diferentes tipos de atividade, estando por exemplo, as mulheres sub-representadas nas áreas tecnológicas e os homens nas áreas da educação e do cuidado (Pinto, 2007). Os dados da segregação vertical são também preocupantes, as mulheres sub-representadas nos mais altos níveis do poder e da  tomada de decisão económica.

A distribuição dos rendimentos e recursos à escala mundial é profundamente discrepante. Em Portugal, persiste um elevado diferencial salarial de género que segundo o relatório de 2017 da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género se situa na ordem dos 16,7% (CIG, 2017).

Por outro lado, as mulheres continuam a ser uma minoria na política nacional e local. Nas esferas política e económica, as mulheres ocupam os lugares menos bem remunerados, com menos prestígio e influência social (CIG, 2017).

Mantêm-se desigualdades na família, onde persistem fortes desequilíbrios na distribuição das responsabilidades com ascendentes e descendentes e das tarefas domésticas (Wall & Amâncio, 2007), o que aparece espelhado nos resultados do recente Inquérito Nacional aos Usos do Tempo (Perista et al., 2016).

São exemplo de formas de discriminação e violência contra as mulheres a objetualização dos corpos femininos (na publicidade, na comunicação, na arte, na pornografia), a exploração sexual, o assédio sexual e outras formas de constrangimento de natureza sexual que afetam particularmente as mulheres e as meninas, bem como a violência doméstica que afeta de forma desproporcionada as mulheres (CIG, 2017).

Fenómenos como o tráfico humano, a mutilação genital feminina, os casamentos forçados e prematuros, iniquidades no acesso e controle de recursos económicos, à propriedade, ao crédito, à educação, aos cuidados de saúde sexual e direitos reprodutivos são problemas que espelham a situação de desvantagem das mulheres no mundo.

Há, portanto, um caminho a percorrer no sentido de construir condições para que meninas e meninos, mulheres e homens possam realizar o seu potencial na sociedade, gozem de direitos sem penalizações e restrições em função do sexo e de acordo com suas próprias aspirações.

Os papéis e estereótipos sexuais estão profundamente enraizados nas sociedades e atravessam todas as áreas da vida. Alterar a “ordem social de género” é um empreendimento exigente e que tem, indubitavelmente, um carácter emancipatório. Trata-se de um imperativo ético e uma questão de direitos humanos.

Nem sempre as questões de género têm recebido suficiente atenção no quadro das iniciativas de ED: por vezes são ignoradas, outras vezes pouco visíveis ou entendidas como um tema não prioritário. Esta posição periférica para a qual as questões de género têm sido remetidas é, em si mesma, um entrave à realização do projeto de construção de um mundo mais justo e incompatível com desenvolvimento que aspiramos e que implica que sejamos capazes de combater simultaneamente várias formas de poder e de opressão.

A ED não pode, portanto, dispensar-se de uma reflexão crítica, problematizadora da opressão sexista, presente em todas as sociedades do mundo, com diferentes graus e com diferentes contornos que gera desigualdades entre homens e mulheres: nas oportunidades, possibilidades de realização, direitos e liberdades, no acesso a recursos e ao poder, na segurança, no reconhecimento da dignidade e valor pessoais.

Reconhecendo a igualdade de género como uma das bases fundamentais na construção de um mundo justo e sustentável, consideramos que são parte integrante da ED, que a deve assumir inequivocamente como objetivo.

Mas não basta que as questões de género sejam assumidas como uma “temática” da ED, é fundamental que as pessoas e organizações que atuam na área da ED sejam capazes de um permanente questionamento das relações sociais desiguais entre homens e mulheres, sejam capazes de retirar do silêncio e da sombra os mecanismos que produzem e reproduzem desigualdades. Por outras palavras, independentemente da iniciativa ou temática em foco (pobreza, educação, saúde, poluição, alterações climáticas, comércio internacional, paz…) é fundamental uma integração transversal de uma perspetiva de género, capaz de conduzir a novas leituras da realidade, nas palavras de Rosiska Darcy de Oliveira (1993) “a mudança do ponto de vista pode mudar radicalmente a paisagem”.

3.2. Trabalhar estas questões na formação de docentes, porquê?

Trabalhar as questões de género na formação inicial de profissionais de educação de infância e docentes do ensino básico justifica-se, antes de mais, por se tratar de um problema social relevante, como acima, justificamos.

Por outro lado, este grupo profissional tem uma influência significativa e responsabilidade nos processos de socialização das crianças e jovens. Poderão reproduzir acriticamente desigualdades ou ser agentes capazes de promover mudanças, contribuindo para a criação de contextos mais justos, igualitários, sem discriminações com base no sexo. Neste sentido, a educação e a formação de professores constituem-se como meios privilegiados para a mudança, como é reconhecido pela legislação sobre formação inicial de docentes (Decreto-Lei n.º 79/2014 de 14 de maio do Ministério da Educação e Ciência, 2014) que inclui explicitamente na área de formação cultural, social e ética “a sensibilização para os grandes problemas do mundo contemporâneo, incluindo (…) respeito pelas minorias étnicas e pelos valores da igualdade de género”. No mesmo sentido, o V Plano Nacional para a Igualdade de Género, Cidadania e Não-Discriminação 2014-2017 incentiva a introdução da temática da igualdade de género na formação pedagógica inicial e contínua de profissionais de educação. Acrescente-se que a Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania (Monteiro, 2017) estabelece a igualdade de género como um dos domínios da educação para a cidadania que deverá ser introduzido obrigatoriamente em todos os níveis e ciclos de escolaridade, pelo seu caráter transversal e longitudinal.

As crenças “genderizadas” de profissionais de educação influenciam decisões pedagógicas, refletem-se na organização da sala, das rotinas, nas atividades propostas, nos livros que escolhem, nas expectativas, perceções e interpretações dos comportamentos das crianças. Têm reflexos nas relações com as crianças, no que recompensam e no que reprovam, no que estimulam e no que desconsideram, no modo como intervêm nas interações e lidam com incidentes e situações que surgem no quotidiano da turma, nas relações com as famílias… (e.g. Alvarez & Vieira, 2014; Stromquist, 2006)

Sem cair na utopia de atribuir à Escola todas as potencialidades de emancipação e de promover as transformações sociais, reconhecemos que é um importante recurso para fomentar tais transformações (e. g., Cardona et al., 2010; Cardona et al., 2011; Pinto et al., 2015; Stromquist, 2014).

Finalmente, a igualdade de género está presente nas orientações curriculares dos diferentes níveis de ensino, pelo que é esperado que os futuros docentes tenham capacidade de trabalhar este tema e, a um nível ainda mais integrado, que sejam capazes de abordar todo um currículo “sensível às questões de género” (Marshal & Arnot, 2006).

4. Ação: Elaboração e desenvolvimento do projeto

Objetivos gerais do módulo de formação: Capacitação de estudantes no domínio da igualdade de género; leitura das questões de género ao nível estrutural, institucional e simbólico; integrar a dimensão de desenvolvimento pessoal dos/as estudantes e dimensão intervenção educativa com crianças; formação pessoal dos/as estudantes ao nível de conhecimentos e valores e de competências para a intervenção educativa; promover a literacia audiovisual e a utilização do cinema como um recurso pedagógico.

O módulo foi constituído por 5 sessões presenciais num total de 10 horas (incluindo 2 horas para visionamento do filme) e trabalho autónomo correspondente a 4 horas.

As atividades foram desenvolvidas no ano letivo 2016-17, em duas turmas do curso do 2º ano da Licenciatura em Educação Básica, com um total de 43 estudantes, maioritariamente do sexo feminino (apenas três estudantes do sexo masculino), com idades compreendidas entre os 20 e 26 anos (uma estudante com idade superior a 30 anos). As atividades durante as sessões foram orientadas para objetivos a diferentes níveis:

  • A)  Ao nível dos valores e da reflexão crítica sobre estereótipos, estigma e desigualdades; questões sobre desigualdades de poder material e poder simbólico; sexismo e discriminação baseada no sexo. Exemplo de recursos utilizados: “Good, Better, Best” e “Expectations and demands” extraídos do manual “Gender Matters – A manual on addressing gender-based violence with young people” (Veur, Ohana, Titley, Buldioski, & Schneider, A., 2007).
  • B)  Ao nível dos conhecimentos e de uma análise crítica da informação: a distinção entre sexo e género; leituras de extratos de estudos sobre género; análise da realidade social percebida pelos/pelas estudantes no que diz respeito a desigualdades/igualdades de género em vários domínios e a nível local e global; apresentação e questionamento sobre dados nacionais e internacionais disponíveis sobre a situação de mulheres e homens nos domínios da educação, social e da família, trabalho, participação política, entre outros. Exemplos de recursos utilizados: O essencial sobre o género (Le Monde selon les femmes, 2004); Relatório sobre igualdade de género em Portugal (CIG, 2017); Questionário Igualdade de Género (Graal e Casa da Esquina, recurso não publicado).
  • C)  Ao nível dos conhecimentos sobre educação: o papel da educação informal e formal (incluindo currículo manifesto e currículo oculto) na construção social de papéis de género; a não-neutralidade do currículo e das formas de organização da escola; análise crítica das culturas de escola; a “naturalização” das diferenças socialmente construídas; os estereótipos de género no domínio vocacional. Exemplos de atividades utilizadas: análise segundo as lentes de género de imagens da publicidade e de imagens de manuais escolares; análise de dados da distribuição dos estudantes por áreas vocacionais em função do género (e o caso particular da área da educação).
  • D) Ao nível das competências pedagógicas: criar um recurso para a exploração das questões de género com crianças do 1.º CEB a partir de um filme. Desenvolver competências de literacia audiovisual e competências pedagógicas associadas à utilização do filme em sala de aula e à sua fruição, de modo a potenciar globalmente as aprendizagens. Construir formas de visionamento e de análise de filmes e/ou excertos de filmes.

A sequência de atividades foi a seguinte:

  • A)  A atividade iniciou-se com o visionamento do filme numa projeção feita pela AO NORTE, numa sala de cinema, dedicada exclusivamente a duas turmas do 2º ano da Licenciatura em Educação Básica. Foi selecionado o filme de animação Zootrópolis dos estúdios Disney, realizado por Rich Moore e Byron Howard em 2016. Zootrópolis é uma grande metrópole habitada por animais de várias espécies que coabitam pacificamente, sendo claro o paralelismo entre os grupos de animais e as categorias sociais humanas. De uma maneira sintética o filme inicia quando predadores e presas vivem em harmonia, porque eliminaram o seu comportamento instintivo ancestral, mas essa harmonia será perturbada e instala-se o medo, a desconfiança mútua e a violência. A personagem principal é a coelha Judy e o seu percurso é um bom analisador dos preconceitos, e do peso dos fatores biologia e cultura: sendo uma mulher, anatomicamente pequena e frágil, ela é apaixonada pela profissão de polícia, tipicamente masculina. Os seus colegas e chefes, animais machos, grandes e fortes, esperam que ela seja dócil e incapaz de executar o trabalho e mesmo os pais reproduzem as representações sociais das gerações anteriores, suplicando à filha que produza cenouras como todos os restantes coelhos da família. Judy enfrenta os preconceitos com grande determinação e irá fazer uma amizade improvável com uma raposa, biologicamente um animal predador da sua espécie.
  • B)  A base de trabalho com as turmas em questão passou pela abordagem da escrita de cinema, ou seja, pela análise do argumento. O Argumento – uma história escrita e pensada somente para o cinema – obedece a várias técnicas, entre elas a criação de Atos e plot points (McKee, 2002). Se pensarmos na maneira como o texto narrativo é abordado nas aulas de Português do Ensino Básico, onde tem de se considerar a Introdução, o Desenvolvimento e a Conclusão como algo essencial nesse tipo de estrutura, também encontramos a edificação dos Atos num Argumento. Tradicionalmente o argumento assentava numa base de 3 atos e, desde os anos 80 do século XX, o estudo e reconhecimento da importância da Escrita para Cinema tem começado a apontar cinco atos como a melhor maneira de se escrever um Argumento. Esta nova técnica de escrita do argumento em cinco atos advém da complexidade que o público de Cinema do final do século XX e do século XXI consegue encaixar e assimilar, sinal da vertigem das transformações a vários níveis que as nossas sociedades têm sofrido ultimamente. Na “Poética” de Aristóteles são lançadas as regras base para a construção de um arco narrativo de modo a desenvolver aquilo que chamamos uma boa história (McKee, 2002). Os plot points são essenciais para o Arco da Personagem ao longo de uma história, ou seja, para a “viagem interior” que todo o personagem tem de obrigatoriamente fazer perante as questões e problemas levantados durante uma narrativa e que ele tem de enfrentar de uma forma ativa ou passiva. O que antecede a mudança de Ato num Argumento é o plot point, um acontecimento/problema que perturba, desestabiliza, choca e arranca o Herói do “caminho” que o vemos fazer no ato anterior. Os plot points fazem avançar a história e ainda tiram partido do interesse e identificação que o público terá com o Herói – personagem principal – e as vicissitudes que esse Herói terá de passar ao longo da narrativa. Ao passar esta informação sobre a estrutura de um Argumento, o passo seguinte no trabalho com as turmas foi a análise desses plot points e as suas consequências para o arco da personagem. Desta forma foi iniciada a análise do argumento e de toda a problemática nele narrado, centrado na “nossa heroína” e utilizando o género enquanto categoria de análise.
  • C)  A análise do argumento foi realizada utilizando diferentes momentos de discussão orientada em pequeno e em grande grupo. De seguida, a turma foi dividida em pequenos grupos que selecionaram um ato em particular e elaboraram um conjunto de questões que favorecessem o diálogo com crianças do 1º CEB em torno das questões de género.

Exemplos de questões elaboradas:

Ato 1

  • Como é que a coelhinha Judy começou a ter o sonho de ser polícia?Por que razão a mãe da coelhinha Judy queria que ela ficasse a trabalhar na banca das cenouras?
  • Acham que a coelhinha Judy pode ser polícia? Porquê?
  • Há profissões que são mais específicas para mulheres ou para homens?
  • E qual é o vosso sonho?

Ato 2

  • Por que razão o Chefe Bogo pôs a coelhinha Judy a fazer as tarefas menos importantes, como por exemplo passar multas?O que fez a Judy para realizar bem a tarefa que lhe tinham dado?
  • Se fosses a Judy como te sentirias?
  • D) No final, os grupos elaboraram um relatório que continha uma reflexão sobre as aprendizagens realizadas. Para analisar as suas perceções sobre as aprendizagens realizadas, procedeu-se a uma análise de conteúdo destes textos através de uma abordagem mista indutiva e dedutiva (Braun & Clarke, 2006), realizada por dois juízes (sendo um participante no projeto e outro exterior ao projeto). Numa primeira fase, as unidades de análise foram agregadas por comunalidades de significado, tendo emergido quatro temas ou padrões que foram posteriormente confrontados com as categorias derivadas dos diferentes níveis de objetivos do módulo de formação. Os quatro temas são os seguintes: conhecimento e autoconhecimento (que correspondem a uma subdivisão dentro do objetivo conhecimento), valores e competências pedagógicas. A quase totalidade dos relatórios (10 num total de 12) continha unidades de texto que foram codificadas em cada um dos quatro temas, o que constitui um indicador da multidimensionalidade do processo de aprendizagem tal como foi percecionada pelos/as estudantes.

Apresentamos de seguida extratos associados a cada um dos temas de análise:

  • Autoconhecimento: aprofundar um tema que, apesar de nos ser familiar, sabíamos pouco sobre ele; tema muito presente no nosso dia-a-dia; refletir sobre as nossas próprias experiências;
  • Conhecimento: desigualdades de género que persistem no mundo atual; as desigualdades e a sua distribuição geográfica e entre culturas, etnias, estatuto socioeconómico; as questões de igualdade de género que fazem parte do dia-a-dia dos alunos, assim como da vida social e escolar; os estereótipos presentes na educação de rapazes e raparigas; expectativas de desempenho diferenciadas em função do sexo;
  • Valores: igualdade de género e direitos humanos; igualdade de género e justiça; conceções do feminino e masculino diferenciadas e hierarquizadas;
  • Competências pedagógicas: importância da educação para os valores da igualdade e ao respeito pelos Direitos Humanos; desde a infância promover a igualdade e educar para os valores de pluralismo e igualdade; debater com os alunos as suas ideias e desconstruir estereótipos; debater com as crianças que podem atingir os seus objetivos e sonhos independentemente do sexo, ou de outras características pessoais.

A partir da análise temática podemos concluir que os/as estudantes têm a perceção de terem realizado aprendizagens significativas tanto do ponto de vista pessoal, quanto profissional. Esta constatação é do nosso ponto de vista relevante, por valorizarmos uma abordagem centrada na pessoa, por defendermos um modelo educativo que não se baseia na simples acumulação de conhecimentos e por reconhecermos a urgência de se (re)encontrar, na formação, espaços de interação entre as dimensões pessoais e profissionais (Nóvoa, 1992).

5. Reflexões

Globalmente fazemos um balanço positivo do processo educativo desenvolvido no quadro da UC de “Aspetos Psicopedagógicos da Inclusão”, que revelou ter potencialidades na promoção de atitudes mais informadas, críticas e reflexivas relativamente às questões de género que se espera que potenciem atividades pedagógicas e educativas que concorram para a concretização da igualdade.

Os discursos evidenciam um aumento da problematização das discriminações em função do sexo, o que é condição para o combate das mesmas (Alvarez et al., 2017). Consideramos que se deram passos no sentido do desenvolvimento de uma autonomia crítica, «não neutra» (ou cega) em termos de género, na construção de visões sobre si, as outras pessoas e o mundo (Vieira, Alvarez & Ferro 2017).

Este processo não foi, contudo, isento de dificuldades. Nas linhas que se seguem partilhamos reflexões sobre alguns dos desafios que enfrentámos no percurso e que consideramos que terão de ser levados em linha de conta na perspetivação de futuras intervenções formativas.

5.1. Uma outra pedagogia

A intervenção assentou no pressuposto de que os papéis e estereótipos de género estão fortemente enraizados nos indivíduos, em virtude do seu processo de socialização e, por esse motivo, seria insuficiente uma abordagem teórica e conceptual do tema, baseada na simples transmissão de conhecimentos, como frequentemente acontece nos contextos formais de ensino superior.

Abordaram-se as questões das desigualdades de género como um problema que permeia as nossas vidas e que não afeta apenas o “outro”, tendo-se convocado, neste processo, cada um/a enquanto “pessoa inteira”. Efetivamente considerámos fundamental que neste processo formativo a dimensão pessoal não ficasse intocada, dado que só poderão ser agentes de transformação aqueles e aquelas que forem capazes de primeiro se transformar (nas suas conceções, crenças).

Recorremos, assim, a metodologias participativas, que envolvem a pessoa como um todo: conjugando a esfera cognitiva e afetiva, sendo valorizadas as suas experiências individuais, as representações e emoções, a autoexpressão, a partilha de inquietações e dilemas, etc. por assumirmos que só uma abordagem que conta com o envolvimento pessoal poderá conduzir a que as questões de género não reduzam, simplesmente, a mais um conteúdo a aprender para posteriormente reproduzir.

Por outro lado, estimulámos o debate, o confronto de argumentos, o contacto com pontos de vista dissonantes por reconhecermos que estes processos dialógicos estão, com frequência, na origem da emergência de visões mais complexas e abrangentes, que tentámos desencadear. Mais do que um quadro conceptual, propusemos contextos propícios ao desenvolvimento do pensamento crítico, à autorreflexividade, ao questionamento dos próprios valores e crenças estereotipadas, do ponto de vista do género que condicionam o comportamento e leituras da realidade.

Esta opção desafia mudanças substantivas nas habituais expectativas de papel de estudante de quem não se espera a “receção passiva” de informações e a reprodução de conhecimento transmitido unilateralmente pela professora “especialista” e detentora do saber. Nem sempre o grupo correspondeu a este desafio, houve quem mantivesse uma atitude passiva e quem procurasse (em vez de novas perguntas e novos olhares) a “resposta certa”, o que possivelmente se poderá explicar pelo valor atribuído aos resultados da avaliação.

A nossa reflexão levou-nos a questionar as limitações e contradições inerentes a um processo onde se valorizam metodologias de educação não-formal que são integradas num contexto de educação formal com o seu enquadramento curricular e de avaliação de conhecimentos e competências.

5.2. Conhecimento e autoconhecimento

No âmbito da formação dos/das estudantes identificámos uma necessidade de promover um processo de aprendizagem que, partindo do autoconhecimento, lhes permitisse “compreender a diversidade da espécie humana e tomar consciência das semelhanças e interdependências entre todos os seres humanos” (Delors, 1999). Considerando que o conhecimento do outro passa necessariamente pelo conhecimento de si próprio, queríamos explorar como o tema sexo/género, sendo categorias que estão inscritas na biografia de cada pessoa, pode promover uma maior compreensão de si e do outro. No campo de uma UC dedicada às questões de inclusão, onde se abordam os efeitos das diferentes categorizações quer em função das incapacidades, do género, da pertença étnica ou de estatuto socioeconómico, ou qualquer outra, pretendeu-se que compreendessem, a partir da sua própria biografia, como estas categorias são social e historicamente construídas e como, funcionando como rótulo ou estigma que acentua o que é diverso, constituem em si mesmas obstáculos à inclusão.

Neste processo deparámo-nos com algumas resistências e desafios. Antes de mais, foi necessário lidar com atitudes de negação/minimização da existência de relações de poder e discriminações com base no sexo, na realidade portuguesa em geral e nas suas vidas em particular, encarando a desigualdade de género como uma realidade distante, um problema do passado, de outras gerações, de outros povos, de outros países… Esta posição “desproblematizadora” dificulta o desenvolvimento de atitudes mais informadas e críticas relativamente às questões de género e limita o compromisso e a responsabilidade com a promoção de contextos educativos igualitários e livres de discriminações.

Confrontámo-nos também com discursos de “naturalização” das diferenças. É amplamente partilhada a convicção de homens e mulheres/meninos e meninas se distinguem por traços/capacidades/atributos, que resultam de determinações de ordem natural. Esta visão dicotómica e a atribuição das diferenças a fatores inatos, estáveis e até imutáveis, estimula o conformismo e a subvalorização das forças sociais e culturais na construção das diferenças.

Surgiram também nos discursos entendimentos equívocos da causa da igualdade de género que suscitam algumas reações negativas face à mesma: é frequente esta causa aparecer associada à ideia de “descaracterização” e de anulação das dissemelhanças entre homens e mulheres, não se entendendo que o que se problematiza são as assimetrias, uma ordem social injusta que coloca, em diferentes esferas, as mulheres numa situação de desvantagem.

Por outro lado, verificámos também a emergência de discursos que fazem equivaler a causa da igualdade de género a “uma luta das mulheres contra os homens”, visão que reduz a vinculação aos ideais da igualdade, cuja realização faz prever, neste quadro, danos nas relações entre mulheres e homens.

Apesar das previsíveis perdas para os homens em termos de privilégios, poder e serviços, há que estimular a tomada de consciência de que viver numa sociedade justa é um bem em si mesmo e, por outro lado, está associado à minimização de riscos e pressões associadas ao ajustamento ao ideal de masculinidade dominante, facilitando o acesso dos homens a outras esferas e oportunidades e gratificações que, historicamente lhes têm sido negadas.

Estas dificuldades sentidas (que, aliás, não foram totalmente antecipadas por nós e, por vezes, nos surpreenderam) levaram-nos a recolocar os objetivos do módulo em termos da necessidade de cada um/a estabelecer um compromisso ético de reflexão crítica exigente e constante sobre as suas atitudes e ações, tanto na vida pessoal como profissional. Na busca de estabelecer com os/as estudantes esse compromisso de “crescimento pessoal” (usando o termo de Carl Rogers), enquanto orientadores das atividades, não nos colocámos numa posição exterior ao processo reflexivo e partilhámos com as turmas a análise crítica e autocrítica que fazemos relativamente às nossas próprias crenças e comportamentos.

5.3. Exigências do processo colaborativo

O trabalho colaborativo foi desenvolvido no seio de uma equipa de participantes provenientes de áreas distintas e pertencentes a instituições de natureza diferente (ESE-IPVC, Graal e Ao Norte). As diversidades resultantes das trajetórias sociais, práticas culturais e papéis desempenhados são habitualmente identificadas como constituindo as potencialidades do trabalho colaborativo, mas também podendo estar na origem das suas maiores dificuldades.

À partida estávamos disponíveis para o trabalho colaborativo entre organizações de natureza diferente, uma vez que acreditamos que a instituição escolar não existe isolada das outras instâncias educativas da comunidade/sociedade e não possui o monopólio no processo de educação das pessoas. Durante o processo tivemos de negociar diversidades e manter autonomia e responsabilidades individuais; tivemos de manter canais de comunicação presenciais ou à distância, essenciais à gestão das diversidades. Procurámos não ignorar as questões de poder dentro do trabalho colaborativo, mas antes clarificá-las e analisá-las, e utilizar essa análise para capacitar para o trabalho em equipa.

A reflexão sobre o processo devolve-nos uma imagem mais complexa sobre a colaboração desenvolvida. Por um lado, ao nível do conhecimento construímos relações de horizontalidade: abertura à diversidade de contributos, olhares, saberes específicos; disponibilidade total de aprender com outras pessoas e organizações, trazer a teoria necessária à compreensão da prática e da sua análise. A co-construção do projeto e do processo investigativo são indicadores dessas relações horizontais. No entanto, no caso deste projeto, em que a ação foi desenvolvida no contexto da IES, houve a necessidade de uma subordinação às suas exigências organizacionais (curriculares, temporais, funcionais). Assim, ao nível da ação, a distribuição de funções e de poder para influenciar a ação foi desigual, em resultado destes condicionalismos práticos, mesmo que conhecidos e aceites pelos membros da equipa.

5.4. Um pensamento final

O projeto colaborativo que apresentamos deve muito à sua ligação a outro projeto mais vasto – o Sinergias ED – que permitiu que nos integrássemos numa rede mais alargada de professores, investigadores e atores sociais que intervêm no campo da ED. O suporte teórico e prático que o Sinergias ED forneceu foi fundamental para a realização do nosso trabalho.

A consideração destes dois planos – do pequeno projeto colaborativo e do projeto mais alargado Sinergias ED – suscitou entre nós uma reflexão acerca dos processos interpessoais colaborativos que foram desenvolvidos e sobre o seu alcance para uma compreensão da colaboração a um nível estrutural ou organizacional entre IES e OSC. Se olharmos os fenómenos sociais ao nível macro como resultantes de interações de atores individuais, e se colocarmos assim a hipótese de explorar o potencial heurístico de modelos de ligação macro-micro para a compreensão de fenómenos sociais, pode fazer sentido regressarmos a Alice no País das Maravilhas:

“Well, I’ll eat it,” said Alice, “and if it makes me grow larger, I can reach the key;

and if it makes me grow smaller, I can creep under the door:

so either way I’ll get into the garden!”

 


[1] Formador Audiovisual a trabalhar com a Associação Ao Norte desde 2006 em projectos nas escolas públicas. Possui licenciatura em Cinema – Escrita de Argumentos pela Escola Superior de Teatro e Cinema. Nas horas vagas, a sonhar ser documentarista a tempo inteiro.

[2] Integra, desde 2002, a equipa de projetos de intervenção social do Graal e é co-coordenadora da Rede Nacional do Banco de Tempo.

[3] Doutorada em Psicologia pela Universidade do Porto, professora adjunta na Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Viana do Castelo, investigadora do Centro de Psicologia da Universidade do Porto.

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