San José, 24 de abril 2018
AS DORES QUE PERMANECEM SÃO AS LIBERDADES QUE FALTAM
Encontramo-nos na antecâmara da comemoração dos cem anos do Manifesto de Córdoba, proclamado pela juventude estudantil cordovesa, na Argentina, a 21 de junho de 1918.
Aquela revolta estudantil inspirou todo um movimento de transformação das estruturas e do próprio conceito de universidade na América Latina e no mundo, até então controladas pelas oligarquias e pelo clero. O movimento estudantil da época, cansado de ver como a sua casa de estudos era dominada pelo dogmatismo religioso e por uma hierarquia autoritária e excludente, lutou por uma maior participação na tomada de decisões, pela melhoria e pela liberdade académica e pelo respeito para com a diversidade de crenças, pensamentos e tendências científicas e filosóficas. Há cem anos, os e as estudantes que hoje nos empenhamos em recordar, marcaram o caminho da liberdade e do sonho.
Esta luta estudantil gerou um grande impacto sociocultural e político que definiu, por sua vez, um perfil de universidade da América Latina. De acordo com a perspetiva desta nova reforma, as universidades não poderiam permanecer claustros “onde todas as formas de tiranizar e de insensibilizar encontrassem a disciplina que as ditara”. Havia que escolher entre a universidade elitista e a universidade autónoma, a liberdade académica e o co-governo estudantil. Mas embora a Reforma de Córdoba significasse um grande avanço, ainda hoje podemos dizer que “as dores que permanecem são as liberdades que faltam”. Enquanto alguns setores poderosos da sociedade continuam a exigir que a universidade se comporte como uma velha “torre de marfim”, essa entidade emblemática, depositária e reprodutora do saber que se reverte a favor das comunidades, eis-nos aqui, por nossa parte, a querer reforçar, cem anos depois, aquela mensagem de mudança e de transformação, de renovação e de luta.
É certo que a universidade apresenta internamente as características da sociedade que a abriga: os seus próprios grupos sociais, os seus conflitos, a sua estrutura, as suas diversas ideologias, os seus processos, as suas virtudes e os seus defeitos, os seus objetivos e os seus fins. No entanto, isso não nos isenta de adotar um olhar crítico. Pelo contrário, o bem comum torna-se hoje, como nunca antes, o caminho e uma tarefa obrigatória.
Não cabe à universidade mudar unilateralmente as comunidades; dado que as universidades e as pessoas que a compõem são parte intrínseca da realidade que veem e desejam transformar, o seu olhar e a sua ação devem ser horizontais, respeitosos, iguais e humildes. As comunidades, e sobretudo os setores mais carentes, devem ser o espelho em que a universidade se contempla, e por isso se torna doloroso reconhecermo-nos no reflexo.
A universidade deve ajudar, consequentemente, na interpretação dos sentimentos e necessidades dos mais diversos grupos sociais mas especialmente dos excluídos e, dessa maneira, contribuir para o seu desenvolvimento, não só material, mas também espiritual e humano. Temos a obrigação de fazer com que os nossos sonhos não sejam só nossos; temos que aprender a transformar os sonhos dos outros nos nossos próprios sonhos. Que não haja conhecimento sem reconhecimento dentro das universidades, que não se mutilem os saberes das mulheres e dos homens das comunidades urbanas e rurais, ou se menospreze a sua passagem em frente às portas da universidade!
Se queremos defender a educação superior como um bem público de acesso universal, devemos considerar-nos como tecidos de uma grande rede inter-relacionada.
Isto implica voltar o olhar para aquela velha raiz do conceito de universidade: o lugar onde todas as pessoas encontrem um espaço e se consigam dimensionar de acordo com as esperanças partilhadas. Por isso, para defender a universidade pública desde a ação social transformadora, é necessário ir mais além das atividades assistencialistas, de promoção e de divulgação interna universitária.
Devemos repensar várias vezes a maneira como fazemos e entendemos a ação social. Significa, uma vez mais, assumir um compromisso no processo de transformação, sem importar se somos docentes, estudantes, funcionários e funcionárias administrativas ou habitantes das comunidades do nosso país.
Nos novos contextos sociais, nacionais e globais, a nossa ação social não pode ser constituída pela soma de projetos isolados. Não podemos contentar-nos em olhar a sociedade a partir da perspetiva frívola e asséptica de quem só observa. Devemos trabalhar juntos e juntas na abordagem integral e estratégica dos problemas e ver as situações como sintomas de situações mais profundas e complexas. Temos, também, que desenvolver a capacidade de fazer nossos, os sofrimentos e os traumas alheios. O mundo de hoje obriga-nos a atender novos e emergentes contextos económicos, sociais, políticos, científicos, tecnológicos, culturais e ambientais, mas também nos obriga a reivindicarmo-nos herdeiros dos saberes ancestrais e quotidianos dos setores tradicionalmente oprimidos, provenientes das suas experiências vitais de resistência e luta. No fundo, é aí que, quotidianamente, adquire sentido e força o que fazemos na universidade.
É verdade, por outro lado, que assistimos a uma revolução tecnológica avassaladora cujas consequências apenas vislumbramos. A universidade e as comunidades, se não querem ser perigosamente deixadas para trás, têm de decididamente enfrentar este processo, para incorporar o novo sem sacrificar o autóctone, para avançar no conhecimento e na gestão de novos instrumentos técnicos sem sacrificar princípios e subjetividades, e assumir o controlo do avanço sem cair na condição de consumistas acríticos da avalanche tecnológica. Devemos preparar-nos para o mundo de amanhã, mas sem perder de vista, como aquele estranho anjo da história de Walter Benjamin, as ruínas que o progresso vai deixando à sua passagem.
Este não é um desafio pequeno. É, de facto, um grande desafio. Por isso, desejamos construir o futuro em conjunto: deixar de lado os obstáculos mais obtusos e escabrosos do caminho. Todas as atividades da universidade pública devem, em função disso, ter como centro a busca do bem comum, seja mediante a docência, para formar pessoas comprometidas com a excelência e com a solidariedade, mediante a investigação-ação, para gerar novos conhecimentos que enriquecem a cultura e procuram comprometer a nossa realidade natural e social, ou mediante a força vital e luminosa da vida estudantil. Devemos reafirmar um modelo de universidade democrático e democratizador, que enfrente a desigualdade, assim como a tendência da especialização de um saber cada vez mais afastado dos setores populares e empobrecidos, aqueles que nos dão sentido.
A cem anos da Reforma de Córdoba, a Universidade da Costa Rica levanta de novo a voz, reivindicando todo o trabalho universitário, e principalmente, a ação social, ou extensão, como uma prática transformadora e libertadora articulada intimamente com a docência e a investigação. As comunidades do futuro deverão continuar a alimentar as universidades públicas não só com os recursos necessários para o seu funcionamento, mas também com o acumular de saberes e conhecimentos que lhe dá vida e sentido. Não permitamos que a universidade volte a ser esse claustro empoeirado, aberto unicamente a interesses mercantis. Lutemos por uma universidade que, pelo contrário, abra espaço para a ternura e a esperança de todas as pessoas.
Devemos colocar nas agendas universitárias ações concretas para a construção de uma universidade dos saberes, entendida como um espaço de construção de novos conhecimentos e caminhos de emancipação, que permita aprofundar a democracia, desmercantilizar a vida, descolonizar e eliminar o racismo e o etnocentrismo, eliminar todas as formas de sexismo e discriminação, assim como a construção de um conceito de solidariedade baseado no conceito de bem comum e na geração de uma cordialidade e respeito entre as pessoas e destas para com a natureza.
Foto: Claudia Castro Sandí. Encontro de partilha do Fórum de Ação Social.
Edifício de Ciências Sociais da Universidade de Costa Rica (Dezembro, 2017).
Hoje, desde a Costa Rica, neste mês de abril de 2018, juntamos as nossas vozes às vozes estudantis da Universidade de Córdoba, que lutaram pela universidade sem amarras com a qual ainda hoje sonhamos. Prolongamos as suas vozes nas nossas vozes, com a esperança de que no nosso conceito atual e futuro de universidade, a ação social brilhe como praxis defensora e impulsionadora de uma educação pública para todas as pessoas. Defendamos as universidades públicas e a ação social porque embora “as dores que permanecem são as liberdades que faltam” ainda nos sobram mãos, paredes e olhares para reescrever a nossa história; nos sobram o vento, a luz, a terra, para semear certezas e destruir verdades; nos sobram o movimento para não pararmos e darmos tudo como ganho.
Temos escuridão para nos transformar em faíscas, cor, em vida.
Temos abraços para sentir e amassar as paredes.
Temos gargantas, dentes, boca para morder as palavras que nos amarram.
Temos força, esperança, pincéis para escrever uma e outra vez que ficaremos aqui, sempre, até quando não nos sobrem as dores e não tenhamos as liberdades que nos faltem.
Foto: Rosslyn Sánchez Mora y Maureen Rodríguez Cruz.
Mural: As dores que permanecem são as liberdades que faltam.
Cidade Universitária RodrigoFacio, Montes de Oca (2018).
A redação do Manifesto esteve a cargo da Comissão composta por: Daniel Camacho Monge, Asdrúbal Alvarado Vargas, Montserrat Sagot Rodríguez, Camilo Retana Alvarado, Oscar Jara Holliday, José María Gutiérrez Gutiérrez, Carlos Sandoval García, Helga Arroyo Araya, Marjorie Jiménez Castro (Vice-reitora de Ação social).
Não obstante, o texto recolhe a discussão gerada nas atividades realizadas nas comemorações do Fórum de Ação Social:
- Encontros comunitários ou de reflexão acerca da Ação social por parte das Unidades Académicas (agosto-setembro 2017);
- Espaço de partilhas de contribuições dos Encontros comunitários (26-27 de outubro 2017);
- Jornadas de reflexão e propostas de ação (12-13 dezembro 2017);
- Escola de Verão de Extensão/Ação Social (20-26 fevereiro 2018);
- Semana de comemorações do Centenário da Reforma de Córdoba (23-28 abril 2018).