Hugo Cruz Marques 1

Resumo: Qual a importância de trazer a dimensão local, experiencial para os espaços de aprendizagem? E como ligar esses saberes que vêm da experiência quotidiana com a dimensão global? Que tipo de relações se constroem nos espaços formais de aprendizagem? Pode uma educação transformadora, crítica, significativa ter espaço nesta sociedade? Partindo de questionamentos como estes, trazidos pelas práticas e aprendizagens resultantes dos processos de trabalho entre uma organização da sociedade civil e educadores/as que desenvolvem atividades em escolas, bem como do seu cruzamento com reflexões trazidas por algumas leituras que consideramos inspiradoras, pretendemos abordar a importância das aprendizagens significativas nos diferentes espaços de aprendizagem existentes na educação formal. Propõe-se um exercício de reflexão (dialogante) sobre o papel das diferentes partes que compõem processos de aprendizagem críticos e colaborativos na construção de um conhecimento que ajude a “ler”, “pensar” e a “sentir” o mundo.

Palavras-chave: Trabalho colaborativo; Aprendizagem crítica; Construção de conhecimento; Inter-relações; Educação transformadora; Escola.

Resumen: ¿Cuál la importancia de traer la dimensión local y experiencial para los espacios de aprendizaje? ¿Cómo conectar esos saberes que vienen de la experiencia cotidiana con la dimensión global? ¿Qué tipo de relaciones se construyen en los espacios de aprendizaje? ¿Puede una educación transformadora, crítica, significativa tener espacio en esta sociedad? Partiendo de cuestiones como estas, traídas por las prácticas y aprendizajes resultantes del trabajo de la sociedad civil con las escuelas y de su cruce con reflexiones traídas por algunas lecturas que consideramos inspiradoras, pretendemos abordar la importancia de los aprendizajes significativos en los diferentes espacios de aprendizaje existentes en la educación formal. Se propone un ejercicio de reflexión (dialogante) sobre el papel de las distintas partes que constituyen procesos de aprendizaje críticos y colaborativos en la construcción de un conocimiento que ayude a “leer”, “pensar” y “sentir” el mundo.

Palabras-clave: Aprendizaje crítico; Construcción de conocimientos; Relaciones; Educación transformadora; Escuela.

Abstract: How important is it to bring the local and the experiential dimensions to the learning processes used in schools? And how can we connect these everyday experiences to a global dimension? What kinds of relationships are built in these learning processes? Can a transformative, critical and meaningful education have a place in this society? Based on such questions, that emerged from some activities developed in collaboration by a civil society organization and educators, and from some reflections, that resulted from readings that we consider inspiring, we intend to address the importance of meaningful learning in the different learning spaces in formal education. The article proposes an exercise of reflection (dialogue) about the role of the different components of critical and collaborative learning processes in the construction of a knowledge that helps to “read”, “think” and “feel” the world.

Keywords: Critical learning; Knowledge construction; Inter-relationships; Education for social change; Schools.

Resumé: Quelle est l’importance d’apporter la dimension locale, expérientielle aux espaces et d’apprentissage? Et comment relier ces connaissances qui viennent de l’expérience quotidienne à la dimension globale? Quel genre de rapports sont construits dans les espaces formels d’apprentissage? Est-ce qu’une éducation transformatrice, critique, signifiante peut avoir un espace dans cette société? A partir de questions comme celles-ci, apportées par les pratiques et les apprentissages revenues du travail entre une organisation de la société civile avec des éducateurs / éducatrices et des écoles, ainsi que du croisement avec des réflexions apportées par quelques lectures qui on considère inspiratntes, nos avons l’ intention d’ aborder l’importance des apprentissages significatifs dans les différents espaces d’apprentissage qui existent dans l’éducation formelle. On propose un exercice de réflexion dialogué sur le rôle des différentes parties qui comprennent des processus d’ apprentissage critiques et qui collaborent dans la construction d’une connaissance qui puisse aider «à lire », « à penser » et « à ressentir » le monde.

Mots-clés: Apprentissage critique; Construction de la connaissance; Rapports; Éducation transformatrice; École.

 

1. Introdução

Este texto nasce de experiências e diálogos conjuntos que eu e o resto da equipa de Cidadania Global e Desenvolvimento da FGS – Fundação Gonçalo da Silveira vamos coletando e refletindo em conjunto. Por isso, quando começou a ser escrito, ganhou forma e sentido no plural. Nasce também das questões que diariamente nos surgem a partir do contacto e experiência no trabalho com escolas, educadores e educadoras, estudantes e comunidades educativas.

“Aprendizagens no diálogo entre o local e o global”. O que significa, qual a sua relevância e de que forma se materializa concretamente no espaço escolar? Estas são algumas das principais questões que têm surgido em espaços de aprendizagem nos quais temos participado e que nos desafiam a aprofundar a nossa reflexão e ação sobre esta dialética e a sua importância no(s) espaço(s) educativo(s).

Em primeiro lugar, e da nossa perspetiva, estas aprendizagens partem sempre de “percursos”, de “processos”. São alimentadas por reflexões coletivas e individuais, que em diálogo com as práticas e experiência dadas pelo trabalho com pessoas nos diferentes territórios, permitem aprofundar o pensamento e a ação sobre problemáticas estruturais para uma transformação social com vista à justiça social, equidade, paz e solidariedade. Este artigo foi pensado e elaborado enquanto contributo para a construção do pensamento coletivo sobre esta reflexão. Pretende ser também um convite a uma reflexão e diálogo crítico em torno das representações do papel da Escola e das respetivas orientações e abordagens pedagógico-metodológicas veiculadas, no sentido de as problematizar e transformar, e cujo exercício pode constituir um desafio e uma oportunidade de aprendizagem para a Cidadania Global.

Para a sua estruturação, recorremos a um conjunto de experiências quotidianas individuais e organizacionais, por vezes gratificantes, outras vezes frustrantes, e quase sempre significativas, resultantes deste trabalho entre sociedade civil e a Escola. Socorremo-nos também de uma série de artigos que foram para nós fonte de inspiração e de questionamento e que nos ajudaram a pensar e a consolidar alguns dos nossos pensamentos mais soltos.  Estes pensamentos encontram-se aqui organizados (não necessariamente sistematizados) numa espécie de percurso, não linear e interligado, composto por 4 questões-chave.

2. Qual a importância de trazer a dimensão local, experiencial para os espaços de aprendizagem, nomeadamente os espaços de educação formal?

Talvez uma das questões mais delicadas nos espaços de aprendizagem formais, ou pelo menos uma das que é mais vezes focada, é o excesso de conteúdos curriculares que professores/as têm de seguir nas suas aulas. E por conteúdos curriculares entenda-se, de uma forma muito geral, os conteúdos programáticos definidos pelas tutelas, que professores/as deverão cumprir no decurso do ano letivo, com o objetivo de transmitir conhecimento aos/às estudantes com vista a uma posterior avaliação da aquisição deste conhecimento. A par e em diálogo com esta preocupação aparecem outras, algumas metodológicas, outras sociais, outras ainda do foro político. Uma destas preocupações que, do nosso contacto e experiência de trabalho com docentes que estão a lecionar nas escolas, nos parece que tem vindo a crescer nas últimas décadas, pode ser descrita como uma dificuldade em trabalhar/gerir as perceções globais individuais e coletivas dentro do espaço escola (na sala de aula, mas também fora dela, nos espaços não letivos) daquilo que se passa no mundo.

Os espaços de aprendizagem formal, mais especificamente, as escolas, quer sejam públicas, comunitárias ou privadas, representam e apresentam, de uma forma muito geral, um formato que tem vindo a formar e a dominar aquilo que se entende por educação, formato esse que dura há já alguns séculos. Para além dos conteúdos curriculares formais, a escola posiciona-se também, voluntária e involuntariamente, enquanto um espaço de construção de cidadania, propondo para isso aprendizagens em espaços curriculares e não curriculares que vão ajudando a construir sentidos na participação em sociedade e na relação entre pessoas. Pode dizer-se que a escola, enquanto instituição pública, foi (também) pensada para exercer esta função de cidadania. No entanto, na sua génese estava muito longe, por motivos óbvios relacionados com o contexto histórico, de ser um espaço de reflexão sobre a sociedade e as suas problemáticas. Parece-nos assim, que a escola vive desde há muito, numa guerra de identidades navegando entre o cumprimento da função de transmissão de conhecimentos acumulados pelo estado nação para as classes trabalhadoras e a função de as controlar mantendo uma estrutura social mais ou menos estanque e estabilizadora das desigualdades sociais, servindo interesses políticos, religiosos e das elites (Garcia, Lazarini, Barbieri & Mello, 2017). Ao longo dos anos, o enraizamento social da Escola foi-se constituindo, entre outras coisas, enquanto instrumento de controlo social, legitimadora e reprodutora das “fronteiras e das desigualdades inerentes à modernização e ao colonialismo” (Martins, 2014: 29). Este legado hoje ainda contribui para a estruturação do que a escola pública representa na e para a sociedade continuando algumas destas dinâmicas hoje ainda “com renovado vigor, submetendo as contínuas reformas educativas aos ditames da economia neoliberal”. (Martins, 2014: 29). A partir das partilhas de professores/as sobre as suas dificuldades em cumprir (e definir) o seu papel em contextos formais de aprendizagem, parece-nos que esta “história viva” que vive nas escolas contribui para a polarização entre conteúdos curriculares e cidadania, deixando pouco espaço para os “espaços entre”, para conteúdos híbridos, para a experiência, para a reflexão, para a ação. E quase sempre os conteúdos curriculares assumem a prioridade nas aprendizagens escolares.

A dimensão local assume por isso um papel central numa possível transformação da escola enquanto espaço de vivência crítica da cidadania. Na qualidade de espaço de construção de cidadania, parece-nos importante abrir-se às problemáticas do meio onde se encontra situada. No entanto, esta dimensão local, comunitária, envolvente à escola, só pode ser trabalhada quando ela própria for assumida enquanto dimensão de aprendizagem, deixando que o quotidiano, perceções e experiências das pessoas (alunos/as professores/as, funcionários/as, órgãos de gestão, etc.) sejam fatores integrantes e geradores de aprendizagem. Isto significa trazer também todas as ligações, todas as redes, todas as informações, conflitos, certezas, mitos e medos que cada pessoa carrega todos os dias e imprime às suas relações. Não é tarefa fácil e da nossa experiência as escolas têm, em regra geral, alguma dificuldade em lidar com esta quantidade de informação e fazer dela conteúdo. Inclusivamente na maioria das vezes, talvez por inexperiência, talvez pelo facto de que, nos processos de formação inicial de professores/as, o espaço reservado às metodologias que se centram nas pessoas aprendentes e nas suas experiências ser ainda residual, ou ainda pela narrativa que continua a persistir de que a centralidade nos conteúdos é um fator determinante para uma construção legítima de conhecimento, o quotidiano é afastado das salas de aula.

O enraizamento local da escola e o envolvimento nos processos de desenvolvimento da comunidade através das suas atividades, em diálogo com outros elementos (metodológicos, institucionais, conceptuais) ligados à praxis do educador e da educadora, poderão representar um papel fundamental no (re)posicionamento da Escola enquanto atriz fundamental na reflexão e ação para as transformações necessárias no sentido de uma sociedade eticamente comprometida (McCloskey, 2016). Da nossa perspetiva, trazer para os espaços de aprendizagem algo de significativo, porque familiar, onde as pessoas se possam reconhecer, inter-relacionar saberes, experiências e experimentar, facilita e desafia as pessoas a construírem imagens, narrativas e soluções interrelacionadas e refletidas entre aquilo que se passa no local que as envolve, com aquilo que está longe, codificado e à primeira vista inatingível.

3. E como ligar esses saberes que vêm da experiência quotidiana com a dimensão global na promoção de processos de aprendizagem em contextos de educação formal?

A interconexão entre as problemáticas locais e globais não pode ser secundarizada, sobretudo numa Escola que se pretende que constitua um espaço de construção da cidadania. Trata-se de um elemento fundamental para compreendermos e sabermos refletir e posicionar de forma crítica sobre os fenómenos da nossa sociedade, a nível local e global. No entanto, como não será difícil perceber, trabalhar a partir da ideia de globalidade, sendo algo tão lato e pouco definido, caracterizado por uma infinitude de inter-relações e interdependências existentes nas problemáticas/questões/fenómenos à escala mundial/global pode causar confusão. A complexidade dos fenómenos globais, das suas interdependências e a dificuldade de ligá-los ao que ocorre à escala local (quotidiana e próxima), pode levar muitas vezes à formulação de discursos enigmáticos e pouco concretos que esbarram em salas de olhares confusos ou bocejos entediados. Por isso é tão importante partir da experiência e do conhecimento que as pessoas trazem para o contexto educativo. E fazê-lo criticamente.

Andreotti (2014) ajuda-nos a refletir sobre a importância da análise crítica e da desconstrução da “complexa teia de processos e contextos culturais locais/globais” (p.58) para compreender as questões globais. Alerta para os perigos que pode representar para as escolas (e outros espaços de aprendizagem) não compreender as questões globais a partir da complexidade, ou antes de compreendê-las através de projeções de crenças e mitos universais, levando a que, nos processos de aprendizagem, seja enquanto educador/a, seja enquanto aprendente, sejam reproduzidas relações de poder e de formas dominantes de conhecimento. Estas relações assumem uma especial relevância no contexto nacional (e também global), já que muitas delas são herdadas de processos de poder autoritário e vertical, como por exemplo as que provêm das relações coloniais.

Existem muitas formas de trabalhar a complexidade que caracteriza a relação entre o local e o global em contextos educativos. Uma forma possível é a de propor ligações entre o quotidiano local e as perceções globais, entre o pensar e o agir individual e coletivo, construindo em conjunto formas de cidadania solidária, participativa e ética a partir de temáticas específicas.

No âmbito da educação formal, parece-nos fazer sentido incluir nos percursos formativos dos/as estudantes os espaços não letivos como as rádios escolares, cantinas, hortas, clubes, etc., tendo como objetivo que a sua participação gere mudanças, não só nas escolas enquanto espaços físicos, como também em quem tem poder de decisão e nas formas de ação política das pessoas, conferindo ao mesmo tempo valor a estes espaços enquanto lugares de aprendizagem através da experimentação, reflexão, participação e ação. A possibilidade da existência de projetos e iniciativas em espaços destes, quando trabalhados e seguros, quando postos em diálogo com os espaços letivos, assume-se essencial para se construir uma ideia coletiva de participação enquanto ferramenta de transformação social.

Boni e Belda (2017) propõem-nos pensar a importância dos espaços geradores de participação coletiva para a construção de uma cidadania global crítica, relacionando-os (enquanto uma possível resposta) à necessidade de haver um aprofundamento constante nos processos democráticos nos seus múltiplos aspetos (p.15). Este formato de participação resulta crucial para um reconhecimento radical do que pode ser uma cidadania solidária que contribui para a construção de modelos de justiça social e de equidade global. Os espaços de participação coletiva na escola, quer sejam promovidos pelas entidades a quem cabe a decisão, quer resultantes da iniciativa da comunidade educativa, muito para além dos órgãos de poder, formais ou informais, podem conter em si este potencial transformador, mas para tal é necessário que a colaboração seja vista não como uma ferramenta metodológica, mas como uma dimensão em si do processo de aprendizagem transformadora. A colaboração entre pessoas nas escolas, assente nas relações entre pessoas nas escolas, leva-nos à pergunta seguinte:

4. Que relevância pode assumir a dimensão relacional nos espaços de aprendizagem?

As relações entre pessoas no que diz respeito ao conhecimento, seja construção, seja partilha, seja pura transmissão, partem quase sempre de uma perspetiva de poder. Faz parte do papel dos educadores/as, mas não só, gerir as formas e os espaços de aprendizagem, de poder, de forma a criar um ambiente colaborativo entre as pessoas. Isto implica gerir (e gerar) espaços complexos, incertos, de inter-relação e aprendizagem entre pessoas.

Do nosso ponto de vista, a partir da experiência em projetos e iniciativas com escolas e educadores/as, a colaboração entre pessoas apresenta-se assim como a forma mais coerente de se trabalhar esta complexidade e incerteza nas escolas, quer entre educadores/as, quer nas propostas metodológicas a apresentar e a trabalhar com os grupos de estudantes.

Os processos colaborativos, quando trabalhados enquanto dimensão transformadora pessoal e coletiva, permitem o reconhecimento das diferenças e complementaridades entre pessoas, objetivando e definindo o contributo de cada pessoa. Permitem que cada pessoa reconheça o que sabe, reconheça o que os outros sabem e o que todos, em conjunto, ainda não sabem (Damiani, 2008: 218). Permitem também perceber que o que é construído em conjunto, de forma crítica e reflexiva, pode levar a uma transformação.

No entanto os processos de transformação social, coletivos e colaborativos, carregam consigo muita incerteza… e ainda bem. Haver espaço para a construção de algo que não está fechado, contribui para que os resultados tenham um bocadinho de cada pessoa, de cada reflexão e de cada ação. A complexidade das relações entre as pessoas envolvidas nos processos de trabalho colaborativo, nas escolas e noutros espaços, vem contribuir para incertezas, muitas vezes angustiantes, não só do que vai resultar do processo como também do próprio processo em si. Perspetivando a  importância das relações complexas (e por isso incertas) entre pessoas para os processos de trabalho colaborativo, Boni e Belda (2017) reforçam a ideia que as aprendizagens vivem da dinâmica das relações entre pessoas, relações essas que estão em constante transformação, enformadas pelos contextos e pelas relações de poder que se vão alterando (p.16). Perante a incapacidade de prever um sistema complexo como é o que vivemos, caracterizado pela incerteza, pelo aleatório, pelo não-equilíbrio só nos resta tentar construir individual e coletivamente, de uma forma dialética, o futuro. Diz-nos Teotónio Pereira (2016) que da “nossa capacidade de imaginar o futuro, dependerá o sentido e o impacto (sempre incerto) da nossa incorporação, pessoal e coletiva, mas sempre única e desejavelmente criativa, no processo de transformação em curso, que incansavelmente nos transforma” (p.13).

Defendemos que esta capacidade poderá ser (provavelmente já será em alguns contextos) trabalhada, praticada em contextos de educação formal através de educadores/as apoiados/as por ferramentas pedagógicas inovadoras, conhecimentos académicos adquiridos nas suas próprias formações, experiência e práticas adquiridas no seu dia-a-dia de trabalho em escolas com estudantes que são diferentes entre si. Assume-se igualmente importante neste percurso a partilha e a discussão entre educadores/as confrontando saberes, práticas, vivências e aprendizagens, as suas e as dos/as outros/as. No entanto, para além destas características e dimensões do que é ser educador/a, a aposta na relação e na incerteza do que pode ser construído em conjunto, poderão servir para ir tecendo espaços que melhor preparem pessoas não para saberem como lidar e se adaptar a essas mudanças globais, mas para fazerem parte dessas mudanças.

5. Pode uma educação transformadora, crítica, significativa ter espaço na sociedade do século XXI?

A perceção de que a educação só por ser “educação” contém em si própria transformações positivas para o indivíduo e para a sociedade é tão antiga como o próprio ato de educar. E muitas vezes enganadora. Evocamos os dias de hoje, os processos sociopolíticos que vivemos e que por vezes são tão complexos de entender, para ilustrar esta dificuldade.

Trazemos o exemplo de uma situação que aconteceu há pouco tempo, durante as eleições presidenciais brasileiras, que traduz as dificuldades em lidar com a complexidade no que diz respeito às ligações globais atuais e às relações entre as pessoas e o mundo 2.

Imagens de um eleitor brasileiro em Portugal são difundidas à porta de uma das mesas eleitorais em Lisboa. Nessas imagens ele dirige-se a outras pessoas, também brasileiras, também eleitoras, mulheres, justificando a sua escolha eleitoral com uma série de características que ele atribui a si próprio, escolhendo três dimensões diferentes: a etnia (cor da pele), nacionalidade e ideologia política. Ele, um brasileiro eleitor, votante, responde às acusações de racismo com a frase: “sou branco, italiano e fascista” descarregando um “Norte” civilizado e intolerante num “Sul” que o ouvia indignado. Nas horas/dias seguintes surgiram inúmeras leituras, sendo que destacava uma que me parece importante para as conclusões deste artigo. Nessa leitura foi defendido que hipoteticamente esta pessoa, num outro momento contextual, no mesmo país, aqui em Portugal, seria facilmente vítima de estereótipos relacionados com a condição de cidadão brasileiro. Apesar de constituir uma leitura especulativa, por ser feita à distância e através de um vídeo descontextualizado postado no youtube, parece-nos que esta pessoa, no seu ato de esgrima identitária e que manteve com as outras pessoas, todas carregadas de informação contextual de um Brasil eleitoral e conflituoso, exerceu um poder simbólico que, no seu entender lhe dava alguma vantagem sobre as restantes pessoas, talvez não brancas, não italianas e não fascistas (e mulheres). Recorrendo ao pensamento da Vanessa Andreotti, este homem, na tal hipotética situação que poderia ser uma entrevista de trabalho, um telefonema para alugar uma casa ou mesmo uma reunião de pais na escola do filho ou da filha, poderia facilmente ser vítima de um conjunto de projeções que compõem o mesmo arquétipo simbólico que ele utilizou contra as mulheres com quem estava a trocar acusações. Seria ele o “Sul” a quem o “Norte” descarregaria as suas intolerâncias e ideias civilizacionais.

Este exemplo parece-nos que espelha a complexidade que entra também todos os dias nas escolas, através das redes sociais, dos noticiários, das conversas nas famílias e entre pares. Exemplifica um momento onde identidade, processos democráticos, ideologia política, crise económica, mobilidade, história, colonialismo, redes sociais tecem em conjunto uma teia de complexidade que aplicam a uma situação de poucos minutos. Ilustra também o quanto projetos/iniciativas que promovem o pensamento crítico são essenciais para os contextos de aprendizagem nos dias de hoje. Não o dizemos com a intenção de que uma só pessoa tenha a capacidade de não exercer poder sobre outra, mas antes que as pessoas possam, através de um percurso educativo crítico, coletivo, ler a complexidade das situações, que tenham a capacidade de refletir sobre as diferentes camadas, de as desconstruírem e agirem de acordo com uma cidadania global crítica, reflexiva e solidária. Fosse este o processo, provavelmente, a discussão à boca da urna não seria um exercício do poder identitário mas sim uma discussão sobre as propostas de ação política que os candidatos traziam ao eleitorado (nada viral).

E que transformações são necessárias na escola para que este espaço possa tornar-se, antes de qualquer outra coisa, um espaço de construção desta cidadania? Ora, para esta mudança seria importante pegar nos processos pedagógicos, nas metodologias e objetivos da sala de aula e transformá-los de forma estrutural.

Jara (2016) lança um desafio quando fala na transformação que a escola e os seus métodos de aprendizagem necessitam ter para que se possa constituir enquanto espaço transformador. Ao propor caracterizar uma Educação para a Transformação (Social), Jara explica que esta proposta “no está centrada tanto en el ámbito de la enseñanza que se quiere transmitir, sino en el del aprendizaje que se busca generar” (p.22).

Isto implica irmos alterando o paradigma (e não os programas) que ainda é dominante nos espaços educativos, ou seja, trazer propostas de transformação das relações existentes nas escolas (que são ainda predominantemente verticais e autoritárias), permitindo pensar a construção de conhecimento enquanto um objetivo partilhado por todas as pessoas, significativo não só no espaço da sala de aula, como no espaço-escola em geral.

Para finalizar, gostaríamos de deixar uma última interpelação que nos parece crucial quando falamos de educação e de transformação social e que é frequentemente desvalorizada, exatamente por ser dificilmente mercantilizável: a importância de encarar e reconhecer as pessoas (o que inclui, obviamente, também comunidades educativas em processo de aprendizagem) como seres “sentipensantes” que necessitam de relações positivas, de vivência experiencial e significativa em coletivos. É este formato relacional e identitário nos ambientes educativos que, no caminho apontado por Fals Borda (2003), fornece às pessoas, educadores e educadoras, estudantes, “ferramentas emocionais” para fazer face aos “muchos tropiezos” (p.9) que um percurso educativo implica. A aprendizagem faz-se assim a partir de uma dialética entre o ser e sentir de cada pessoa e uma dinâmica coletiva de construção e de aprendizagem, uma vez que implica necessariamente construção, diálogo, dissenso e (algum) consenso para que se possa despoletar uma aprendizagem – e transformação – a nível individual. Não existem pessoas com superpoderes nas escolas que conseguem mudar o mundo, essa transformação social implica necessariamente uma dimensão coletiva de aprendizagem e exige reflexão e aprofundamento crítico. Pensar para agir e agir para pensar de forma questionadora, desinstaladora e nunca acomodada constitui, na nossa perspetiva, um elemento básico de uma educação que é o “coração” de qualquer sociedade e que deve por isso procurar ser transformadora, promovendo “aspirações individuais e coletivas de mudança, predispondo para a ação, a partir do reconhecimento de que são possíveis alternativas, mesmo num contexto que pode parecer forte demais para ser transformado” (Carta Aberta: 2018).

 


[1] Hugo Cruz Marques é licenciado em Antropologia. Trabalhou em vários projetos ligados à mediação escolar, cooperação internacional e formação de professores, educação para o desenvolvimento e cidadania global. Pertence à equipa de Cidadania Global e Desenvolvimento da FGS – Fundação Gonçalo da Silveira.

[2] Vídeo disponível em www.youtube.com/watch?v=WCU-k4Gfd4M

Referências bibliográficas

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