Susana Constante Pereira 1
Resumo: Mais do que um fim em si mesmo, o desenvolvimento do “Estudo sobre as Aprendizagens Decorrentes da Experiência de Construção, Aprofundamento e Reforço da ‘comunidade de ED’” e da Avaliação Final do “Sinergias ED: Consolidar o Diálogo entre Investigação e Ação em ED em Portugal”, ao longo da terceira edição do projeto Sinergias ED, foi um processo altamente gerador de reflexão – ação – reflexão – produção de conhecimento, por sua vez – esta produção de conhecimento – igualmente geradora de nova reflexão. Assim mesmo, em ciclo repetitivo. A partir das conclusões desses dois exercícios, nomeadamente a conclusão de que o coletivo que o projeto Sinergias ED mobiliza pode ser visto – ‘aqui e agora’ – como uma comunidade colaborativa, procuro neste artigo, formular a provocação ou contenda de que a matéria de que hoje são feitos o projeto e a Comunidade Sinergias ED (Comunidade) serve de potencial adubo para uma propensão política em contexto de Educação para o Desenvolvimento (ED). É inerente a uma comunidade com esta natureza o potencial para a rutura de paradigmas através do cuidado com as relações, da polinização cruzada de um chão comum, da manutenção de uma auto-gestão e da assunção da transformação social como intenção intrínseca. O texto serve, assim, por um lado, de súmula dos resultados do Estudo e da Avaliação Final e, por outro, de exploração desta perspetiva de que, não só a colaboração serve de catalisador para a dimensão política do ser pessoa, como esta dimensão será definidora na construção contínua da Comunidade e do projeto.
Palavras-chave: Educação para o Desenvolvimento; Produção de Conhecimento; Colaboração; Comunidade Colaborativa; Ativismo Político; Educação Transformadora.
1. Introdução
La politique n’est pas l’art de diriger les communautés, elle est une forme disensuelle de l’agir humain, une exception aux règles selon lesquelles s’opèrent le rassemblement et le commandement des groupes humains. La démocratie n’est ni une forme de gouvernement, ni un style de vie sociale, elle est le mode de subjectivation par lequel existent des sujets politiques.
[A política não é a arte de dirigir as comunidades, é uma forma dissensual do agir humano, uma exceção às regras pelas quais se opera a reunião e o comando de grupos humanos. A democracia não é nem uma forma de governo, nem um estilo de vida social, é o modo de subjetivação pelo qual existem sujeitos políticos.] (Ranciére, 1998, s/p)
Ao longo da terceira edição do projeto Sinergias ED, uma equipa formada enquanto par colaborativo a partir do coletivo de pessoas e organizações que são parte integrante desta iniciativa, desenvolveu um “Estudo sobre as Aprendizagens Decorrentes da Experiência de Construção, Aprofundamento e Reforço da ‘comunidade de ED’” e a Avaliação Final do “Sinergias ED: Consolidar o Diálogo entre Investigação e Ação em ED em Portugal”.
O primeiro surge com o intuito de permitir uma reflexão mais aprofundada sobre as condicionantes da criação de um sentido de comunidade, de um espírito de pertença, entre entidades de carácter diverso como as instituições de ensino superior (IES) e as organizações da sociedade civil (OSC), com um enfoque na identificação de fatores que promovem ou dificultam a criação e manutenção destes sentidos; a segunda, com o intuito de avaliar o cumprimento dos objetivos e dos resultados do projeto, bem como a qualidade dos processos dele decorrentes; ambos correspondendo a objetivos previstos e resultados concretos do Sinergias ED para 2018-2020.
Decorridos ao longo de cerca de 18 meses – entre abril de 2019 e setembro de 2020 – e implementados em linha com a abordagem global do projeto, nomeadamente no que diz respeito às metodologias participativas, destes dois exercícios emergiu um conjunto de resultados, conclusões e recomendações que estão na base da reflexão que ora sistematizo.
Encarando como um todo estes dois processos – o Estudo e a Avaliação Final – e, numa perspetiva de que forma é conteúdo, explanando também acerca da forma como os mesmos se foram desenlaçando, apresento os seus resultados, conclusões e recomendações. Julgo que este texto pode ser assim um ponto de partida para discussão e reflexão em torno da premência de aprofundar a dimensão do ser político inerente à dinâmica e à pertença desta comunidade em ED. Assunção que deriva da conclusão manifesta nos vários momentos promovidos para recolha de testemunhos sobre a experiência (desde entrevistas, a grupos focais, passando por uma cartografia social e um mapeamento do sistema da Comunidade), de que estamos, no Sinergias ED, de facto, perante uma comunidade, e de que a colaboração é chave mestra no processo conhecimento – reflexão – ação – reflexão – produção [e disseminação] de conhecimento a que o projeto dá lugar.
Figura 1 – Esquema representativo da abordagem à produção e disseminação de conhecimento no âmbito da terceira edição do Sinergias ED. [Icons de Pause08, disponíveis em www.flaticon.com].
2. Um estudo de caso participativo para mapear uma comunidade colaborativa
Com a intenção de que estes fossem processos participativos, críticos e promotores de meta e da autorreflexão, assim como pretendendo contribuir para o quadro concetual e metodológico do Sinergias ED, tanto a implementação do Estudo como da Avaliação Final tiveram como abordagem investigativa o Estudo de Caso Participativo, “uma forma de investigação de estudo de caso que envolve participantes, grupos locais, ou a comunidade em todas as fases do processo de investigação. Emergindo da abordagem filosófica libertária e anticolonial de Paulo Freire, todos os registos e relatórios refletem as perceções de todas as partes envolvidas e são escritos numa linguagem clara e quotidiana” (traduzido e adaptado de Reilly, 2009, pp. 658-660).
O Estudo e a Avaliação Final, desenvolvidos por duas pessoas que integram a Comunidade Sinergias ED a partir das histórias e das vozes, individuais e coletivas que o projeto vem convocando, implicaram, por um lado, a facilitação de momentos de fala enquanto eminentemente participativos, e, por outro, a abertura à subjetividade da experiência que foi emergindo, na procura de construir sentidos a partir das produções daí resultantes.
Neste propósito, definimos, para o Estudo, um conjunto de perguntas de investigação e, para a Avaliação Final, domínios de avaliação (de acordo com o Quadro 1), a que a implementação de estratégias, métodos e ferramentas construídos à medida permitiram responder – desenho de grelhas de análise, observação participante, revisão de literatura, análise documental, grupos focais (um ‘fio da memória’ com a equipa do projeto, uma ‘cartografia social’ com a Comunidade, um ‘fishbowl’ com os membros dos grupos de trabalho), ou entrevistas que representaram uma amostra diversificada em termos de perfis (em termos de momento de adesão, de geografia, de envolvimento em trabalhos colaborativos, participação enquanto membro de IES ou OSC, papel em diferentes grupos de trabalho, ou até representação do financiador do projeto).
No Estudo |
Na Avaliação Final |
A partir de uma primeira etapa de observação e considerando os propósitos do Estudo, foram as seguintes as questões de investigação formuladas para orientar o processo: Em que medida, no contexto da colaboração desenvolvida no âmbito do projeto “Sinergias ED”, se criou um sentido de comunidade e um espírito de pertença entre os membros envolvidos? 1.1 Qual a natureza e singularidade da ‘comunidade Sinergias ED’? 1.2. Como se caracteriza o processo de construção da ‘comunidade Sinergias ED’? 1.3. Que sentido(s) da ‘comunidade Sinergias ED’ e que outros fatores promovem ou dificultam a sua manutenção? 1.4. Até que ponto a ‘comunidade Sinergias ED’ é uma comunidade? |
Considerando os objetivos do projeto e os resultados previstos em candidatura, assumimos os seguintes domínios de avaliação:
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Quadro 1 – Perguntas de Investigação do Estudo e Domínios de Avaliação da Avaliação Final.
O trabalho de recolha, tratamento e análise de dados permitiu a sistematização consolidada de um conjunto de aspetos relevantes sobre o Sinergias ED e a sua Comunidade que a seguir se descreve.
2.1. Da génese e da evolução ao longo do caminho percorrido
Com o seu momento genesíaco situado em 2012, a descrição que dele é feita é a expressão por excelência de um ‘processo de convocatória silenciosa’ (Hsueh, 2013), que é aquele a que se dá início assim que uma oportunidade de mudança sistémica é identificada. “Conversa-se com potenciais parceiros, faz-se o mapeamento do sistema e ganha-se consciência do mesmo, projeta-se a colaboração para lá das fronteiras usuais. São necessárias várias etapas e iterações para atingir a massa crítica de parceiros dispostos ao envolvimento preconizado” (traduzido e adaptado de Hsueh, 2013, p. 2).
Figura 2 – Cronologia interativa representativa da génese e da história do Sinergias ED. Ver aqui: Sinergias ED: Fio da Memória.
Recapitulando: para responder à necessidade crescente de ligação entre investigação e ação no campo da ED, o Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto (CEAUP) e a Fundação Gonçalo da Silveira (FGS) iniciaram, em 2013, o projeto “Sinergias ED: Conhecer para melhor Agir – promoção da investigação sobre a ação em ED em Portugal”, um primeiro passo neste caminho com reconhecimento e bons resultados alcançados. Neste seguimento, reforçada a vontade de aprofundar o trabalho iniciado, e contando com o reforço do Centro de Intervenção para o Desenvolvimento Amílcar Cabral (CIDAC) como novo parceiro, surgiu, em 2016, o projeto “Sinergias ED: fortalecer a ligação entre investigação e ação na Educação para o Desenvolvimento em Portugal”. A partir de 2018, o CEAUP e a FGS voltam a assumir o desafio e toma forma o projeto “Sinergias ED: consolidar o diálogo entre investigação e ação na ED em Portugal”, no sentido de reforçar a qualidade de intervenção em ED em Portugal e na perspetiva do percurso exigente de consolidar o diálogo entre ação e investigação em ED, entre investigadoras e investigadores e agentes de intervenção no terreno, entre IES e OSC, a partir das várias ligações anteriormente criadas e fortalecidas.
O Sinergias ED é hoje apresentado como um espaço de promoção de dinâmicas de diálogo e cooperação entre investigadoras e investigadores das IES e agentes de intervenção no terreno das OSC no âmbito da ED (excerto da apresentação sobre o Sinergias ED no webinar organizado pelo Bridge 47, em fevereiro de 2020). Enquanto tal, convoca uma série de agentes, nacionais e internacionais, sobretudo em torno do objetivo que o acompanha desde a sua primeira edição, de refletir, construir e divulgar o conhecimento no âmbito da ED (na primeira edição “promover a valorização da ED em Portugal e a qualidade da sua intervenção” e na segunda “produzir e divulgar estudos e trabalhos de investigação no âmbito da ED, a nível nacional e internacional”), concretizado na Revista Sinergias – Diálogos educativos para a transformação social , uma revista de cariz científico especializada, com revisão por pares, que se vem constituindo, desde 2014, enquanto plataforma internacional de discussão e reflexão conceptual, metodológica e sobre a prática no campo da ED e da Educação para a Cidadania Global (ECG).
Efetivamente, no final da primeira edição do projeto Sinergias ED (2013-2016) estavam já criadas as condições para a produção e disseminação de conhecimento em ED, através da criação de uma linha de investigação em ED, da produção de estudos diversos, da divulgação de conhecimento e experiências nacionais e internacionais na área, pela dinamização de um website, pela criação de um referencial de capacitação de agentes de ED e pela edição de uma revista científica própria.
A passagem para a terceira edição é por sua vez fulcral para uma nova proposta que se desenvolve em torno do grupo colaborativo criado no âmbito das anteriores edições, potenciando-o e congregando-o numa comunidade organizada em torno de temas centrais: Comunidade, Capacitação, Colaboração, Conhecimento e Comunicação.
A título ilustrativo, as três nuvens de palavras que a seguir se apresentam (cf. Figura 3, Figura 4 e Figura 5), demonstram a evolução do projeto, no que toca à centralidade atribuída àqueles temas ao longo do tempo:
Figura 3 – Nuvem de Palavras com base no tratamento das memórias da primeira edição do Sinergias ED.
Figura 4 – Nuvem de Palavras com base no tratamento das memórias da segunda edição do Sinergias ED.
Figura 5 – Nuvem de Palavras com base no tratamento das memórias da terceira edição do Sinergias ED.
2.2. Tecer ligações e construir comunidade
Na sua terceira edição, a centralidade nas pessoas e nas relações assume preponderância em relação à dimensão institucional e é reforçada a ideia da Comunidade Sinergias ED. Assumindo o pensamento sistémico como “uma forma de olhar para o mundo à nossa volta como um emaranhado sem fim de sistemas vivos que nascem, crescem, interagem entre si, evoluem, alimentam-se, cumprem um ou vários propósitos ao longo da vida, adaptam-se e morrem, dando lugar a outros” (Portela, 2019, s/p), surge a representação abaixo do(s) coletivo(s) que constitui(em) o Sinergias ED, através de um mapa de sistemas.
Figura 6 – Mapa de sistemas criado no âmbito do Estudo da ‘comunidade Sinergias ED’: https://kumu.io/susanaconstantepereira/sinergias-ed.
Esta cartografia procura, em primeiro lugar, ilustrar graficamente as características principais da mobilização de pessoas e instituições que o Sinergias ED promoveu até à sua terceira edição e as relações que aí se reconhecem; e em segundo lugar, representar de forma clara a Comunidade Sinergias ED – o grupo mais restrito de agentes nacionais que, em coletivo, se têm dedicado colaborativamente à prossecução dos objetivos e propósitos do projeto no seu todo. “Para construir uma nova estrutura de pensamento multidimensional, precisamos de descobrir a dinâmica e a interconexão dos sistemas em jogo” (traduzido e adaptado de Acaroglu, 2017, s/p). As ferramentas de mapeamento de sistemas permitem explorá-los, possibilitando diversas leituras sobre as ligações ali existentes e possíveis pontos de intervenção. “As relações são complicadas, pelo que o mapa também será uma completa confusão” (idem).
2.3. Transformação social e desenvolvimento de competências
Assumindo a educação em geral e a ED em específico à luz e a par do desenvolvimento e da ideia de transformação social, em conformidade com o posicionamento do Sinergias ED, podemos entender a meta reflexão como sistematização de experiências – “produção de conhecimentos e aprendizagens significativas que possibilitem cada um apropriar-se dos sentidos das experiências, compreendê-las teoricamente e orientá-las em direção ao futuro com uma perspetiva transformadora” (Jara, 2012, s/p) -, que oferece a oportunidade de conscientização (a posteriori) da mudança. Conscientização essa que se converte em desenvolvimento de competências, perspetivada de forma integrada: saber ser, saber estar, saber fazer, saber saber e saber agir.
Figura 7 – Representação do Pentágono do Desenvolvimento Integrado de Competências.
Pensar em transformação no contexto do Sinergias ED implica pensá-la a dois níveis: a transformação social e a transformação pessoal, que, na verdade, vão, na maioria das vezes, a par e passo.
Sou uma das pessoas para quem não é muito fácil conseguir expressar numa ou em duas ou três palavras aquilo que faço profissionalmente. Em frente dum qualquer formulário, experiencio sempre a breve frustração de ter de optar por uma qualquer versão reducionista que caiba na formatação burocrática e social que nos é imposta. Por vezes, vou pela opção fácil do “técnico de projetos”; outras, opto pelo “trabalhador social”; ultimamente, tenho começado a escolher a hipótese “educador”… Esta dificuldade torna-se mais complexa (e mais frustrante) quando se trata de procurar explicar o que faço junto de outras pessoas para quem o mundo das organizações não governamentais, do desenvolvimento e da educação para a cidadania global é um ilustre desconhecido, planeta de uma galáxia distante, habitada por seres estranhos e que falam uma língua pouco compreensível. (…) Cada vez mais me sinto próximo e ligado a esta identidade de “educador”. Atualmente, sinto que incorporo esta identidade não apenas nos processos educativos em que estou envolvido, quase sempre no âmbito de projetos mais alargados, mas também nos próprios projetos, interpretando-os e vivenciando-os enquanto processos de aprendizagem, e mesmo na convivência organizacional, no dia-a-dia, das coisas mais pequenas às maiores (Cardoso, 2018, s/p).
A centralidade nas pessoas e nas relações assume assim preponderância em relação à dimensão institucional, não perdendo naturalmente de vista a mobilização que o Sinergias ED promove de pessoas e instituições, mas assumindo a existência, com intencionalidade, de um grupo mais restrito de agentes que em coletivo se vão dedicando colaborativamente à prossecução dos mesmos objetivos e propósitos que o projeto no seu todo.
(…) Precisamos de processos de transformação social que questionem sistemas, paradigmas e as relações de poder dominantes e a partir dos quais sejam possíveis formas alternativas de pensar e agir. O caminho da transformação social faz-se em diálogo, através da reflexão conjunta sobre os problemas ou os desafios sociais, e questionando as práticas, as causas e as consequências das opções que tomamos. Transformar é mobilizar para a ação, mudar a partir de dentro, criar ruturas com o atual sistema, acreditando que as abordagens paliativas serão sempre formas de o reproduzir. A transformação social é, afinal, uma outra forma de falarmos da emancipação dentro de processos coletivos e partilhados. A transformação social não se fecha em si mesma, não é um processo linear com um fim pré-estabelecido, passa por várias fases e alimenta-se de contributos diversos. A educação, a aprendizagem e o encontro plural de saberes são essenciais para a promoção de aspirações individuais e coletivas de mudança, predispondo para a ação, a partir do reconhecimento de que são possíveis alternativas, mesmo num contexto que pode parecer forte demais para ser transformado (Projeto Alternativas, 2018, s/p).
2.4. Assumir a Comunidade como comunidade colaborativa
Os elementos que surgem com predominância nos momentos de conversa e exploração facilitados no âmbito destes dois processos – Estudo e Avaliação Final – e que permitem retirar conclusões acerca do sentido de comunidade presente ou não no Sinergias ED remetem para uma vivência caracterizada pelo encontro, pela relação, pelas ligações, pela existência de um chão comum, por um universo simbólico partilhado, pelo envolvimento, pela participação, pela disposição para ação, pela experiência entre pares, pela existência de propósitos, pelo reconhecimento de percursos partilhados, pela democraticidade e autogestão, pela perspetiva de transformação inerente à pertença à Comunidade e pela colaboração.
É com enfoque na colaboração que se propõe um possível sentido específico a conferir à Comunidade Sinergias ED: o de comunidade colaborativa. Singh (s/d, s/p) propõe como definição de comunidade colaborativa, uma forma organizacional que torna possível e reforça o trabalho em rede entre participantes autónomos e interdependentes, implicando a assunção do papel de membro, do compromisso com propósitos partilhados e das regras para a participação.
Uma comunidade colaborativa pode ainda ser definida como “um grupo de pessoas que estão ativa e voluntariamente envolvidas na produção colaborativa de soluções para os seus próprios problemas sociais e, ao fazê-lo, criam um impacto positivo na sociedade como um todo. Essas soluções são chamadas de serviços colaborativos” (Baek et al., 2015, p. 190). Ainda “Uma boa comunidade colaborativa pode refletir os princípios orientadores encontrados dentro de uma ‘comunidade de prática’, definida como um grupo ‘de pessoas que partilham uma preocupação ou paixão por algo (domínio) que fazem e aprendem a fazer melhor (prática), à medida que interagem regularmente” (Lave & Wenger, 1998, s/p).
“Equipadas para realizar atividades como desenvolver boas práticas e estratégias robustas para enfrentar desafios; gerar e avaliar evidências que suportam novas abordagens; e disseminar e implementar soluções” (Food and Drug Administration’s Center for Devices and Radiological Health, 2019, p. 3), as comunidades colaborativas incluem organizações e indivíduos diversos, cuja liderança é não hierárquica e distribuída entre todos os membros, não deixando de ter alguém que coordena e facilita a colaboração.
A proposta de olhar para a Comunidade Sinergias ED como uma comunidade colaborativa foi surgindo, a partir:
- da observação participante – nomeadamente quando o grupo da Colaboração sentiu necessidade de integrar o ‘C’ da Comunidade (o que não aconteceu nem com o grupo do Conhecimento, nem com o da Capacitação, ou com o da Comunicação); quando as propostas concretas de facilitação da colaboração, de acompanhamento dos trabalhos colaborativos e de reforço da Comunidade se tornaram centrais enquanto símbolos do coletivo (a linha do comboio ou o Sinergias das 2 às 3); ou quando a Escola Comunitária Sinergias ED (elemento visto como significativo nesta terceira edição), convocou todos os ingredientes da colaboração para que aquele fosse um espaço efetivo de construção comunitária e autogestão;
- da análise documental – em concreto na identificação do indicador de impacto presente já na candidatura à segunda edição de que “as dinâmicas de diálogo e cooperação institucional entre as OSC e as IES associadas ao projeto (A1.3. e A1.4.) se mantenham para além dele, criando as condições necessárias para que possa surgir uma comunidade colaborativa entre IES e OSC no âmbito da ED”, ainda que eventualmente sem intencionalidade do ponto de vista teórico;
- do grupo focal da Cartografia Social dedicado à colaboração – quando, através da colaboração entre si, os membros presentes atribuíram e retiraram sentido da dinâmica em relação direta com aspetos identitários presentes no momento ou motivações pessoais e coletivas para o envolvimento do Sinergias ED, usando metáforas como: “A colaboração é como um rio. Vai da nascente à foz e vai tendo vários obstáculos e dificuldades, mas tem também pontes que são construídas, poldras que são colocadas ao longo do leito do rio, margens que se afastam e se aproximam, afluentes que saem do leito principal do rio, zonas contaminadas ou até praias onde se podem encontrar recursos que são partilhados e potenciadores de transformação. A cada um e cada uma de nós, que educamos para a transformação social, cabe-nos navegar neste rio (em barcos, a pé, pelas margens ou a nado).”; ou “A colaboração é como uma teia. Tensiona-se, estreita-se, dilata-se. Uma teia une vários pontos e forma vários nódulos que, para além de se ligarem entre si, se ligam também a outras coisas. Esta é uma teia que cresce em várias direções, que pode estar ligada ao que está longe (a pessoas e realidades internacionais que fazem parte da Comunidade). A teia assenta numa estrutura mais rígida que é o projeto, mas pode ligar-se tanto ao que é rígido como ao que é mais flexível. Uma teia que agrega várias ideias, palavras, mundividências e que pode sempre continuar a aumentar.”;
- da construção do mapa de sistema do Sinergias ED – que permite aferir o grau de envolvimento e ligação, identificar padrões de ligações, e, a partir daí, imaginar possibilidades de facilitação de aprofundamento de relações, tecer intencionalmente novas ligações, promover conversas que aumentem a consciência da Comunidade sobre si própria e maximizar o seu potencial para a ação colaborativa.
Esta proposta de perspetiva sobre a Comunidade, traz a necessidade de aprofundar o conhecimento sobre as ligações existentes, dado que a “eficácia de qualquer esforço colaborativo (…) depende principalmente da força das ligações que existem entre os participantes envolvidos” e da “profundidade da relação entre os participantes, o grau em que os participantes comunicam uns com os outros e a história da colaboração dos participantes entre si” (Ehrlichman, 2020, s/p).
2.5. Pontos de alavancagem e seguimento
Comunidade, Capacitação, Colaboração, Conhecimento e Comunicação. Ingredientes para a concretização de uma terceira edição de um projeto em ED que responde, a nível nacional, a necessidades diagnosticadas no seio do setor: reforçar a qualidade de intervenção em ED em Portugal, consolidando o diálogo entre ação e investigação, no final de mais este ciclo do projeto, não são apenas objetivos, mas princípios adotados por um grupo consolidado de atores de IES e OSC em ED, no propósito comum de reflexão, ação, produção e disseminação de conhecimento em ED.
Fazer parte e, mais ainda, facilitar o processo que desde uma reunião em 2012 se foi configurando e dando forma ao Sinergias ED, é, por isso, uma experiência intensa, revestida de complexidade, por um lado, e organicidade, por outro. É uma forma de estar singular e uma facilitação em tudo coerente com os processos educativos em ED que permitem cuidar todos os elementos que um projeto desta natureza envolve: criação e manutenção de relações entre pessoas e instituições diversas entre si; promoção de processos de aprendizagem significativos e geradores entre pares; desenvolvimento de trabalho colaborativo de reflexão e ação críticas; sistematização do património de conhecimento em ED almejando um efeito multiplicador para o mesmo; e implementação de um estratégia de comunicação integrada que responde às várias dimensões do projeto.
Para uma atenção consistente às pessoas – considerando o outro e o eu -, aos processos – considerando o previsto e o emergente – e aos resultados – considerando compromissos assumidos e novas oportunidades e desafios -, é fundamental a mobilização de um conjunto de saberes (saber saber, saber estar, saber ser, saber fazer e saber agir, frisados na Figura 7) – individuais e coletivos – e a manutenção de uma atitude aprendente.
O Sinergias ED, desde a sua primeira edição, mas com especial aprofundamento mais recentemente, promove uma cultura de vivenciar em conjunto experiências e sentidos em torno da transformação social, com o que isso implica de rutura, tensão e sobretudo abertura à ambiguidade. É esta capacidade que nutre o diálogo e potencia a qualidade que se preconiza desde o início deste percurso.
Ainda assim, o trabalho desenvolvido de recolha, análise e sistematização da informação permitiu afiançar um conjunto de sugestões que se apresentam abaixo.
Figura 8 – Gráfico Axial de Apresentação dos Resultados da Avaliação Final da Terceira Edição do Sinergias ED.
Disponível aqui: https://kumu.io/susanaconstantepereira/resultados-avaliacao-final.
3. Da propensão política
Assente que está a sistematização de base da qual deriva a contenda que a seguir apresento, reforço: os elementos de relação, horizontalidade, colaboração e propósito comum são chave para uma comunidade o ser, se não é outra coisa. E acrescento: o caminho para a construção de um sentido de comunidade remete para uma vivência política daquilo que se faz nessa comunidade, enquanto dimensão do ser pessoa, ou seja, a vivência política e politizada do que são os espaços em que nos movemos e aquilo que são os papéis que assumimos.
Porque o pessoal é político e porque vejo o meu papel como professor/ativista no contexto de um quadro em que a minha perspetiva de democracia não se pode desligar do que faço como professor/ativista no espaço académico; vejo a democracia como as conexões nas quais assenta a procura de conhecimento; a crença que a nossa humanidade exercita à medida que navegamos as manifestações dos nossos destinos (Gause, 2008, s/p).
Acresce a esta confirmação, a ideia de Ranciére de que a democracia (a par da política) é o modo de subjetivação pelo qual existem sujeitos políticos. Subjetivação tida como “a formação de alguém que não é um eu, mas a relação de um eu com outro” (Rancière, 1998, s/p). Segundo o mesmo autor, são coletivos como a Comunidade Sinergias ED que permitem o surgimento deste sujeito que se pensa pela relação com o outro.
E é aqui que entra a dimensão do ser político, relativamente à qual fica o destaque de algumas das ‘Onze teses sobre a política’, de Ranciére (1997, s/p):
A política deve ser definida por ela mesma, como um modo de agir específico posto em ação por um sujeito próprio e derivando uma racionalidade própria (Tese 1).
O próprio da política é a existência de um sujeito definido pela sua participação em contraditórios. A política é um tipo de ação paradoxal (Tese 2).
A política é uma ruptura específica com a lógica da arkhé [‘o princípio’]. Não supõe simplesmente a ruptura da distribuição “normal” das posições entre aquele que exerce um poder e aquele que a ele se sujeita, mas uma ruptura na ideia das disposições que tornam “próprias” tais posições (Tese 3).
O trabalho essencial da política é a configuração do seu próprio espaço. É o revelar o mundo dos seus sujeitos e suas operações. A essência da política é a manifestação do dissenso, como presença de dois mundos em um só (Tese 9).
Servindo sobretudo de inspiração, as ideias atrás subscritas estão ainda assim ligadas à provocação de Bauman (2000, 2009) sobre comunidade:
Existimos numa era supercomplexa e líquida, caracterizada pela incerteza, pela ambiguidade, pela fragilidade humana atravessada por inúmeras problemáticas e desigualdades globais geradas pelo neoliberalismo e por tendências conservadoras que denunciam o desgaste das democracias atuais, o fundamentalismo dos mercados e da ética capitalista. Confrontados com as inseguranças, incertezas e medos de um mundo em tensões paradoxais, ressurge a necessidade de se encontrar espaços de humanização, de encontro e de solidariedade e, paralelamente, o interesse crescente a nível político, educativo, organizacional e académico pelos fenómenos das redes, das parcerias e das comunidades enquanto catalisadores de aprendizagens das sociedades globalizadas e digitais em permanente mutação (s/p).
Efetivamente, o ativismo de base (grassroots activism), as OSC e as IES são componentes essenciais na esfera pública, “uma rede de comunicação de informações e pontos de vista” (Barbour, 2018, pp. 292-294).
São estas estruturas que atuam nesse espaço, facilitando, organizando e incentivando as e os cidadãos a expressar as suas opiniões com o objetivo de influenciar as instituições políticas da sociedade. (…) Uma abordagem mais colaborativa, envolvendo todos no processo, pode traduzir-se num espetro mais amplo de competências disponíveis. (…) E essas redes de comunicação também podem ser acessíveis no futuro para outros projetos e para a criação de uma nova cultura de poder e conhecimento partilhados, fortalecendo a influência da sociedade civil (idem).
Este não é um processo simples nem linear. Ao contrário, é complexo e orgânico e convoca uma disposição para a ação e abertura à ambiguidade. “De forma característica, a mudança transformadora significa que diferentes regras do jogo serão aplicadas ao ‘depois’. (…) Uma característica distinta da mudança transformativa é que ela transcende os limites do que é pensável no sistema” (Krause, 2014, p. 9).
Este é, a meu ver, o horizonte próximo da Comunidade Sinergias ED, que fará mais uma vez evoluir o projeto no seu todo, permitirá saltos qualitativos no saber, no fazer, no pensar e no agir do coletivo e de cada pessoa envolvida. E é este também um motor para a manutenção da malha de relações e potenciais sinergias a que esta iniciativa dá lugar há mais de oito anos, já a caminho de uma década. Valerá a pena, ao virar a esquina desse marco no tempo, voltar a construir a nuvem de palavras do projeto e revisitar centralidades e pontos de alavancagem, para o que virá a seguir.
Figura 9 – Wordcloud criada a partir do conteúdo do website do Sinergias ED. As palavras com mais peso à data de agosto de 2020 são Educação para o Desenvolvimento, Revista, Projeto, Investigação, Sinergias ED, Ação, Internacional, Colaboração, Conhecimento, Instituições de Ensino Superior, Organizações da Sociedade Civil e Trabalho.
Agradecimentos:
Considerando que este artigo resulta do trabalho desenvolvido entre 2019 e 2020 no âmbito do “Estudo sobre as aprendizagens decorrentes da experiência de construção, aprofundamento e reforço da ‘comunidade Sinergias ED’” e da “Avaliação Final da 3ª Edição do Sinergias ED“, gostaria de agradecer à Isabel Sandra Fernandes, que a par comigo compôs a dupla colaborativa responsável pelo desenho e implementação destes processos; a todas as pessoas com quem conversei sobre o Sinergias ED e sobre a Comunidade Sinergias ED, pelo tempo que generosamente ofereceram e pelas partilhas abertas e generosas; e ao Pedro Portela, que me ativou a propensão para o pensamento sistémico e para as ferramentas a ele inerentes. Um agradecimento especial à equipa do projeto – La Salete Coelho, Jorge Cardoso, Sara Borges e Joana Costa – pela manutenção do terreno fértil para pensar e pela energia sempre positiva a par do compromisso com a qualidade. Finalmente, este trabalho não teria sido possível sem a cumplicidade, a companhia, a paciência e o apoio da minha família e de pessoas amigas, que me foram e vão aturando enquanto me dou a estas ‘empreitadas’, e a quem agradeço na pessoa da Alice, sabendo que todas e todos a reconhecerão como fiel depositária desse reconhecimento coletivo.
[1] Diplomada em Educação Básica pela Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico do Porto, formadora e consultora em contexto de Educação Não Formal. No âmbito do trabalho que desenvolve assume também o papel de investigadora e tem estado envolvida na criação de publicações diversas nas suas áreas de expertise (além da educação não formal, a educação para os direitos humanos, a educação para a cidadania, a educação intercultural, a igualdade de género, entre outras). É membro da Comunidade Sinergias ED desde 2018.
Referências Bibliográficas
- Acaroglu, Leyla (2017), Tools for Systems Thinkers: Systems Mapping. Disponível aqui.
- Barbour, R. (2018), Collaboration versus Cooperation: Grassroots Activism in Divided Cities and Communication Networks, International Journal of Humanities and Social Sciences, 12(2), 292–295. Disponível aqui.
- Bauman, Zygmunt (2000), Liquid modernity. Polity Press.
- Bauman, Zygmunt (2009), Education in the Liquid-Modern Setting, Power and Education, 1(2), 157–166. Disponível aqui.
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